Onde estavam os pobres do Egipto na revolução?

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As crianças dos bairros mais pobres do Cairo nunca foram à escola ASMAA WAGUIH/REUTERS

Nos bairros miseráveis do Cairo não há Facebook, nem empregos, nem escolas, e as pessoas mal souberam que se preparava a queda do regime. Nos cafés de Berek el Khiem ou Al Azhar e El Gamalia ninguém se lembrou de ir manifestar-se para a Praça Tahrir. Chegaram atrasados à revolução e ela agora também pouco poderá fazer por eles. Por Paulo Moura, no Cairo

Jamil é um jovem da geração Facebook, tem 19 anos, já nasceu na era da Internet, em que todos têm acesso a tudo, querem ser livres e mudar o mundo, mas veste um blusão roto, está descalço e tem os pés sujos, não sabe ler e vive num bairro onde no único cibercafé existente os computadores não têm ligação à Internet.

Qualquer bairro tem o seu "ciber", e Berek el Khiem não podia ficar atrás, mas os computadores são muito antigos e não estão ligados a nada, ficaram sozinhos numa era de trevas, só servem para jogos. Berek el Khiem é uma cidade dentro da cidade. Não fica longe do bairro turístico de Kardassa, e, em teoria, pertence ao 6 Octobre City, um bairro social de prédios de tijolo mandado construir no distrito de Gizé, nos arredores do Cairo, para albergar gente da rua. Mas na prática está fora de qualquer lógica social: as casas foram quase todas construídas por quem as habita, não há escola nem hospital e os sistemas de esgotos e de recolha de lixo há muito não funcionam.

Pelas ruas de terra, cheias de buracos e atapetadas com dejectos, passam carroças puxadas por burros, passeiam ovelhas e cabras. Há pó e lixo por todo o lado, bancas onde se vendem pacotes de bolachas muito velhos, lojas sem nada e talhos com carne de camelo visivelmente podre, coberta de moscas, a 45 libras (6 euros) o quilo. As vielas cheiram mal e estão cheias de crianças.

"Acho que sim, que é bom", diz Jamil a respeito da revolução, e ri-se para os amigos. São cinco a jogar dominó no Aiset Ayed, o único café do bairro. Têm entre 18 e 20 anos, nenhum deles trabalha e nenhum foi à escola.

Sabem o que se passou na Praça Tahrir? "Não", diz Jamil. "Problemas, não é?" Riem todos. São alegres e cultivam um certo estilo de rufias, nos cabelos e barbas. Só um deles alguma vez trabalhou: Samir. Andou a esgaravatar no lixo, procurando coisas para vender. Chegou a fazer 30 libras por dia. É um negócio bem montado no bairro, com um circuito definido e gente nas várias fases da operação. Se há uma especialidade em Berek el Khiem, é esta. Sabem de lixo como ninguém.

Talvez por viverem nele. As autoridades municipais não fazem recolha. São as mulheres de cada família que levam o seu lixo à cabeça, em baldes, até à praça grande. Despejam-no lá, porque é o único local onde há espaço. Funcionários da câmara prometeram ir buscar os dejectos, com um camião, pelo menos uma vez por semana. Mas não vão, há vários meses, e o lixo acumula-se em montanhas na praça principal. Criou uma espécie de ecossistema nauseabundo. A partir de certa altura, as coisas podres já não apodrecem mais. Sofrem mutações, ganham vida. Sobre os pitorescos montes e vales de dejectos, saltitam aves de bico comprido e asas brancas como gaivotas.

O sistema de esgotos também já funcionou, um dia. Cada conjunto de casas tem uma fossa. Quando está cheia, um veículo dos serviços municipais deveria vir evacuá-la, com uma bomba. Mas nunca vem, e as fossas transbordam para as ruas. Rios nojentos e infectos correm pelos becos, e as pessoas põem panos nas entradas das casas para impedir que a imundície entre.

Salama, 48 anos, túnica cinzenta e sapatos rotos, tem uma das profissões mais prestigiadas do bairro: vende frangos. Mas como agora ninguém tem dinheiro para lhos comprar, ele distribui-os de graça. Um frango não é um produto que se possa guardar para dias melhores. Tem vida curta e portanto é melhor que dê o seu contributo à sociedade.

