Uma câmara pode ser agarrada como se quiser

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Fez um dos filmes mais importantes do séc. XX, "Wavelength", e é um histórico do cinema experimentalista e avant-garde e há mesmo quem o apelide de "reitor do cinema estruturalista."

Michael Snow tem 82 anos (n. Toronto, 1929) e queria ser artista e músico, os filmes surgiram por acaso. Tem uma lista interminável de prémios e condecorações e a sua obra-prima, "Wavelength" (1967), foi considerada pelo "Audio-Visual Trust of Canada" um tesouro nacional. O seu trabalho já foi exposto nos museus mais importantes do mundo e é um nome fundamental no cinema e nas artes visuais contemporâneas.

O seu trabalho não se pode classificar num género. Na sua longa carreira há de tudo: pinturas, esculturas, fotografias, filmes, vídeos e sempre muita música. Diz que Picasso era o modelo das suas pinturas e que o novo jazz de New Orleans era a sua influência. No que respeita aos filmes interessam-lhe sobretudo as possibilidades que a câmara lhe oferece e explorar as transformações por ela provocadas e define o seu trabalho em termos de "acontecimentos de imagens" ("image happenings").

Em Lisboa, na Culturgest, apresenta uma nova obra, "Localidade": uma instalação de filtros de cor transparentes que dramatizam as alterações de luz produzidas nos corpos dos espectadores. A exposição colectiva, que o Ípsilon visitou nos últimos dias de montagem, é constituída por núcleos autónomos de trabalhos de três artistas (Hermann Pitz, Michael Snow e Bernard Voita) e a relação entre eles é a importância do atelier como lugar da imaginação e sítio do acontecimento artístico. É uma exposição notável onde pela primeira vez se podem ver, em contexto expositivo, obras históricas de Snow como "WVLNT" e "Condensation Piece".

A presença de Snow em Lisboa é histórica e o artista falou com o Ípsilon no dia em que pela primeira vez veio à cidade.

A exposição colectiva "1+1+1=Pitz+Snow+Voita", que é o motivo para a sua presença em Lisboa, tem como tema o atelier como motivo e ponto de partida do trabalho artístico. Revê-se neste tipo de artistas?

De forma relativa sim, mas no meu trabalho estou interessado sobretudo em explorar ideias e não coisas ou lugares. Muitas vezes nem uso o atelier porque faço instalações ou grande parte dos filmes que faço, tanto os das galerias como os de sala, são produzidos por outras pessoas. Mas a presença no atelier/estúdio é fundamental na minha prática artística.

Distingue entre "filmes de galeria" e "filmes de sala", em que reside a diferença?

Há uma diferença importante. Quando se vai ao cinema há uma tradição, vai-se a um sítio que tem cadeiras e um ecrã, sentamo-nos e espera-se assistir a algo com uma certa duração. Nesta experiência existe um contrato social em que determino ir a um sítio, sentar-me e prestar atenção ao que vai acontecer. O cinema de sala tem palco, os espectadores estão sentados, as sessões têm horas marcada, durações definidas, etc. Na galeria de um museu o público é deambulante e está em permanente "promenade". Para este contexto é preciso fazer trabalhos com a consciência de, possivelmente, o público só ver um pequeno fragmento. Têm de ser contínuos, sem aspectos climáticos, etc., e a duração é um problema. Eu fiz filmes muito longos com três ou quatro horas e sei que nunca os poderei projectar numa galeria.

Cada vez mais o museu está a assumir o cinema como território de exploração e exibição. Gosta da ideia do cinema no museu?

São duas formas diferentes de mostrar imagens em movimento. Hoje a situação é mais complexa do que há 20 anos: há imensos tipos de ecrã, os telefones, os DVD portáteis, o computador. Gosto das galerias dos museus, porque se faço trabalhos com algumas regras de instalação (por exemplo: tamanho da imagem, tipo de som, inclusão de objectos, etc.) sei que só funcionam naquele contexto espacial. Por isso os meus trabalhos de galeria (por exemplo "Solar Breath", 2002) são acontecimentos visuais sem teleologia ou direcção narrativa. Têm uma mesma origem formal, mas estão sempre a acontecer coisas diferentes. Esta é a única maneira dos filmes funcionarem num museu.

