"Mubarak foi-se e o país não caiu", agora é dar o benefício da dúvida

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A manifestação de ontem foi uma comemoração da vitória da revolução Mohamed Abd El-Ghany/Reuters

"Afinal, sobrevivemos!", gritou Zahara, de 22 anos, enfermeira, que acabou de colocar uma flor no monumento erguido na praça em memória dos seus mais de 300 mártires. "Mubarak foi-se e o país não caiu. Não foi o caos. Não aconteceu nada de desastroso. Acho que muita gente ainda está surpreendida com isso. Afinal, podemos viver sem ele. Afinal, podemos ser livres".

"Esta foi a semana mais feliz da minha vida", disse Belal Kassam, de 34 anos, engenheiro civil, que pela primeira vez trouxe a família toda - mulher e dois filhos - para a praça. "Nunca pensei que a experiência de viver em liberdade fosse tão arrebatadora. Nem se consegue fazer mais nada", disse ele, a rir. "Mas agora temos de pôr o país a funcionar de novo".

Apesar da aparente normalidade que regressou às ruas, a maior parte dos bancos ainda está fechada, bem como as escolas e universidades. E os turistas, claro, ainda não voltaram. Não se sabe quando perderão o medo. Um cartaz na praça dizia, em inglês: "Apoie a liberdade. Visite o Egipto."

Entre os manifestantes e os jovens organizadores da revolta, o clima era de triunfo. A manifestação de ontem foi uma comemoração da vitória da revolução. As pessoas confiam nos militares e no processo que se seguirá. "Estamos num momento em que é preciso ser-se construtivo", disse Belal. "A revolução não é só protestar. Também é ser paciente, negociar, dar o benefício da dúvida. E temos de mostrar aos nossos companheiros que estão a lutar na Líbia, no Iémen e no Bahrein que vale a pena. Que a revolução não provoca o caos, nem a destruição do país. Agora temos de dar o exemplo. Assim como a Tunísia foi uma luz para nós, agora seremos uma luz para outros".

"Temos de estar vigilantes"

No entanto, há quem exprima alguma desconfiança em relação às intenções dos militares. Há quem diga que, se antes eles já tinham o poder quase todo, agora, com as demissões do Presidente e do Parlamento, têm-no mesmo todo. "Para já, prometeram fazer o que é correcto. Mas temos de estar vigilantes", disse Ahmed Rachid, de 25 anos, um economista ligado ao Movimento 6 de Abril. "Entre a liderança militar há muitos que acham que pouco ou nada deve mudar. O problema é que eles têm muitos privilégios. Eles, de facto, mandam na economia. E não vão largar essas benesses por sua livre iniciativa".

Uma parte significativa da economia do Egipto está nas mãos das Forças Armadas. Há quem fale em mais de 30 por cento, sob várias modalidades de controlo. Uma delas é directa: o Exército possui fábricas, de carros, electrodomésticos e outros produtos, lares, asilos e resorts turísticos. Estas empresas especiais não pagam impostos nem apresentam contas, e usam a mão-de-obra de jovens que cumprem o serviço militar obrigatório.

Outro tipo de controlo é a posse de empresas, a título individual, por parte de generais ou ex-generais. Em troca de serviços prestados e lealdade, era normal Mubarak atribuir funções de CEO de grandes empresas a generais na reforma. Ou no activo. Por outro lado, quando o Presidente, numa propagandeada campanha de liberalização da economia, decidiu privatizar parte das empresas estatais, entregou-as simplesmente, a preços simbólicos ou falsos, aos amigos militares.

"Eles são a favor da centralização da economia", explicou Rachid. "Dizem que o liberalismo só traz corrupção. O marechal Tantawi já por várias vezes foi responsável, no tempo de Mubarak, por impedir medidas de liberalização económica".

Desde a queda do Presidente, e até antes, a liderança militar está a lançar uma cruzada contra a corrupção, que já levou à detenção de vários membros do anterior Governo e poderosos homens de negócios ligados a Mubarak ou ao seu filho, Gamal. Foi o caso do industrial do aço Ahmed Ezz e seis ex-ministros. O pretexto são acusações de corrupção, mas vários elementos da oposição constatam que o Exército está a afastar do caminho os mais importantes adeptos da economia de mercado.

Entre os jovens que organizaram a revolução no Facebook, vários estão ligados a grupos marxistas. Para estes, o facto de os militares quererem manter o controlo das forças produtivas não é visto com maus olhos, desde que avancem com medidas sociais e que criem emprego.

Mas outros - talvez a maioria - dos "jovens do Facebook" têm sensibilidades políticas mais liberalizantes. Esses estão apreensivos. "O que é preciso é manter a vigilância", disse Rachid. "A definição política do regime será decidida mais tarde, nas eleições. Por agora temos de zelar para elas se realizarem de forma transparente, democrática e justa."

Os festejos decorreram por várias zonas do Cairo, e outras cidades. Em muitos bairros, a população organizou "piquetes de limpeza", e foi para as ruas armada de vassouras e pás. "Ninguém nos mandou fazer isto", contou Farah, de 18 anos, no bairro de Al Basr. "Alguém teve a ideia, e logo se formaram grupos, e se distribuíram funções e áreas. Isto mostra como o povo egípcio tem capacidade de realizar o que se propõe".

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