Reportagem: "Adeus faraó. Só adoramos o Sol”
A praça Tahrir já tem as suas estrelas, e uma delas é o miúdo de seis anos que inventa palavras de ordem às cavalitas do pai. Ele não pára, e todos os dias traz novas ideias à revolução. "Mubarak, quanto tempo vais levar a entender? Partir significa partir", diz o menino, e uma pequena multidão à sua volta repete. "Deixa o Sol brilhar de novo no Egipto. Tu partes, nós ficamos. Só adoramos o Sol, não o faraó", diz a voz fininha, talvez misturando coisas que aprendeu na escola. "Suzanne [a mulher de Mubarak] diz ao teu marido que um quilo de carne custa 100 libras".
Talvez alguém ensaie todos os dias os slogans com a criança. Mas ver a convicção com que ela os grita, com os dedinhos no ar, é acreditar que são mesmo da sua lavra. Porque não? Aqui qualquer um pode inventar uma frase e lançá-la. Não há um partido, nem um sindicato a orientar coisa nenhuma.
Há quem tenha feito cartazes que são autênticos tratados filosóficos. Por exemplo Yasser, 42 anos, engenheiro. O seu edital é tão complicado, que é preciso parar à sua frente e ficar alguns minutos a ler tudo. E a interpretar. "Até aqui, os nossos ganhos foram correctivos. A partir de agora terão de ser preventivos", começa o cartaz. E continua com um "inventário de medidas, em 10 pontos".
Duas jovens seguram uma faixa que diz: "2 night U resign" . Um rapaz grita: "Mubarak, tu és piloto, pois tens um avião à tua espera no aeroporto". Um barbudo coloca o braço no ombro de uma freira católica e posa para uma câmara, anunciando: "Muçulmanos e cristão estão unidos!" O engenheiro Yasser corre também para uma das freiras, mais jovem: "Boa tarde, eu sou da Irmandade Muçulmana, posso tirar uma fotografia consigo?" A freira ri, mas não se esquiva à fotografia.
Após dois dias de violência, a praça da Libertação voltou a ser uma festa. Quando já todos esperavam uma derradeira batalha, ela não aconteceu. Ao amanhecer de ontem, os provocadores pró-Mubarak tinham desaparecido como por milagre. Milhares de pessoas encaminhavam-se para a Tahrir sem que ninguém as tentasse impedir. Os militares continuavam nos seus lugares, em todos os acessos à praça, mas agora em maior número, e com menos tanques. Apeados, ajudavam a organizar as entradas no perímetro. Em conjunto com os organizadores voluntários, identificavam e revistavam as pessoas.
Nalguns locais da praça, como a zona oeste, em frente ao hotel Cleópatra, ainda havia reminiscências dos combates do dia anterior. A concentração de pessoas era menor, e alguns homens sentavam-se em frente da pirâmides que construíram com pedras, prontos a distribuir armas se voltasse a ser necessário.
Mas a atmosfera geral era de celebração. O facto de os grupos violentos terem desistido era visto como uma vitória. A revolução afinal continuava. Ninguém ficou intimidado, ninguém ficou em casa. A reivindicação continuava de pé, bem explícita numa enorme faixa no centro da praça: "O povo exige o derrube do regime".
Grupos de mulheres trouxeram comida cozinhada, outras distribuíam bebidas. Um hospital de campanha foi montado numa das saídas da praça, para tratar os feridos da véspera e os que pudesse vir a haver.
No palco que finalmente foi montado, desfilaram figuras famosas da televisão, das artes e do cinema. A actriz Bassma foi ao microfone dizer que nunca se tinha interessado por política, mas agora, graças ao movimento dos jovens, tomara consciência de muitas coisas que se passam à sua volta, e tornara-se activista.
Palácio presidencialNa sua liberdade de improvisação de palavras de ordem, alguns encorajavam as pessoas a marchar sobre o palácio presidencial. Quem estava à volta gritava com eles, mas ninguém se organizava de facto. Não parecia possível alguém organizar-se, e muito menos marchar sobre o palácio, longe e cercado pelo Exército.
"As pessoas voltaram aqui, e vão ficar até que o seu objectivo seja atingido", diz Hisham Ilsayd, fisioterapeuta. "Até ontem, as pessoas acreditavam que alguma coisa tinha sido conseguida. Que tinham sido ouvidas, e que o regime ia iniciar a transição, mais ou menos rapidamente. Mas depois da violência que houve aqui, todos percebemos que as coisas podem voltar para trás. E que se desistirmos, não terá ficado nada. Percebemos que a revolução tem de ir até ao fim, custe o que custar. Não se pode fazer meia-revolução".