Pode considerar-se que "WVLNT (for those who don't have the time. Originally 45 minutes. Now 15!)" de 2003, ao ser um filme que usa o material de um seu outro filme ("Wavelength", 1967), é um exemplo de adaptação para museu?

Há uns anos percebi que devido à internet os meus filmes circulavam em péssimo estado. Não há maneira de controlar a qualidade das imagens que circulam: as pessoas fazem o que querem, colocam som, editam como querem, juntam imagens, etc. Quando fiz "WVLNT" pensei estar a cometer uma espécie de suicídio, mas preferi ser eu a vandalizar o meu trabalho em vez de isso ser feito por um desconhecido. Quem melhor que o artista pode ser esse vândalo?

Sabe-se que utiliza indistintamente muitos meios: filme, pintura, escultura, som. Algum deles é mais importante?

O mais importante é aquele em que estou a trabalhar num determinado momento. Um trabalho sugere uma ferramenta, caminho ou experiência e um outro outras coisas. Só a música é uma presença contínua e que atravessa todos os meus trabalhos.

Nos anos 50 trabalhava com música, pintura e escultura. Nesses trabalhos já se podia antecipar o salto para os filmes que aconteceu nos anos 60?

Não existe esse tipo de filiação. Comecei a tocar música quando andava no liceu e, depois da Universidade, fui profissional: tocava sobretudo o novo Jazz de New Orleans muito influenciado por Lee Armstrong ou Jelly Roll Morton. Depois de terminar os estudos em pintura fui para a Europa andar à boleia e tocar com muitas bandas. Nesses anos, por volta de 1954, desenhava muito e quando voltei a Toronto fiz uma exposição de desenhos. Depois da exposição, recebi um telefonema de um desconhecido que me disse ter visto os desenhos e que eu deveria gostar de filmes. Fiquei surpreso, porque nunca tinha ligado nada a filmes. Ele quis conhecer-me e ofereceu-me emprego numa empresa de cinema de animação em Toronto. Aceitei e foi assim que descobri o cinema, as câmaras, tudo. Eu queria ser pintor e músico porque tinha modelos, queria pintar por causa do Picasso. Com os filmes não foi nada assim: descobri-os através da sua produção, a "frame-a-frame".

Foi o processo da criação de imagens em movimento que o fascinou?

Sim e isso foi maravilhoso. O homem que me convidou para a empresa foi George Dunning [famoso depois de ter realizado o filme dos Beatles "Yellow Submarine"] e um dia disse-me que a câmara e o operador estavam livres e quando eu quisesse podia experimentar fazer um filme sem qualquer custo. E foi assim que encontrei as possibilidades da câmara.

Fala muito de música. Estabelece alguma relação entre música e as imagens em movimento?

Existe um elemento importante que é comum às duas coisas: a duração. Nos dois casos usa-se o tempo. Ao trabalhar com cinema percebi que se pode controlar a duração das imagens e, nesse aspecto temporal, a música precedeu o cinema.

"Condensation - A Cove Story" (2009), que está nesta exposição, é um bom exemplo dessa manipulação da duração?

Sim. Numa mesma imagem de um vale e de uma montanha acontecem alterações atmosféricas radicais: nevoeiro, chuva, nuvens, sol intenso e todo esse tipo de coisas. Chama-se "Condensação" porque está tudo separado e condensado temporalmente. Usei uma câmara digital que capta imagens a cada 10 segundos e quando no computador se junta tudo em 24 imagens por segundo dá aquele efeito condensado. Trata-se de um trabalho de sobreposições do tempo sobre as montanhas e os penhascos.

