Eunice Muñoz: "Jamais terei pena de mim própria"

É o regresso ao palco da grande dama do teatro português. Desde sexta-feira, no Teatro Experimental de Cascais, Eunice Muñoz é Flora Goforth, heroína trágica de Tennessee Williams. Mais um papel, mais uma viagem na volta da vida da actriz que um dia desistiu de o ser. Quando voltou estava, finalmente, apaixonada pelo teatro. Ainda está.

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Na foto ao lado: Eunice e o seu irmão Hernâni, aqui numa fotografia de Fotografias de arquivo, catálogo

Qualquer entrevista ou perfil da actriz Eunice Muñoz (Amareleja, 1928), por mais pequeno que seja, seja ou não de uma publicação especializada, contar-lhe-á, repetidamente que esta rapariga-prodígio, vinda de uma família de saltimbancos com raízes no circo, chegou aos 13 anos ao Teatro Nacional D. Maria II. Como na altura só se podia ser actriz e representar naquele palco se se tivesse passado pelo Conservatório e se fosse reconhecida como profissional, foi preciso alterar as regras. Eunice era um talento natural. O que se seguiu - que também poderá ler repetidamente por aí - por entre três casamentos, seis filhos, oito netos e quatro bisnetos e uma incursão perene pela religião muçulmana, experiência ditada pelo amor, foi um percurso ímpar no teatro português que lhe trouxe, como se costuma dizer, todos os prémios, todos os papéis e todas as glórias. "Não percebo porque é que nunca copiam as respostas", diz-nos Eunice Muñoz, 82 anos, jovial como se imagina, sentada num cadeirão confortável que não nos oferece porque sabe "que a educação [a] vai fazer ouvir um não", no camarim onde se prepara para a peça que marca o seu regresso ao Teatro Experimental de Cascais, 44 anos depois de ali ter apresentado com a sua mestra Amélia Rey-Colaço Fedra, de Racine.

Foi o mesmo encenador, Carlos Avillez, a quem afectuosamente chama "mestre", que a desafiou para representar Flora Goforth, a protagonista de O Comboio da Madrugada (The milk train doesn"t stop here anymore, no original em inglês), de Tennessee Williams, peça de 1963 em estreia nacional. Das semelhanças entre esta velha iludida e a actriz contarão outros, bem como do que possa significar este regresso ao teatro de quem tem mais projectos pela frente do que tempo para pensar no passado. Nesta conversa que não é uma entrevista ("que alívio", confessa-nos) e que começou por uma discussão sobre as manifestações no Egipto - onde Eunice tem um neto a trabalhar como operador de câmara para a TVI - por causa da dificuldade de se falar de teatro e de arte "quando há tantas coisas mais importantes para se falar", Muñoz fala de Eunice e do que poucas vezes se diz: nunca se sabe tudo.

O mundo lá fora, e o teatro todos os dias, de todos os dias. Como é que faz?
É o meu trabalho e é aquilo que trago comigo desde criança. Portanto... quando ando preocupada com todas estas situações [o tumulto no Médio Oriente], parece que são lá longe mas não são nada longe, porque vêm repercutir-se na nossa vida fatalmente. Por outro lado [pausa]... custa-me dizer que é aquilo que eu sei. Porque essa posição não me agrada muito. Não é aquilo que eu sei fazer, é aquilo para o qual eu tenho intuição e que vem comigo desde sempre. Trabalhei sempre muito. Fui uma trabalhadora incansável.

Mas não foram poucas as vezes em que deixou de representar, não dando por garantida essa intuição. Era porque não se queria sentir confortável ou porque lhe é importante questionar permanentemente, "por que é que se faz"?
Questionar sempre. Permanentemente. É isso que faz com que, às vezes, eu responda a quem me pergunta que conselhos dar aos jovens, que não sei. Provoca-me uma grandeinsegurança esperarem isso de mim. É uma questão de gerações. Eles têm outras idades, oportunidades que eu nunca tive, sabem coisas novas que eu não sei.