"Eles também têm de colaborar", ri-se, com os dentes todos podres, Salama, que tem 9 filhos, dois deles já casados e também com filhos. Vivem todos no mesmo apartamento, de 50 metros quadrados, arrendado por 300 libras (40 euros) mensais. Dezassete pessoas no total. "Deve ser bom. Estou contente", diz ele da revolução. Só soube agora, quando a televisão estatal falou finalmente do assunto. "Caras novas, é sempre bom."

Mas o homem mais rico do bairro talvez seja Asim. É sobrinho do dono do café e tem carro e a sua própria loja de papiros em Kardassa, para turistas. Construiu casa na zona mais nobre de Berek el Khiem: a praça do lixo. Vive lá com a mulher e os três filhos, que dormem em quartos com vista para o esterco. A filha mais velha chama-se Amina, tem 9 anos e quer ser professora primária. O pai leva-a à escola no 6 October City, de carro. Mas começou, com um grupo de amigos, a construir uma escola no bairro, para que um dia Amina lá venha a leccionar. Interromperam os trabalhos o mês passado, porque lhes faltou o dinheiro para comprar tijolos. "Também estou a construir mais dois andares por cima da minha casa, para os meus filhos", diz Asim.

Além dos biscates com o lixo, não há empregos em Berek el Khiem. A maioria da população do bairro são jovens e crianças. Quase nenhum deles sabe ler e escrever. Nenhum terá uma profissão. Vivem numa ilha perdida, não contam nem para as estatísticas.

Um homem influente

Noutros bairros mais próximos do centro, como Al Azhar e El Gamalia, há outras possibilidades. É uma das zonas turística e culturalmente mais importantes da cidade. A Universidade de Al Azhar, uma das mais antigas do mundo, é o principal centro de literatura árabe e cultura islâmica sunita. Ao lado fica a mesquita de Al Azhar, construída no século X, e o mercado Khan al Khalili, hoje especializado em vender artesanato sofisticado, ouro e diamantes aos estrangeiros. Al Azhar e El Gamalia, no entanto, são dos bairros mais pobres do Cairo.

Mohamed el Saedy vive com a mãe e uma irmã num velho apartamento de duas divisões. É solteiro, tem 42 anos, e a única vez que realmente trabalhou foi há sete, como empregado de um café. "Foram tempos muito bons. Foi a altura da minha vida de que mais gostei. Mostrei que tenho capacidades para desempenhar uma função."

Mas desentendeu-se com o patrão e nunca mais fez nada. Ou melhor: encontrou os expedientes possíveis. Como conhece bem o bairro, tornou-se um homem de mão, um intermediário, um desenrascador. Para Mohamed, a vida dos cafés e outros antros da ociosidade forçada não tem segredos. É um homem com a sua influência, e faz render isso sempre que pode. Não trabalha para a polícia, como tantos outros, porque isso é contra os seus princípios. Mas dá uma mãozinha a alguns candidatos, em períodos eleitorais. Nas últimas legislativas, ajudou um independente e um outro do PND, o partido do poder. "Ajudar" significa comprar votos no bairro. "Eles davam-me o dinheiro, e eu levava as pessoas a votar, mediante uma pequena gorjeta", explica Mohamed em frente ao prato de feijões cozidos que é a sua refeição do dia.

Quando acabou a votação, Mohamed tinha outra tarefa: ficar na mesa de voto, antes da contagem e depois de a polícia fechar as portas para não deixar entrar mais ninguém, a preencher boletins com uma cruz no PND. "Fiquei lá dentro duas horas, com uma resma de boletins em branco à minha frente. Ainda preenchi umas largas centenas. Recebi 50 libras [59 euros]."

Mas há outros ganchos, porque em épocas não eleitorais também é preciso comer. Para comprar drogas no bairro, por exemplo, Mohamed é o homem a procurar. Não trafica, mas é o intermediário perfeito, para evitar incómodos ou o contacto directo com a criminalidade.

Quando, a 2 de Fevereiro, a Praça Tahrir foi atacada por grupos armados supostamente pró-Mubarak, foi Mohamed el Saedy quem recrutou o contingente do seu bairro. "Uns tipos do partido, que eu conheço, vieram pedir-me. Disseram que era para uma manifestação. Se tivessem explicado que era para a violência, eu não teria colaborado. Sou contra isso", diz, sentado num sofá imundo, por baixo de um quadro com uma frase do Corão, outro com cavalos numa planície e outro com um xeque de barbas. "Paguei 30 libras [35 euros] a cada um dos rapazes. As pessoas aqui fazem qualquer coisa por dinheiro."

