Uma filosofia em movimento

Jacques Rancière é uma figura essencial para pensar a arte como política

Jacques Rancière é um vulto da filosofia e do pensamento critico. A sua importância sobressaiu depois do desaparecimento de Foucault, Deleuze e Derrida. Hoje tem como pares, na área da filosofia do politico, de um radicalismo abrangente de mais esferas, J.-L Nancy e Alain Badiou. Rancière desenvolve ramais de interesse vários (literatura, artes plásticas, cinema, teatro, fotografia...). Recria-se curto-circuitando o fluxo do seu pensamento: um pensamento instável, brilhante que sustenta aporias, tensões e até silêncios. Provém de um "aristocratismo althusseriano". Integra o seminário que origina o mítico "Lire le Capital". Em 74 demarca-se, radicaliza a reflexão, parte dos que são expropriados da politica, isto é, do direito e dos canais de expressão. Publica um livro essencial - "La Mésentente. Politique et Philosophie". Avança na reflexão estética. Nele são contíguas a história de arte e a história do trabalho, estética e politica. Em Portugal, estão traduzidos "O Espectador Emancipado" (Orfeu Negro) e, agora, este "Estética e Politica. A Partilha do Sensível".

Convoque-se Aristóteles: o homem é um animal politico e, de todos o animais, só ele tem a palavra. Donde, politica é uma questão de acesso, ou de exclusão, do uso da palavra, do domínio, ou não, das regras de argumentação. Mesmo "a palavra muda", o detalhe anónimo ainda por significar - o bilhete de cinema rasgado -, precisa de um porta voz que lhe decifre um significado, isto é, que o incorpore. Por outro lado, sendo a politica a actividade cuja racionalidade é a do "desentendimento", ela é, também por aí, matéria de linguagem, isto é, de poética. Logo, animal politico porque animal literário que foge ao seu destino "natural" ao deixar-se reencaminhar pelo poder das palavras.

O conjunto de cinco textos que perfazem este livro parte de questões colocadas por jovens filósofos. Porém, o mote desses textos, logo enunciado em nota introdutória, adverte: "Atos estéticos, entendidos como configurações da experiência, que induzem novos modos de sentir e novas formas de subjectividade politica". Note-se que o universo lexical de Rancière é peculiar, desviado da acepção comum dos conceitos, apesar de tecer com eles um corpo que pulsa, lógico, não-sistemático, aliciante, uma máquina de agenciamentos em aberto ("in progress"); esse hermetismo pode desviar uma leitura apressada. Por isso, é da maior valia o glossário que esta edição agrega - de que falamos quando falamos de "subjectivação", de "sujeito politico"?

O autor delineia uma historicidade do regime das artes, das suas idades, cujas fronteiras não são estanques: sobrepõem-se (confundem-se). O que lhe interessa não é a teoria da arte em geral, nem a qualidade consubstancial das obras, mas "um modo de articulação entre as maneiras de fazer, as formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e os modos de pensar as suas relações". Distingue-se com firmeza de Lyotard, da análise deste do sublime kantiano, da melancolia e desencanto dos pós-modernos, tal como da vocação vanguardista da arte ("o ímpeto de uma humanidade que liga as conquistas da novidade artística às conquistas da emancipação") e é neste âmbito que questiona o modernismo e a(s) filosofia(s) da História.

Voltemos às Idades da Arte: primeira, o Regime Ético das Imagens (nele não existindo uma concepção do que seria a imagem, e retomando Platão e a crítica do simulacro e da verdade). As imagens estariam ao serviço dos interesses de um grupo. Exemplo: os Budas afegãos que os talibãs destruíram, pois, não havendo divindades, elas são falsas, atitude que indigna o Ocidente.

O segundo regime das artes é o Representativo (Poético). Legitima-se a especificidade de um fazer de arte. O seu critério é o da "mimesis" (aristotélica). Corresponde à Idade Clássica, ao Antigo Regime, a uma sociedade e a campos artísticos, géneros e temas bem definidos (primazia das "Belles Lettres", da acção e da narrativa sobre a descrição); a produção artística sujeita-se a critérios de similitude, correspondência e verosimilhança. "É um regime de visibilidade das artes", elas autonomizam-se, mas o que se autonomiza articula-se em analogia com uma hierarquia global das ocupações politicas e sociais. É esta hierarquização que o Regime Estético das Artes vai destronar a partir do século XIX. Wordsworth, poeta lírico, declara em 1802 que as emoções dos "pequenos" são susceptíveis da mais alta poesia. Rancière trabalha o romance (Balzac, Flaubert...), género que faz triunfar a força anónima da vida sem qualidades e a "força de um estilo indiferente à dignidade das personagens". Pode-se falar da glória possível e única do qualquer um. Isso ocorreu primeiro na literatura, depois nas artes plásticas, ainda não no político. O seu interesse pela história das mentalidades, a psicanálise, a fotografia, um certo cinema (Pedro Costa e o seu "Juventude em Marcha") compreende-se neste alinhamento. Resumindo, o "Regime Estético das Artes é o que identifica a arte no singular, dissociando-a de qualquer hierarquia dos temas, dos géneros e das artes. O que implica destruir a barreira mimética que distinguia as maneiras da fazer arte das outras maneiras de fazer, separando as suas regras da ordem das ocupações sociais. Este regime afirma a absoluta singularidade da arte e, ao mesmo tempo, destrói qualquer critério pragmático de identificar essa singularidade". O que aviva uma aporia, ou no limite, encerra as artes num ensimesmamento auto-télico. Rancière não cessa de insistir que "a estética deve tornar sensível a imaterialidade do sensível que é a materialidade do pensamento". A cada passo, o sensível duplica-se num sensível que, diferindo, advém outro, e o pensamento desdobra-se num pensamento outro. Perseguem-se, ou perseguem um ponto intotalizável, suspenso no infinito - a coincidência, e a comunidade por vir.

Muito fica por dizer, O autor é uma máquina voraz. E que tal um frente-a-frente sobre a Wikileaks entre Rancière e Badiou?

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