No seu caso terá a ver com um determinado instinto ou intuição... Numa entrevista contava que quando foi fazer a audição para o Teatro Nacional e a sua mãe lhe perguntou como tinha corrido, lhe respondeu: "Sim, correu bem, o costume." A relativização faz parte desse questionamento?
Eu tinha 13 anos, era uma miúda que sempre vivera com actores e representara com eles. Para mim, era inevitável ter esse ar disponível e a ideia de que tudo era fácil. Claro que a noite de estreia [de Vendaval, 1941] foi inesquecível. Aquele pano de veludo que se ia levantando é uma imagem com a qual ainda hoje sorrio. Mas na altura foi pavoroso. Os sítios por onde andava eram muito modestos. O teatro desmontável dos meus pais, feito de lona e de zinco era muito modesto, tinha de ser. Era difícil, não havia sequer dinheiro para ser melhor. E de repente eu ali estava, no primeiro teatro do país, com aquele maravilhoso pano de veludo que subia muito lentamente e que me metia imenso medo.
Mas eu sempre tive um instinto enorme para saber o que era uma boa actriz. Herdei-o de varias gerações da minha família e muito do lado da minha mãe. Tive uma avó extraordinária, chamava-se Augusta do Carmo, que me inquietava imenso. Causava, ao mesmo tempo, tanto terror como gargalhada. Ainda hoje a lembro com muita saudade e profunda admiração. Ela era uma actriz extraordinária. As pessoas podem pensar, ah, herdou da sua avó. Não é isso, já tinha esse instinto.

Que terá a ver alguma coisa com sobrevivência? E com a ideia de que para se sobreviver é preciso construir algo todos os dias? Ser um trabalho, e não uma missão, algo que se aproxima mais de uma construção artesanal, é algo que a acompanhou sempre, correcto?
Sim, tive sempre essa ideia de trabalho artesanal. Durante muitos anos eu fiz teatro porque fazia teatro. Mas só aos 28 é que me apaixonei definitivamente pelo meu trabalho. Digamos que passou a existir uma consciência que, até então, ou não existia, ou era muito ténue. Não tinha ainda sido desenvolvido em mim o amor, a curiosidade e o interesse pelo meu próprio trabalho. E essa mudança foi muito importante para mim. Mesmo muito. Sou ambiciosa em relação ao meu trabalho. Gostaria que o meu trabalho tivesse interesse, que fosse realmente bom. E eu penso que isso nunca se consegue. Uma personagem mais complexa e mais difícil - conseguimos chegar à beira dela? Talvez tenhamos a sorte de a agarrar um pouco, mas...

Mas isso nem é a personagem, é só a sua leitura da personagem. Outras pessoas chegariam lá de outra forma.
Exactamente. Mas é para isso que serve o encenador, que é o nosso grande farol.

Quando está a falar em ambição, está a falar em compreender que pode nunca se chegar lá, mas que se vai fazer tudo aquilo que estiver ao seu alcance para lá chegar?
Sim, trabalhando, ensaiando... É a única maneira.

E é aí que a vida se confunde com o trabalho.
Sim, fica tudo um bocado misturado. A partir de certa altura, de certa idade, quando os meus filhos partiram para construir a sua própria vida, aí sim, eu fiquei bem comigo própria. E o meu trabalho no teatro passou a ser qualquer coisa que está muito misturada, tal como diz, com a minha própria vida. Quando estou com os meus cães e gatos em casa, e quando faço alguma refeição para mim, ou quando estou a preparar uma peça, eu estou sempre aí, lá, na peça, no texto, a pensar como é que seria melhor. Eu digo sempre que o encenador é, para mim, fundamental. É o meu leme, o meu farol, é a criatura que indica caminhos.

E que também a ajuda a não mergulhar e a desaparecer completamente na personagem.
Exacto. Tem de haver ali uma bóia, um autocontrolo, uma visão do lado de fora. A dada altura uma pessoa está tão envolvida que alguém tem de lhe chamar a atenção.

