Um rapaz na fronteira: "Bem-vindo à Líbia livre"

Foto
Reuters

A fronteira da Líbia com o Egipto é hoje território "livre", sem a presença de soldados nem polícias fiéis ao regime autoritário do coronel Muammar Khadafi. "Bem-vindo à Líbia livre": foi assim que foi recebido esta manhã, por um rapaz vestido à civil e de espingarda AK-47 ao ombro, o jornalista Ben Wedeman, da CNN, um dos primeiros repórteres ocidentais de televisão a entrar no país desde que a revolta popular começou há nove dias.

Wedeman conta que do lado líbio da fronteira não viu nem guardas, nem controlos de passaporte nem vistorias alfandegárias. Só encontrou homens e rapazes, armados com paus e pistolas e metralhadoras, que "tentam impor alguma ordem, ao mesmo tempo que centenas de imigrantes egípcios tentavam sair, com o pouco que têm, sacos e cobertores e tralhas, empilhadas no topo de pequenos autocarros".

Do meio destas multidões de homens e rapazes nas fronteiras da Líbia com o Egipto são lançados gritos contra Khadafi – "tirano, carniceiro, assassino dos líbios" –, é corroborado pelo correspondente da agência noticiosa Reuters na cidade de Musaid.

Os relatos que chegam de várias cidades na Líbia é de uma tranquilidade profundamente contrastante com a convulsão dos últimos nove dias, quer nos locais onde é testemunhado um grande aparato militar nas ruas – como na capital, Trípoli – quer naqueles em que os manifestantes anti-regime terão assumido o controlo – como em Bengasi, a segunda maior cidade do país e onde os protestos eclodiram.

Às primeiras horas da manhã de hoje, Trípoli parece calma, descrevem residentes às agências noticiosas. “Continua a chover muito, por isso as pessoas estão em casa, não se ouvem confrontos”, conta um morador da área leste da cidade. Durante a noite, porém, houve relatos de disparos em várias zonas de Trípoli assim como de bombardeamentos feitos por aviões.

O correspondente da BBC em Trípoli descreve que há uma forte presença de soldados na cidade, mas nenhum controlo fora da capital. "A manhã aparenta tranquilidade depois de uma noite assustadora. As pessoas estão intimidadas e permanecem em casa. O movimento nas ruas é limitado e a cidade está fechada. Depois dos relatos de bombardeamentos de ontem, as pessoas estão cautelosas. Muitos residentes de Trípoli confirmaram que a zona da Praça Verde foi fortemente atacada".

Em Bengasi as pistas do aeroporto foram totalmente destruídas nos confrontos, impossibilitando a aterragem de aviões, foi avançado já esta manhã pelo ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio, para cujo país estão a ser deslocadas centenas de pessoas vindas da Líbia.

Nesta cidade, o ambiente é bem diferente do de Trípoli. "Aqui as pessoas estão motivadas", sublinha a BBC. O médico Ahmad Bin Tahir, residente em Bengasi, conta que as pessoas se organizaram "para pôr em cidade em ordem": "Formaram comités para governar a cidade. Não há aqui nenhuma presença do Estado". O correspondente da BBC no local confirma que não se vêem polícias, nem soldados nem figuras públicas nas ruas, mas o exército controla ainda os subúrbios de Bengasi, assim como o aeroporto. As comunicações tornaram-se muito difíceis, sendo quase impossível fazer telefonemas internacionais, explica ainda o jornalista.

De Tarhouna – a mesma cidade de onde Khadafi lançou a revolução que depôs o rei Idris, em 1969 – é relatado que as brigadas 7ª e 9ª do exército se juntaram aos manifestantes na exigência do fim do regime do coronel.

Na cidade costeira de Al-Bayda, a leste de Bengasi, um residente descreveu ao correspondente da Reuters que as forças de segurança lançaram um ataque brutal durante a noite, tendo causado a morte a pelo menos 26 pessoas. Os líbios estão agora "com medo das suas próprias sombras", lamentou Marai Al Mahry. "Isto é pior do que se pode imaginar, isto é algo que nenhum ser humano consegue imaginar. Eles estão a bombardear-nos com aviões, estão a matar-nos com tanques. Matam-nos apenas por estarmos a andar na rua", prosseguiu.

Na véspera, à noite, Khadafi fizera as suas primeiras declarações públicas na televisão desde que a vaga de protestos começou. Foram apenas 22 segundos de imagens, com o líder líbio debruçado da janela de uma carrinha e empunhando um chapéu-de-chuva, a afirmar que não fugiu do país. “Quero que vejam que estou em Trípoli e não na Venezuela. Não acreditem no que vos dizem os canais de televisão dos cães vadios”, disse, desmentindo os rumores que tinham corrido ao longo de todo o dia de ontem de que abandonara o país.

“Queria também ir falar aos jovens na Praça Verde [em Trípoli, de onde as autoridades dispersaram os protestos anti-regime para os substituir por manifestações de apoio a Khadafi], e ficar lá acordado até tarde com eles, mas começou a chover. Graças a Deus, isto é uma coisa boa”, explicou. Segundo a televisão estatal líbia Khadafi estava à porta de sua casa, na capital líbia.

Egipto reforça fronteira mas abre corredor humanitário

O Egipto anunciou esta manhã um reforço muito significativo da sua presença militar na fronteira com a Líbia, face à escalada da violência naquele país – onde são registados já pelo menos 233 mortos (segundo a organização Human Rights Watch). As autoridades egípcias vão manter aberto em contínuo um corredor humanitário, junto à cidade de Saloum, de forma a permitir a passagem de pessoas doentes e feridas vindas da Líbia.


Ontem foi anunciado que a guarda fronteiriça líbia tinha abandonado as suas posições a leste, junto ao Egipto. Mas isso já não acontece do outro lado do país, conforme foi constatado esta manhã pela jornalista da Al-Jazira Nazanine Moshiri, que se encontra junto à fronteira da Tunísia com a Líbia, a 175 quilómetros de Trípoli: ali a polícia de fronteira continua a funcionar e "estão a tirar os telefones e o dinheiro a quem passa para a Tunísia, deixando-os apenas com a roupa que trazem vestida".

Notícia actualizada às 12h20
Sugerir correcção
Comentar