A Europa ainda tem medo da revolta árabe

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A UE não tem a menor ideia de como deve lidar com os extraordinários acontecimentos que varrem a sua fronteira sul

1. Nos anos 90, a União Europeia conseguiu conceber uma política ambiciosa para a orla sul do Mediterrâneo na qual as reformas políticas tinham o seu lugar. Nessa altura, as transições democráticas dos países pós-comunistas do Leste europeu e a perspectiva da sua integração na União Europeia sustentavam a ideia de que uma cooperação forte com a região do Mediterrâneo e do Médio Oriente, mesmo que sem a perspectiva de adesão, poderia funcionar como um poderoso efeito transformador desses países. Os acordos de associação que começaram a ser negociados com Marrocos, a Tunísia ou a Argélia tinham esse objectivo estratégico e colocavam claramente a ideia da condicionalidade dos apoios económicos e sociais à progressiva abertura política dos respectivos regimes. Foi, aliás, em 1995 que a União lançou o agora quase moribundo Processo de Barcelona para criar na sua fronteira sul uma vasta região de paz e de desenvolvimento, que correspondia em absoluto ao seu interesse estratégico.

A fadiga do alargamento (concretizado em 2004), as ondas de choque do 11 de Setembro e o longo e desgastante processo de reforma interna a que a Europa se dedicou na década passada foram esvaziando de conteúdo e de sentido essa visão. As palavras-chave das políticas europeias para a região passaram a ser "terrorismo", "fundamentalismo islâmico" e "imigração ilegal", numa sucessão a todos os títulos duvidosa. A cooperação com esses países passou a centrar-se na economia em troca da travagem da imigração ilegal e a condicionalidade política foi deixada para o puro domínio da retórica ou mesmo nem isso. Virada para dentro, entretida com as suas questões internas, sem qualquer capacidade de formular uma visão estratégica, rapidamente a Europa passou a olhar para os regimes autocráticos e anacrónicos da região como a única alternativa segura ao islamismo radical, esquecendo as suas teorias sobre a democratização e ignorando as forças da sociedade civil que não encaixavam nesta dicotomia. Entretanto, deixou cair a Turquia, que podia ser o exemplo bem sucedido da compatibilidade entre o Islão e a democracia.

2. O processo de Barcelona foi fenecendo, com o pretexto de que o conflito israelo-palestiniano não lhe permitia funcionar. Como escrevia ironicamente Roger Cohen no New York Times, a Europa preferiu concentrar-se em questões como a "despoluição do Mediterrâneo". E, naturalmente, na melhor forma de manter os imigrantes à distância. Nos últimos anos, se houve acordos finalizados com sucesso por Bruxelas, eles foram quase todos respeitantes à imigração e à forma mais expedita de a controlar. Entre eles figura o acordo firmado com a Líbia em Outubro do ano passado, no qual a Europa se compromete a oferecer 50 milhões de euros a Trípoli (Khadafi queria 5 mil milhões) para "ajudá-lo" a manter os imigrantes fora das costas europeias e fornecer apoio técnico para os campos onde alegadamente seria feita a triagem entre os que fugiam à perseguição política e os que fugiam à miséria económica. A União foi criticada por todas as organizações humanitárias e pelo Alto Comissariado para os Refugiados da ONU (cuja delegação foi, aliás, fechada). Ninguém se mostrou perturbado. Em Roma, ao lado de Berlusconi, Khadafi deu-se mesmo ao luxo de dizer que era pouco dinheiro para evitar "a ameaça de tornar a Europa negra".

3. O golpe de misericórdia na lógica que animou inicialmente o Processo de Barcelona acabou por ser dado quando o Presidente Sarkozy, com a sua habitual mania das grandezas, resolveu criar a União para o Mediterrâneo durante a presidência francesa da União, em 2008, organizando em Paris uma megacimeira, com pouco conteúdo e imensa pompa, por onde desfilaram todos os ditadores que hoje ou já passaram à história ou estão prestes a fazê-lo. Hosni Mubarak foi eleito co-Presidente e nunca mais se falou disso.

Entretanto, a França, Portugal, a Itália, a Espanha ou o Reino Unido foram desenvolvendo as suas próprias políticas, ao abrigo da concha vazia da diplomacia da União Europeia. A França fez de Mubarak e de Ben Ali os dois pilares da sua política para a região. Por isso, hoje, a imprensa francesa diz que ficou, pura e simplesmente, sem política. A Itália de Berlusconi tornou-se na grande amiga do coronel Khadafi, ao ponto de ter assinado com a Líbia em 2008 um acordo segundo o qual se comprometia a pagar-lhe 5 mil milhões de euros durante 25 anos a título de indemnizações pela colonização e a troco de contratos privilegiados para as suas empresas. Tony Blair tratou de branquear o regime a troco da promessa de abandono de quaisquer pretensões nucleares e do apoio ao terrorismo. Passou a ser um visitante assíduo da célebre tenda na qual não deve haver muitos líderes europeus que não tenham posado para uma bela fotografia. Incluindo José Sócrates.

A Líbia é o quarto produtor de petróleo da África e o primeiro em reservas, para além do gás natural. E é também o maior corredor de acesso para a imigração ilegal de África em direcção à Europa. Khadafi nunca hesitou em brandir o seu papel de "travão" da imigração para fazer chantagem sobre Bruxelas. A última vez foi na semana passada. Se apoiarem os protestos contra mim, largo milhões de clandestinos nas vossas costas. A Itália entrou em pânico, outros roeram a unhas. A condescendência deixou de ser possível quando Khadafi massacra os próprios líbios nas ruas de Trípoli e Bengasi e os europeus fogem como podem do país.

4. Mesmo assim, se houve uma preocupação que se destacou de todas as outras na reunião dos chefes da diplomacia europeia na segunda-feira em Bruxelas, ela foi ainda o pavor da "invasão" dos imigrantes, facilitada pela queda dos regimes ou das perturbações sociais.

Claro que os ministros adoptaram uma declaração na qual "condenam a repressão em curso contra os manifestantes na Líbia e deploram a violência e a morte de civis". Do mesmo modo, prometeram oferecer em breve uma "nova parceria" aos países comprometidos com as reformas políticas e económicas. Alguns falaram mesmo de um "Plano Marshall" para a região, reconhecendo a sua importância estratégica vital para a Europa. "Se conseguirmos levar a democracia e a estabilidade ao Norte de África e ao Médio Oriente, isso será a mais importante realização da EU desde o alargamento", disse o chefe do Foreign Office. A Europa "deve ser julgada pela sua capacidade de agir no curto, no médio e no longo prazo" na região, disse a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton. Mas tudo isto, que é a mais pura das verdades, não conseguiu disfarçar o reconhecimento de que a UE não tem ainda a menor ideia de como deve lidar com os extraordinários acontecimentos que varrem a sua fronteira sul. A forma como alguns ministros (incluindo Luís Amado) exprimiram a sua preocupação sobre o que está a acontecer foi eloquente. Ouviu-se falar mais de estratégia para evitar que o islamismo radical tome conta da região do que de vontade de saudar e de apoiar esta genuína aspiração por maior liberdade que se manifesta por todo o lado. É isso que é novo e é isso que pode ser, também, uma extraordinária oportunidade para a Europa. Desde que deixe de ter medo da revolta árabe. Jornalista

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