Com tantas peças e tantos anos, pode cair-se em vícios...
Exactamente. Essa é que é a luta. É muito difícil fugir de determinados tempos e inflexões, de não surgirem imediatamente tons e cair neles. Há uma grande facilidade da actriz, ou do actor, em fazer isso. Está-lhe na pele, é-lhe fácil. Fugir disso, ou ter isso sempre em mente, é fundamental. É preciso evitar ir para essa zona. O público hoje conhece quais são os teus truques. E há que fugir disso. O fugir disso faz com que a imagem que dei há pouco, dos meus cães e dos meus gatos e da minha cabeça absorvida por isso, seja muito importante. Tudo me serve para eu me lembrar do papel, essa é a forte razão que me leva a ficar tão absorvida. Quando se está a tentar criar uma personagem, é muito difícil não usar sistemas, tempos e inflexões anteriores. É preciso procurar outras formas.

Olhando para o seu percurso, há textos que se acharia óbvio que tivesse feito. São poucos os textos de Shakespeare, de Brecht, de Racine...
Não se esqueça que a revolução foi em 1974 e eu nasci em 1928. Portanto, perdi muito. Eu e os meus colegas perdemos muito. Fomos dos mais prejudicados. Os grandes dramaturgos foram proibidos. O próprio Shakespeare foi proibido...

Isso faz-lhe pensar na maior facilidade ou na maior dificuldade em ter continuado a ser actriz em Portugal?
Não, quando penso nessa fase, penso naquilo que perdi e já não podia fazer quando chegou a revolução. Mas fiz algumas coisas que foram interessantes e, de qualquer modo, o que é importante na minha carreira está tudo feito depois do 25 de Abril. Mas mesmo assim houve grandes heroicidades no teatro português. Eu tive duas peças, A Mãe, de Stanislaw Wiktiewicz [1971], e O Barão, de Branquinho da Fonseca [1969], que foram proibidas no dia do ensaio geral, já com tudo pronto. Nos últimos tempos, o sistema tinha-se modificado, mas no fundo, e apesar de tudo, para pior. Parecia tudo muito mais fácil, mas não era. A censura dizia: preparem e depois nós vemos. E nos estávamos dois meses a ensaiar uma peça e depois no próprio dia diziam que não. Isso é uma coisa terrível.

Nessa altura não havia um sistema de autocensura? Se eu fizer isto ou aquilo, se for por aqui... A dada altura começarem a encontrar-se mecanismos para contornar...
Para estes autores, não. Houve autores que não se apresentaram. O Brecht foi vítima disso. Mas depois havia coisas revoltantes. Por exemplo: A Boa Alma de Setsuan, de Brecht, foi apresentada por uma companhia brasileira [em 1960, por Maria Della Costa, no Teatro Capitólio], mas não era permitido que nós a fizéssemos. A nossa geração foi muito magoada. O mestre Ribeirinho conseguiu fazer [em 1957] a Noite de Reis, que foi, para mim e para muitos de nós, o primeiro Shakespeare.

Em alguma altura pensou em sair do país?
Sim, mas eu perdi a minha oportunidade quando acabei o curso do Conservatório com 17 anos. Depois disso não. Eu sou muito agarrada à minha terra e ao meu país.

Fizeram-lhe convites?
Não, era uma ideia minha. Gostaria muito de ir para Inglaterra mas podia ter ido para mais perto, para Espanha.

Falava inglês ao ponto de poder trabalhar em Inglaterra?
Não, teria de aprender. Depois logo se via.

"Logo se via", era também como vivia cá.
Sim, era.

Só que a dada altura, em 1951, o teatro não lhe chega, e desiste. Pára. Diz que quer ter uma experiência...
... real, diferente.

Na altura, já com tantos textos e tantas personagens feitas, o que é que não se aprende no palco que só se aprende na vida?
Francamente, não sei o que se aprende. O que sei é que nessa altura já estava muito cansada. Tinha muitos anos de profissão, apesar de ter só 23 anos. Já era profissional há dez anos, já tinha protagonizado peças. Resolvi deixar o teatro e fui trabalhar para um balcão de uma loja [no Príncipe Real]. Eu sou, por princípio, uma pessoa muito desprendida, não fico assim apanhada por coisas que façam muito barulho e tenham muitos brilhantes. Fui sempre assim. É engraçado... Quando estava a fazer cinema, ou teatro, recebia o meu dinheiro, punha-o na gaveta da cómoda do meu quarto e pronto. Não estava ali presa a nada. E a minha mãe dizia-me: "Pois, pois, pois. É porque estás a ganhar muito bem. Um dia estás a ganhar pouco, e vais ver." E eu achei muito graça, porque, quando estava a ganhar 800 escudos ou um conto de réis no balcão da casa das cortiças, tratava o dinheiro da mesma maneira. Estive ali oito meses e depois saí. Não chegou a um ano.

