Eu não me abstenho

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Psiquiatra

d.sampaio@netcabo.pt Muito se escreveu sobre as eleições presidenciais. Desde a definição dos vários (?) vencedores, ao futuro dos derrotados e do país. Quero, contudo, voltar ao tema da abstenção. Recordemo-la para os menos atentos: cerca de 5 milhões de portugueses não votaram, e Cavaco Silva, vencedor indiscutível em todos os distritos, obteve pouco mais de 2 milhões de votos (52,9 por cento, a mais baixa percentagem de sempre para um Presidente da República), tendo perdido cerca de 500 mil votos.

É evidente que as eleições não mobilizaram os portugueses. Se aos que não votaram adicionarmos os votos brancos e nulos (quase 300 mil), juntaremos mais argumentos aos que defendem que o recente acto eleitoral passou ao lado de um número muito significativo de cidadãos.

Não quero estar ao lado dos descrentes na democracia portuguesa. Lembro sempre Salazar e a tristeza dessa época, onde ninguém podia manifestar a sua opinião sem medo: por isso nem por um momento imagino Portugal de volta a esses dias de opressão, em que os candidatos da oposição (e os seus apoiantes) andavam de porta em porta a distribuir os votos, com receio de que os impressos faltassem nas mesas de voto!

Por isso, não me abstenho. Votarei sempre, mesmo que não me identifique por completo com os candidatos; e não darei o meu voto a pessoas que não se comprometem com o futuro e apenas aspiram à notoriedade de um protesto conjuntural. Vou continuar a lutar, dentro das minhas possibilidades, para que mais cidadãos, sobretudo jovens, possam ter uma melhor ideia da política.

É compreensível a descrença dos portugueses. Muitas promessas não são cumpridas, é escondida informação relevante, os actores políticos tratam-se sem respeito perante as câmaras da televisão. A comunicação social prefere o incidente político e a intriga à informação sedimentada. O mundo não se mostra tranquilo, na natureza e na acção do homem. A solução, todavia, não me parece ser a da abstenção: desde a possibilidade do voto obrigatório à diferente organização da representação parlamentar, tudo deve agora ser questionado.

Comecemos em casa. Em cada família, importa ver como comunicamos. Temos capacidade de nos escutar com respeito mútuo? Aceitamos as diferenças de opinião, mas temos possibilidade de lutar pelas nossas ideias? Uma família não é uma democracia em que cada pessoa vale um voto, porque a opinião parental deverá prevalecer sempre, mas existe a possibilidade de cada um, em qualquer idade, poder exprimir o seu ponto de vista? Tomada uma decisão, saberemos respeitá-la?

E na escola, existem mecanismos que permitam auscultar a opinião de alunos, professores, pais e auxiliares, ou temos um director que tudo decide sem ouvir ninguém? Na sala de aula, o professor fala sem parar durante 90 minutos, ou pára a olhar em volta e solicita a opinião de um aluno alheado? Manda para a rua um estudante indisciplinado, ou fomenta o trabalho de grupo capaz de mobilizar os mais distraídos? Perante a violência no pátio, corre a chamar o polícia da escola segura, ou tenta falar com os jovens que a tudo assistem sem nada fazer? Faz de conta, ou tenta criar uma comissão que defina uma estratégia anti-bullying? Preocupa-se em difundir a ideia de que a definição de comportamento correcto passa pelo bem-estar dos que nos rodeiam, ou limita-se a gritar regras em aulas de Formação Cívica?

Para consolidar a democracia e fomentar desde cedo a participação, pais e professores têm de salientar a importância dos valores essenciais: o respeito pela vida e pela opinião dos outros, a verdade, a honestidade e o cuidado com as pessoas perto de nós.

É na defesa do sentimento do outro e na crença de que temos de escolher os melhores para nos representarem que reside, desde a infância e em democracia, o combate à abstenção.

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