A cidade fantasma

Atentados simbólicos, abusos de pontuação e visões do Apocalipse, num dos últimos picos da grande literatura russa

Em Dezembro de 2006, o russófilo amador e polemista involuntário Martin Amis apareceu no programa "Question Time" da BBC (uma espécie de "Prós e Contras" com córtex cerebral), na semana em que o principal tópico noticioso era o envenamento do ex-espião Litvinenko, supostamente às mãos do governo russo. Num lapso característico (o uso de uma imagem literária para falar de assuntos do mundo real), Amis referiu-se à "dualidade" ancestral da alma russa, dividida entre os seus lados "europeu" e "asiático"; e afirmou perante uma plateia boquiaberta que aquele incidente era um claro sinal de que "o lado asiático estava a prevalecer". A afirmação recebeu o previsível tratamento tablóide completo, com acusações de racismo, orientalismo e grosseira insensibilidade cultural. E no entanto, foram esses os mesmos termos que coordenaram o debate interno sobre a identidade nacional russa desde o séc. XIX: o perpétuo equilíbrio entre o lado ocidental (civilizado, sofisticado, pacífico ou frívolo e artificial, de acordo com o proponente) e o oriental (bárbaro, irracional, violento, ou simples e autêntico, idem).

Andrei Béli, que com Bulgakov e Bunin liderou a derradeira vaga da grande literatura russa, nasceu em 1880 e cresceu numa época em que esse e outros debates pareciam atingir um ponto terminal. O princípio do séc. XX foi um carnaval de extremismos - mesmo pelos elevadíssimos padrões locais. Ideias eram importadas de toda a Europa e sujeitas à típica bricolage russa, que consiste essencialmente em equipá-las com rastilhos. "Petersburgo" decorre no Outono de 1905, quando o clima de ansiedade, desorientação e agitação política acumulou massa crítica. No rescaldo da desastrosa guerra com o Japão, o país foi assolado por uma série de crises, greves, motins, atentados, conspirações, golpes falhados e - evidentemente - imensos debates teóricos: "O Que é o Homem?", "O Que Fazer?", "Como Viver?", "Quantos Matar?".

Na capital, o debate processava-se de forma particularmente catastrofista. O discurso cultural ecoava com prenúncios apocalípticos, recuperando uma certa corrente metafórica do século anterior que via Petersburgo como uma conquista precária, esvaindo-se em tempo alugado. Ordem imposta ao caos pela vontade Pedro o Grande, uma "cidade intencional" construída num pântano, uma pequena Holanda precária e geométrica nas margens do Báltico, que parecia, nas palavras do historiador Orlando Figes, "um convite à vingança da Natureza" (a literatura da época abunda em contos de cheias, enxurradas, dilúvios). O romance de Béli está saturado com esses augúrios de calamidade eminente, e com o turbilhão intelectual que parecia dramatizá-la na esfera humana.

Surpreendentemente, "Petersburgo" tem um enredo; e é maravilhoso. Apollon Apollónovitch Ableúkhov é um proeminente senador, chefe da "Instituição". O seu filho Nikolai (que "há já dois anos não se levantava antes do meio-dia"), um indolente estudante universitário, envolve-se, mais por inércia que vontade, com uma misteriosa organização revolucionária que planeia assassinar um alto responsável político. O esplendidamente chanfrado líder dos radicais, Lippântchenko, encarrega Nikolai da tarefa. Uma bomba-relógio é-lhe entregue, dentro de uma lata de sardinhas. O relógio está preparado para detonar em 24 horas. O alvo é o seu pai.

Munido com este guião para um filme de Jan de Bont e Keanu Reeves, Béli dedica-se a sabotá-lo com uma ofensiva modernista total: terrorismo simbólico, atentados semânticos, o mais dramático abuso de reticências da Literatura - bem como piadas más ("era de uma linhagem muito respeitável: o seu antepassado era Adão") e piscadelas de olho ao leitor em número suficiente para este acreditar que está a ler um tijolo pós-moderno americano publicado na semana passada: "-Mas é claro: um modernista vai chamar-lhe - uma sensação de abismo; e vai procurar a respectiva imagem para esta sensação simbólica. - Então, há aqui uma alegoria. - Não confunda a alegoria com o símbolo; a alegoria é um símbolo que se tornou linguagem corrente; por exemplo, uma acepção normal do seu 'fora de si'; o símbolo é a apelação justa para aquilo que o senhor experimentou ali - diante da lata."