Diz-se que as pessoas faziam fila para ver a actriz ao balcão.
Faziam [risos]. Mas eu tinha um patrão excelente, o Mr. Cork, um bom homem, bonacheirão, sempre muito humano para mim.

Ele sabia quem a Eunice era?
Sabia e achava muita graça. Achava que era um disparate, queria sempre convencer-me a não fazer nada. Depois fui para a fábrica Celcat, onde fui secretária do director técnico [e conheceu o segundo marido]. Estive lá quatro anos, até o Vasco Morgado, que tinha sido meu empresário e me esteve sempre a desafiar, me convenceu a regressar para fazer a Joana d"Arc, do Jean Anouilh [1955]... Antes disso tinha recomeçado no teatro radiofónico.

Durante esse período, ia ver espectáculos, estava com as pessoas do teatro?
Não. Raramente ia a algum lado, estava com outras pessoas, que não tinham dinheiro para ir ao teatro. Estava a observá-los, que é uma coisa que estou sempre a fazer na vida.

Parar não foi um capricho, era mesmo uma necessidade?
Sim. E era o interesse de conhecer outras pessoas, outro mundo, outras profissões, outros sonhos. Ali tinha o operariado e tinha os desenhadores. E foi muito bom conhecê-los, saber e sentir quais eram os interesses deles. E como eles no fundo achavam graça que eu tivesse feito isso, provavelmente eram capazes de pensar, mas nunca me disseram que eu ia voltar.

Mas a sua cabeça estava feita de que não voltaria?
A minha cabeça nunca esteve feita de que não voltaria. Estava feita para uma ausência, e assim foi.

Se tivesse que falar dessa rapariga que começou vinda dos palhacêros [a trupe ambulante dos seus pais], depois foi para o Teatro Nacional e saiu e voltou, falava dela como?
Olhando para trás, acho que percebo que eu [pausa]... acreditei sempre muito em mim. Estou a falar da actriz. Essa rapariga foi crescendo, vivendo e tendo a sua vida sentimental, e outras vezes não tão sentimental assim, às vezes só trabalho. Mas eu tive sempre uma grande confiança em mim. Foi essa confiança que me disse ser necessário começar a fazer espectáculos interessantes e não os textos sem grande nível e comediazinhas que ajudaram a criar em mim a ideia de, aos 23 anos, já estar cansada, de querer ir embora. Portanto, acreditei sempre nas minhas capacidades, no meu poder de luta e no meu sonho.

Quando voltou sentiu que voltou com mais energia...
Muito mais.

Para não mergulhar e conseguir, aí sim, separar as coisas, a vida profissional e a vida pessoal?
Sim, aí comecei a separar.

A Eunice tinha essa aura de ser uma estrela. Isso, imagino, tornava as coisas mais fáceis.
Era relativamente fácil, porque todos os empresários estavam interessados em me terem contratada. Era mais fácil também porque a minha vida particular era tranquila. Vivia o segundo casamento, vivia fora de Lisboa e tinha uma vida muito calma, com um companheiromuito dedicado.

Conhece aquela frase da Rita Hayworth, de eles quererem dormir com a Gilda, mas acordarem com a Rita? Acha que os homens se apaixonavam pela Eunice Muñoz e a ideia que se fazia dela? Como fazia para ultrapassar a imagem?
Nunca constituiu um problema. Claro que sentia que era uma mulher interessante, mas não se pensa sequer nisso. Acho. Os meus maridos foram sempre muito compreensivos, e não é fácil. As actrizes têm uma vida muito apanhada pela profissão. E se não se tem um companheiro que perceba isso, e se sacrifique por isso também...