Empregos ninguém tem. "Só os ricos conseguem", diz Mohamed, que, nos primeiros dias dos protestos, participou num ataque à esquadra de El Gamalia. "Toda a gente aqui odeia a polícia. Eram eles que nos impediam de trabalhar, de vender coisas nos mercados. Só defendiam os comerciantes de Khan al Khalili, que lhes pagavam fortunas todos os meses. Dantes, este bairro era dominado pela polícia. Passeavam-se de um lado para o outro, nos seus carros ou motos, com o objectivo de se exibirem e perseguirem as pessoas."

Um dia, foram a casa de Mohamed dizer-lhe que teria de sair, porque o senhorio queria vender o prédio. Mohamed, que vive nesta casa desde que nasceu, recusou-se. No dia seguinte, a polícia mandou um grupo de criminosos, para o espancarem. "O problema é que eu conheço os bandidos todos. Falei com eles, nunca mais cá apareceram. Sabem que também precisam de mim."

Mal se ouviu dizer que a revolta começara, a esquadra do bairro foi incendiada e assaltada. Al Azhar e El Gamalia davam assim o seu contributo à revolução. E foi tudo. Ninguém daqui foi à Praça Tahrir manifestar-se, ou publicou comentários no Facebook. "As pessoas têm medo dessas coisas. E não acreditam que seja possível fazer algo para mudar o sistema. Acordam cada dia e pensam: como vou arranjar dinheiro para comer? Só fazem alguma coisa se lhes pagarem", diz Mohamed, que seguiu os eventos pela televisão, através de um sistema clandestino de descodificadores de satélite que alguém instalou no bairro e ao qual se acede por 10 libras mensais (12 euros). "Fiquei todas as noites a ver a Al Arabyia, até às 4 da manhã."

Mas para ele a revolução talvez tenha chegado demasiado tarde. Tudo o que aprendeu na vida foi a sobreviver num sistema que agora terá de ser mudado. "Estou disponível para qualquer coisa. Posso fazer qualquer trabalho", diz. "Estou habituado a lidar com políticos. Mas as pessoas aqui do bairro não vão compreender a mudança. São muito negativas. A única coisa em que vão pensar é em tirar partido da situação."

Sobreviver, apenas

Também em Berek el Khiem é demasiado tarde ou demasiado cedo. Que poderá a revolução fazer pelos jovens que não aprenderam a ler? E a construção de uma escola ainda virá a tempo das crianças que chapinham nas ruas luzidias de esgoto? As ruas cheias de latas, caixotes, vidros partidos, sacos de plástico, excrementos, coisas sujas e ferrugentas, porcarias.

Um miúdo brincando com uma bola de trapos faz macacadas para a fotografia. Duas meninas descalças, sujas, sorriem com lábios gretados e rugas nos olhos, indiferentes ao líquido escuro e fétido que corre entre os dedos dos seus pés.

Berek el Khiem não participou na revolução. Ninguém lhes disse nada. Ninguém lhes perguntou a opinião. Ficaram para trás e agora que podem fazer? Que se pode fazer por eles?

Jamil e os amigos nunca viram uma página do Facebook. Nunca enviaram um Twitter. Sem escolaridade nem emprego, não sentem sequer que façam parte da sociedade. Tal como mais 40 milhões de pobres no Egipto inteiro, foram despojados de tudo.

Mas não culpam o regime. Vêem-se a si próprios como incapazes. Ambicionam apenas sobreviver. Por eles, nunca teriam feito nada para derrubar Mubarak ou alterar as regras de uma sociedade que os considera inferiores. Não basta ser oprimido para organizar a revolta. Precisavam de mais anos, de mais décadas, para ganharem consciência. Viveram de menos e viveram de mais.

E, no entanto, ainda que à margem, mantiveram-se vivos. Preservaram a solidariedade, a capacidade de adaptação, a alegria e a dignidade. A sua humanidade, intacta. À espera do seu momento de redenção. Mas já ninguém vai a tempo. Uma geração ou duas estará perdida.

A revolução não esperou por eles. Eles bem lutaram. Construíram casas, esgravataram no estrume, estancaram o fluxo dos esgotos, os homens dividiram os frangos, as mulheres correram descalças pelas ruas de terra e trampa com baldes de lixo à cabeça, resistiram, acreditaram, esperaram, amaram, fizeram filhos, mantiveram viva nos olhos apaixonados uma brasa latejante de sangue humano. Mas não chegaram a tempo da revolução.

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