Yasser, o engenheiro, diz que Mubarak joga um jogo duplo. "Para o estrangeiro, diz: ou ele, ou os islamistas. Para o interior, a mensagem é: ou eu, ou o caos". Os media oficiais estão a fazer uma campanha, dirigida aos egípcios, sobre a interferência dos estrangeiros. Falam de agentes de países inimigos infiltrados para instigar a sublevação, e de espiões disfarçados de jornalistas. "A minha mulher não fala comigo há uma semana", diz Yasser. "Está em casa, a chorar, porque pensa que eu recebo dinheiro para vir para aqui. A televisão está a dizer que as pessoas que vieram para a praça recebem 100 libras cada, dos tais agentes estrangeiros".
Um rapaz aproxima-se para mostrar, no telemóvel, uma fotografia da primeira página do diário Gomorea. "Trazem uma imagem desta manifestação e dizem que é de apoio a Mubarak."
O clima na praça Tahrir era de festa, mas, ao mesmo tempo, sentia-se nalgumas vozes um tom de fim de festa. Um sentimento de que, apesar de tudo o que se conseguiu até agora, as forças que se estão a desafiar são incomensuravelmente mais fortes.
A recusa em assumir uma inflexão mais realista, escolhendo líderes, partindo para a negociação, talvez reflicta uma consciência da natureza idealista e irredutível desta revolução. Como se, ao contrário de outras, que aceitaram compromissos e se corromperam, esta se quisesse preservar na sua pureza.
"Eu estou aqui pela juventude", diz Muhamed Eladl, 60 anos, um famoso produtor de cinema. "O povo egípcio redescobriu-se. Os jovens que lançaram esta revolução inspiraram as gerações mais velhas. Lembraram-nos de quem somos. Tudo aquilo que parece que tínhamos esquecido".
Mohamed Sudain, professor de liceu também de 60 anos, recorda o entusiasmo que havia com a revolução da independência e Gamal Abdel Nasser. Mas depois vieram as guerras com Israel, e o compromisso do povo com Sadat e depois Mubarak. O estado de emergência. "Em troca da paz, aceitámos abdicar da liberdade", diz. "A minha geração foi cúmplice do regime. São os jovens que estão a pagar o preço. Por isso se revoltam. E nós temos de estar a seu lado".
Amir Naguib, músico e professor de composição, diz que o seu salário no conservatório é muito baixo, mas não é por isso que está aqui. "É por outras coisas. Repare: isto não é uma revolução dos pobres".
Sonhar o futuroEyad Dawoud é o apresentador de televisão mais popular entre a juventude egípcia. O seu talk-show Shababeek, no canal privado Dream TV, bate recordes de audiência. "Diziam que a juventude era frívola, não se interessava pelo mundo à sua volta. O que estamos a viver aqui mostra que não é bem assim", diz Eyad, que anda sempre rodeado por um grupo de fãs. "A juventude mostrou ao mundo que sabe pensar, e que tem um sonho". Que sonho é esse? Que espécie de sonho? Mas Eyad só responde, misteriosamente: "O futuro. O nosso sonho é o futuro".
Talvez a Tahrir seja uma praça do futuro. A toda a volta, a forma solícita e expedita como os militares estão a assumir o controlo da segurança deixa em alguns uma leve sensação de desconforto. Sempre apelaram para que eles estivessem ao lado do povo, mas agora... "Este regime é essencialmente militar", diz Wael, o revolucionário do Facebook. "Os generais reformados recebem cargos de administradores das grandes empresas estatais. Nada me garante que eles não se preparem para assumir o poder, mesmo que Mubarak caia. O meu medo é que estejamos a ser usados para algo que nem imaginamos".
No meio da festa, havia um negro pressentimento. Mas ao mesmo tempo alguma tranquilidade em relação a isso, como se, não importa o que venha a acontecer, a revolução estivesse intacta e não pudesse recuar. Talvez o mundo árabe esteja a ter o seu Maio de 68, e o verdadeiro líder da Tahrir seja o menino de seis anos às cavalitas do pai. "Adeus faraó. Nós só adoramos o Sol".