Como é que isso se equilibra com a ambição profissional? A dada altura tem de dizer a si mesma: tens de parar?
Pessoalmente nunca fui muito ambiciosa. Com as personagens sim, sou. Eu considero a ambição um defeito, não uma qualidade. Eu acho bem que se seja ambicioso, e se eu o tivesse sido certamente que tinha conseguido outras coisas. Teria conseguido muito mais do que aquilo que me aconteceu, que foi estar à espera que me trouxessem papéis para eu fazer. Durante uns anos, os primeiros dez anos, fazia-os porque era uma questão de sobrevivência também. Tinha muito a ver com isso, porque volta e meia havia coisas que me interessavam. Mas eu tive uma mestra, que foi a Amélia Rey-Colaço, que me deu muitos ensinamentos importantes, um deles foi a relação com a ambição. Eu nunca lutei por um papel. Quando fiz grandes papéis, como a Mãe Coragem [1986] ou a Zerlina [1988], foram os encenadores que acharam que aquela peça era própria para mim, e eu disse-lhes que sim.

A não ser o caso de As Memórias de Sarah Bernhard [1984], que foi uma escolha sua.
Sim. Vi-a em Paris e falei nela ao director do Teatro Nacional, o dr. Braz Teixeira. Foi a única vez.

Fê-la porque? Estar a contar a vida de uma actriz é estar a contar a sua própria vida?
Sim, enfim, eu não podia ser tão caprichosa como ela foi [risos]. Não tinha esse direito, não estava ao mesmo nível [risos].

Sabendo que, quando pensamos num panteão para grandes actrizes, temos de lá as por às duas...
Não... [risos]. Quando eu morrer, espero estar com a minha família, esperando que ainda estejam comigo. Há muito tempo fiz uma carta, que deixei ao meu filho mais velho, a dizer que quero ser cremada.

Mas para lerem depois de a Eunice morrer ou já a abriram?
Não, eu já lhes disse o que lá estava. Pedi que as minhas cinzas fossem espalhadas no poço no Alentejo onde brincava com o meu irmão quando era pequena [na Amareleja].


Pensa nisso, na morte?
De vez em quando penso, tenho consciência disso.

Muitas das entrevistas que li suas, feitas há 15 ou 20 anos, foram feitas numa altura em que se aproximava da reforma. E dizia que ia continuar a trabalhar apenas até conseguir pagar um monte no Alentejo. Já o pagou?
Oh, não há casa nenhuma. Era um projecto, mas nunca o cheguei a fazer. Nunca surgiu. O que surgiu eram coisas que não me interessavam. Provavelmente o monte estava na minha cabeça e não existia.

É a ideia de que se fizer mais uma peça se mantém activa e a ideia de que a vida se vai empurrando continuamente, fingindo que o tempo não passa? Mas não há grande volta a dar...
O tempo passa. Nem imagina. Quando chegar à minha idade [82], vai ver a velocidade com que ele passa. Chega a ser assustador. Hoje é segunda-feira, amanhã é sexta. Que idade é que tem?

31.
Ah, 31. Imagine [risos]. Pois, não sabe...

As coisas tornam-se mais importantes?
Sim, muito mais. É extraordinário. Há momentos em que me sinto muito bem, não me importo nada de ter a idade que tenho. E aí sou capaz de parar. Isso é muito bom. Parar e olhar para as coisas, de as precisar de outra maneira. É natural, porque, no fundo, há a consciência de que temos muito tempo para isso.

E depois há outros momentos.
Sim, em que é uma maçada [risos]. Há outros momentos em que os joelhos doem. Esses momentos não são muito agradáveis, mas eu faço o possível por passar por cima deles. Aí sim, eu sou orgulhosa. Eu não quero que isso tome conta de mim. Não quero, não quero. Por isso, trato-me e cuido-me, para sentir isso o menos possível. Eu jamais terei pena de mim própria. Jamais. Acho que é um grande orgulho, isso é bom para mim. Não vale a pena pensar o contrário. Porque o faria? O tempo passa e é difícil, mas no fundo é mais difícil ele passar quando se olha para o espelho. Estamos a ver a nossa viagem e os estragos que o tempo está a fazer.