Compreende-se que confundir símbolo com alegoria fosse uma ofensa grave para "Andrei Béli", um pseudónimo pré-censura usado pelo autor para poupar a família ao embaraço de um filho envolvido com o movimento Simbolista (patusco lembrete de um tempo em que as pessoas se escandalizavam com movimentos literários). A textura simbólica de "Petersburgo" é, de facto, escandalosa - e escandalosamente opressiva: uma prolongada acrobacia estrutural (o homem improvisava até ao nível do fonema) que a tradução dos Guerra tenta, de forma tipicamente inspirada e rigorosa, preservar, quer no texto vertido, quer nas copiosas notas de referência. Há uma ténue patine de realismo - adulterada com a familiar intensidade russa - mas transmitida aos sobressaltos narrativos: o texto é uma manta de retalhos, alternando passagens líricas com fragmentos de diálogos ouvidos de passagem, uma cacofonia urbana que se vai alojando nas fantasias paranóicas dos conspiradores e do próprio narrador. A bomba-relógio é activada no capítulo V, servindo de metrónomo ao resto da acção, mas a cronologia do romance é tão vandalizada como a sua cartografia: gerações de académicos russos foram demonstrando - com tempo, e mapas - que apesar de os vários marcos geográficos descritos por Béli serem reais, as rotas entre eles são impossíveis.Uma tangente proto-Braudillardiana no Prólogo ("Petersburgo não existe") serve de detonador á barragem simbólica: "Petersburgo não só apresenta a sua existência ilusória, mas também aparece - nos mapas: em forma de dois círculos concêntricos com um ponto negro no meio; então, a partir deste ponto matemático que não tem grandeza, declara energicamente que - sim, existe: dali, daquele ponto, sai voando um enxame de livros impressos; desde aquele ponto invisível voa vertiginosamente uma circular oficial".

Esse "enxame de livros impressos" é a longa tradição literária acumulada que sempre tratara Petersburgo como uma cidade espectral, lugar de delírios e transgressões, palco para assassinos existencialistas, oficiais loucos, estátuas vivas e narizes emancipados. E destes círculos concêntricos emana uma barragem incessante de pontos, circunfrências e esferas em expansão, obsessivamente registadas ao longo de todo o livro: cada personagem é manietada por uma densa rede de objectos e aparições que reflectem e sancionam as vacilações do seu temperamento. A relevância deste cerco geométrico é reforçada quando Apollon, já estabelecido como um burocrata reaccionário fanaticamente devoto à ordem czarista, confessa a sua agorafobia, um pavor religioso perante a imensidão das estepes, vendo a grelha formal de Petersburgo como um amuleto urbano contra o grande deserto asiático. E quando o leitor acha que já tirou o número ao esquema, num dos muitos pesadelos do livro, Nikolai alucina um diálogo com um nómada Turaniano, que refuta de forma explícita a dicotomia que vinha a ser pacientemente elaborada: "- Em vez da destruição da Europa - a sua imutabilidade... - A causa mongol...". Em pleno processo de desintegração, a profecia Turaniana torna claro que o cataclismo oriental não vai ocorrer em função de escolhas ideológicas. Quer pela destruição revolucionária, quer pela estagnação reaccionária, o fim será sempre apocalíptico.

Nabokov incluiu celebremente "Petersburgo" entre as quatro grandes obras-primas do séc. XX - na companhia da "Metamorfose", do "Ulisses" de Joyce, e da "primeira metade do conto de fadas de Proust". Joyce parece um promissor ponto de comparação: tal como "Ulisses", o romance de Béli representa simultaneamente uma síntese formal (o culminar de um programa estético) e uma anomalia, a manifestação de um talento demasiado exuberante e idiossincrático para deixar descendentes.

"Petersburgo" perdura, mas não como polaroid social ou compêndio de profecias geo-políticas; o seu território é o Mito e não a História. Como um bom modernista, Béli teve a sua "sensação de abismo". Este extraordinário romance-pesadelo é a vasta imagem que encontrou para a representar.

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