A história da bailarina que se tornou coreógrafa, mas nunca deixou de cair

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Os movimentos de Carlota Lagido, e o seu corpo real, que não controla a sua ansiedade e a sua intensidade, não couberam em lado nenhum na dança clássica Nuno Ferreira Santos

Ao longo de mais de 20 anos Carlota Lagido foi bailarina, coreógrafa, figurinista e tudo o resto. Viveu várias vidas, fora e dentro dos palcos. Hoje, na Eira 33, em Lisboa, reúne parte do seu percurso num ciclo que revisita um dos percursos mais singulares da dança portuguesa

Há uma imagem que Carlota Lagido guarda do seu trabalho e tem tudo a ver com a sua vida. Ao fim dos 13 anos que já leva a coreografar, descobriu-a ao ver outra bailarina, Tânia Carvalho, a fazer o solo not forget not forgive, que criou para si mesma em 1999: "É a imagem de uma bailarina em queda, em fuga permanente, com um peso que a atrai ao chão."

É esse abismo, ou essa densidade que sobressai hoje, no dia em que começa na Eira 33, em Lisboa, um ciclo em torno da sua obra coreográfica e plástica.

O arco criativo que vai desse solo - apresentação hoje às 20h30 - à peça de grupo monster (amanhã, 21h30), assinada exactamente dez anos depois, é um reflexo do que tem feito ao longo dos anos, reconhece. "Estou sempre a fazer as mesmas coisas. Há uma linha fundamental, que é o corpo que permanece e se relaciona com a morte, claro." Mas o que o corpo faz realmente é estar permanentemente em esforço. Daqui, desta contradição, o desequilíbrio que sustenta a sua obra.

Uma obra que parte sempre "de exercícios de improvisação que [lhe] permitem ir descobrindo os corpos". Monster, uma parede humana que avança na nossa direcção, não é mais do que isso: corpos que se descobrem em desequilíbrio.

Um jogo de tensões entre a forma e o conteúdo que "tem tudo tem a ver com a [sua] vida pessoal", assume. "Eu vi-me sempre como uma bailarina em autodestruição. Era bruta, fiz muito mal ao meu corpo." Exemplo maior disso é a coreografia de Meg Stuart, Disfigure Study (1991) em que Carlota era a mulher-objecto puxada pelos cabelos, arremessada por todos os cantos, levada a extremos que rompiam a composição e a leitura imediata. A explicação está lá atrás no tempo: "Comecei na tortura do clássico. Adorava aquilo."

Dançar foi coisa que lhe veio de dentro: "Senti sempre que era por aí, e aos 13 anos apaixonei-me pelo ballet. Queria ser bailarina, mesmo." Mas quando foi para o Ballet Gulbenkian, depois de experimentar o clássico na escola de Margarida de Abreu, percebeu que o seu corpo não cabia "na visão misógina da bailarina", magra, sem peito, construída. "Eu tinha um rabo e mamas, só", e ri-se. Ri-se muito. Porque a presença de um corpo real, de um corpo que não controlava a sua ansiedade, e a sua intensidade, fizeram com que os seus movimentos não coubessem em lado nenhum. Faltava-lhes "um contexto".

Lisboa-Nova Iorque-Lisboa

É quando vai para Nova Iorque que a sua vida "se abre para novas formas de dança". Carlota foi das primeiras a ir, numa vaga que, nos anos 1980, daria origem à Nova Dança Portuguesa. Tinha 17 anos. Ficou dois anos "a experimentar" e a perceber que o seu corpo "tinha, afinal, um contexto". E que, "antes de mais, era uma pessoa".

"Passei anos a ouvir jazz à noite, nos bares, e a ver outras coisas da vida. Percebi que o meu corpo era mais do que uma obsessão. Eu era muito obcecada com o corpo. Queria ser perfeita. "

É no regresso, quando conhece o coreógrafo Francisco Camacho, que se dá "a revolta total". O encontro tem lugar na Companhia de Dança de Lisboa, que os dois integraram. "A minha visão e a minha vida mudaram radicalmente. Aos 20 anos encontro alguém com quem partilhar este corpo. E tudo o resto." Ainda desenvolveram peças os dois, mas depressa Carlota se tornou numa das imagens fortes da dança portuguesa: a bailarina-fétiche de Francisco Camacho. A ideia colou-se-lhe tanto à pele que ela mesma se habituou a ela e, confessa, houve uma altura em que lhe foi confortável - foi até 2005, fosse em peças de câmara ou maiores. "Deixei de criar em nome próprio, porque sentia que, dentro das peças dele, nunca tinha deixado de criar as minhas próprias ideias e imagens." Depois acabou. "Deixei de dançar. Cansei-me." E fala do medo: "Tinha um medo terrível, um pânico mesmo. Quanto mais responsabilidade, mais medo. Desejava terramotos antes do início das peças. O medo de falhar e da exposição, que quando dançava esquecia, esteve sempre lá."

E quando deixou de dançar quis cortar com o que a tinha levado até ali: "Recentemente percebi que essa imagem de marca está inscrita nessa relação [com Camacho] e que eu não sou essa relação há muito tempo." Interessa-lhe romper com essa imagem porque desde que deixou de dançar, em parte porque o seu corpo foi de tal forma violentado que deixou de conseguir responder, "passou a ser muito mais coisas".

Coisas que são também pessoas, que vão estar na Eira a seu convite: o performer Miguel Bonneville (A Beast or a God, hoje, depois de not forgive...), os artistas plásticos e também performers André Uerba e Andreia Brandão (Stand By e Retrato Possível, sábado, 20h30), ou a sua própria irmã, Bárbara Lagido, cantora (Grow, concerto-performance, domingo, 16h).

Mas a história de Carlota Lagido podia ter sido outra: "Era suposto ter sido artista plástica." E poderíamos dizer que os figurinos que concebeu ao longo dos anos, para teatro e dança, se tornaram, a dada altura, numa extensão, ou materialização do seu próprio olhar sobre o corpo. "Nunca pensei nisso nesses termos", confessa, mas sem recusar a ideia.

A verdade é que exemplos icónicos, como a revisitação do figurino de O Espectro da Rosa, feito para o solo de Vera Mantero Uma rosa de músculos (1989), que poderão ser vistos nos próximos quatro dias, em vídeo ou expostos, fazem-nos entender melhor de que modo um corpo pode existir para além da pele.

"Gosto de olhar e transformar as coisas." E, por isso, ela, que se diz autodidacta, vai para a escola estudar Design de Cena. Diz que está na altura de pôr em ordem as coisas que já sabe.

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