Quando olha para o espelho, está a ver-se a si ou a recordar-se da imagem que têm de si?
Pois é, quando se tem a minha idade, esquece-se da imagem. Não se lembra. Eu esqueço-me. E quando olho para o espelho, vejo-me e digo logo: que maçada [risos], esta sou eu.

Todas as coisas que foi fazendo, o que foi sendo escrito, as fotografias que existem, os papéis que fez, sente que isso pertence a alguém que não é a Eunice?
Sim. Separo, de facto, as coisas.

Mas quando diz que lhe doem os joelhos, não pode dizer que são os da personagem...
Nããããooo.... São os meus [fecha o punho e cerra os lábios]. Que maçada [risos].

Voltamos à ideia da incapacidade de separação. A idade vai-nos tornando capazes de separar o essencial do acessório, mas o teatro não resolve tudo.
De certa forma, sim.

Quando aceita convites para fazer mais peças, aceita-os porquê?
Aceito-os porque me é necessário. Aceito-os porque enquanto eu puder, enquanto for possível e não fizer disparates em cena, a minha existência precisa disso. Porque o facto de me afastar do espectáculo, ou da televisão, porque também é representar, mesmo que no meu orgulho de actriz não seja assim tão importante quanto isso, depois eu vou para casa... [pausa] não, depois não me sinto tão bem como quando estou a trabalhar. A diferença é enorme. Sinto-me muito solitária, sinto-me solitária demais. Preciso do contacto com os colegas, com os textos, com os encenadores, com a aprendizagem, no fundo. Eu acho que isto não são só palavras. A aprendizagem em teatro vai até ao fim, até desaparecermos, até não podermos representar. Mas é bom que não se perca a lucidez. É um exagero a ideia de morrer em palco.


Não acha que já chegou a idade na qual podia sentir-se auto-suficiente, em que podia estar tranquila consigo?
Mas não estou. Gostaria que fosse sempre melhor.


Nos dias em que não está a representar fica a pensar: e hoje vou fazer o quê?
Exactamente. Sinto-me solitária. Inquieta. Quando não é por muito tempo, acho bem. Como fico muito apanhada quando se está a ensaiar - ficamos todos nesta profissão -, quando deixo de fazer tudo isso durante poucas semanas estou bem. Vou fazer tudo aquilo que não posso fazer quando estou a preparar um espectáculo. Mas depois, se começa a demorar muito [risos], começo a ficar triste, a ficar [pausa] cansada, cansada por não me cansar a fazer um espectáculo.

Mas protege-se ou não? Há dias em que, imagino, se sinta mais cansada, outros mais efusiva...
Protejo-me pouco, porque gosto muito de trabalhar e o mestre [Carlos] Avillez pergunta-me se quero continuar, porque tem sempre muito cuidado comigo, pergunta-me se eu quero fazer e se me sinto bem. Mas eu cuido-me. Tenho algumas mazelas e, por isso, trato-as.

Protege-se inclusivamente daquilo que as personagens pedem?
[Risos] Mas aquilo que as personagens pedem eu tenho que lhes dar, sem pensar em mim [risos]. Nesse caso, primeiro estão elas.


Aí concede.
Aí concedo. Aí dou tudo. Mas tenho de ter cuidado, porque posso dar tudo mas não dar bem. É importante que dê tudo mas dê bem.


Esse bem é uma coisa que a Eunice define ou depende da avaliação dos outros?
É a consciência que eu tenho...[pausa] a verdade é que eu nunca estou satisfeita com o que quer que seja. E portanto existe sempre essa luta comigo própria de que não é assim. Não me sinto bem, não é sincero, não é verdade, não há entrega. E realmente é uma profissão onde tem de haver entrega. Se não houver entrega, não vejo que possa existir qualquer possibilidade de chegarmos a quem nos está a ver e ouvir.

Para si, "antes quebrar que torcer" também podia servir para a definir.
Sim.

tiago.costa@publico.pt

 

 

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