Num dos seus filmes históricos, "La Région Centrale" (1971), utiliza um processo de filmagem muito rigoroso, mecânico e científico. A exploração das possibilidades tecnológicas é um aspecto importante?

Esse filme é sobre o movimento da câmara e a paisagem. Pensa-se que uma câmara só pode ser agarrada de uma maneira, numa espécie de compreensão antropomórfica do objecto técnico. Mas uma câmara pode ser agarrada como se quiser: de lado, de pernas para o ar e o melhor é que nunca deixa de filmar. Antes deste filme tinha feito três filmes em espaços fechados ("Wavelength", "Standard Time" e "AKA Back and Forth"), os quais são mensuráveis e humanamente interpretáveis e comecei a pensar trabalhar em espaços abertos onde essa medida humana fosse impossível. Quando esta ideia de fazer um filme sobre a paisagem se começou a desenvolver quis que a câmara fosse capaz de se mover em órbitas e em ciclos como os planetas. Investiguei todas as câmaras disponíveis na indústria, mas não consegui descobrir nenhuma que fizesse movimentos circulares sem filmar o que a estava a agarrar. Mas queria mesmo ser capaz de filmar esfericamente o espaço esférico, por isso procurei técnicos e conheci um homem que, entusiasticamente, arranjou algumas soluções e construiu a máquina que me permitiu filmar como queria [esta máquina é muitas vezes exposta como objecto escultórico com o título "De La", 1972].

Essa ambição de filmar com movimentos contínuos circulares uma paisagem natural, expressa a vontade de inscrever os filmes como coisa da natureza?

É uma maneira de receber e incorporar a natureza. Fazia parte da filosofia do filme que a câmara se movesse como o sol ou a lua. Eu não queria imitar esses movimentos, mas eles estão presentes e de facto a câmara move-se em ciclos. Nessa obra vê-se um conjunto de movimentos da câmara que nunca ninguém tinha feito antes. No limite, é um filme muito mais sobre os movimentos da câmara do que sobre a paisagem.

Se em "La Région Centrale" o mais importante são os movimentos da câmara, em "Solar Breath. Northern Caryatides" [exibido em Lisboa na exposição "Estados da Imagem" da LisboaPhoto em 2005 com comissariado de Sérgio Mah] o plano é fixo, as imagens poéticas e os acontecimentos principais parecem ser aqueles provocados no espectador.

Nesse trabalho queria filmar o que acontece entre a câmara e a cena, aquilo que está entre a lente e o objecto que se filma. É um filme sobre as coisas misteriosas que o vento faz a uma cortina.

A câmara é um bom meio para testemunhar essas coisas misteriosas?

A fotografia e o filme fazem produzem uma experiência visual única que nada tem que ver com a documentação ou reprodução do real. Trata-se sempre de uma abstracção, a primeira e aparentemente mais simples, da qual nos estamos sempre a esquecer, é a transformação da tridimensionalidade em bidimensionalidade. Mesmo os trabalhos mais realistas produzem alterações e o meu trabalho explora-as. Interessam-me as alterações produzidas pela câmara na experiência da visão.

Muitos críticos, curadores e historiadores de arte referem-se a si como um marco histórico do cinema avant-garde, como o mais importante realizador de cinema experimental. Revê-se nestas palavras?

Claro que gosto muito de ouvir essas coisas e os meus filmes são bons. Por isso...

Nos anos 60 deu-se conta que estava a abrir caminhos importantes?

De modo nenhum, só estava a tentar contribuir com alguma coisa para o mundo da arte, porque sou um artista visual.

E nunca antecipou a importância futura que o seu trabalho veio a conquistar?

Nunca, e adoro-a, mas a melhor coisa é mesmo ainda estar vivo. Nunca pensei que isto tudo fosse acontecer. Eu era relativamente bem sucedido, mas depois de "Wavelenght" tudo mudou: o filme fez imenso sucesso, fui muito falado, ganhei dinheiro e tudo começou a acontecer.

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