Multidão é o meu nome, porque somos muitos
Nas ditaduras, raramente as multitudes se transformam em multidão sem que as manche o sangue
A televisão mostra e faz a multidão na rua em Tunes, Suez, Cairo, Alexandria, até no remoto Iémen. A imprensa releva a importância das redes sociais através da Internet e das comunicações móveis. Algumas análises valorizam as redes como motor da mudança, mas convém não as sobrevalorizar. Não são causa dos movimentos sociais, antes uma poderosa ferramenta.
Telemóveis e computadores facilitam e multiplicam os actos comunicativos. Permitem aos indivíduos ter consciência da explosão comunicativa de que fazem parte. Comprovam-na. Está ali, no computador, quantas vezes as notícias são lidas. Estão lá os comentários, assinados ou anónimos, por escrito, como que documentos históricos do presente no momento em que se se associam à torrente comunicacional. As comunicações são móveis, as mensagens voam, voam de telemóvel em telemóvel.
Dois teóricos de esquerda radical, Hardt e Negri, escreveram uma utopia em que a mudança ocorre em rede e por causa da rede (Multidão, Campo das Letras, 2005). É, digamos assim, a primeira utopia que verdadeiramente faz jus à origem grega da palavra inventada por Thomas More, pois não ocorre em nenhum lugar: ocorre em todos, nos fios da rede e nos intervalos entre eles, escapando ao controle dos de fora e dos potenciais Estalines no seu interior. Nos casos tunisino e egípcio escapou ao próprio poder da oposição, pela forte componente de espontaneidade. Através das redes comunicacionais, que ocorrem à margem das organizações, mesmo as favorecidas por Hardt e Negri, os indivíduos não necessitam com a mesma urgência de rede política, de estrutura partidária ou associativa. A rede são eles mesmos, a rede confirma-se pela comunicação.
O fenómeno não é novo. Os indivíduos da periferia - por oposição ao centro, os poderes - sempre evidenciaram formas de resistência, hoje ignoradas por ausência de fontes escritas. A rede comunicacional, antes, concretizava-se de modo mais fugaz, pelo passa-palavra. Não só não existiam redes tecnológicas, como a maioria dos indivíduos era analfabeta. As suas resistências eram especialmente locais.
O passa-palavra coexistiu com o uso da imprensa. Apesar de a história ser escrita pelos vencedores, há elementos bastantes para compreender que a resistência subterrânea ao poder existiu também em folhas volantes. Conhece-se os casos da Revolução Inglesa do século XVII, com uma utilização da imprensa vibrante e generalizada, e do fermento da oposição popular em França antes da Revolução Francesa. Havia também folhas volantes manuscritas, copiadas, de que há casos estudados em Évora, por exemplo. O "Manuelinho", também em Évora, foi a face visível, em comunicados espalhados na cidade, de um movimento clandestino anti-Castela.
Só depois da Revolução Francesa (sempre ela), ganharam consistência ideológica e física as resistências nacionais e internacionais. Antes de 1789, só as estruturas de poder político, religioso e mais tarde económico tinham carácter internacional, como as aristocracias, as alianças e, acima de tudo, as estruturas religiosas como a internacionalíssima Igreja Católica. O internacionalismo apareceu depois da Revolução como organização de resistência contra os poderes organizados. A primeira Internacional, fundada em 1864, trazia essa marca no nome. Quando o 1.º de Maio é transformado em 1890 numa jornada internacional simultânea - isto é, em rede - os governos compreenderam tão bem como os seus promotores o alcance internacional. Unidos os continentes por caminhos-de-ferro, transoceânicos e telégrafo, a segunda metade do século XIX proporcionou diversas ideologias baseada em redes.
O passa-palavra coexistiu com o passa-papel, de que Portugal conheceu uma importante comprovação com os folhetos clandestinos durante o regime salazarista. A expressão contemporânea do passa-palavra e do passa-papel é o passa-mensagem: o passa-twit, passa-SMS, passa-mail. O que a tecnologia proporciona é, afinal, a facilitação e a multiplicação do antiquíssimo fenómeno e certamente "óbvio" depois de se chamar a atenção para ele: a comunicação humana e social.
Aqui chegados, verificamos que a tecnologia das redes serve como extensão do homem, mas não resolveu a questão política no Egipto como não resolveu na Tunísia: os mortos que caíram na rua não são tecnologia nem são rede. São pessoas. São multidão.
Hardt e Negri não consideraram a multidão na sua utopia chamada Multidão. O paradoxo deve-se às perdas na tradução. O livro chama-se no original inglês Multitude, palavra de que há registo em português desde pelo menos o século XVII, o que não espanta nada, por ser de origem latina. O tradutor optou pelo vocábulo mais usado. As duas palavras evoluíram para significar conceitos um pouco diferentes dos colectivos humanos: multidão refere-se a gente aglomerada, enquanto multitude sugere muita gente dispersa em muitos locais, uma multidão separada e à distância, em rede. Hardt e Negri exaltam essa multitude, mas receiam a multidão, como Hardt, ele que é apóstolo da multitude, escreveu num pequeno texto em 2006.
Consequência da multitude, a multidão derrubou Ben Ali na Tunísia e abalou Mubarak no Egipto. Em situações de bloqueio, a multitude transforma-se em multidão. Tal ocorre em ditaduras, como a tunisina, ou em democracias. Por exemplo, a multitude dos professores portugueses começou pelo passa-SMS à margem dos sindicatos e acabou em 2008 em duas das maiores manifestações de multidão das últimas décadas.
A multitude cria o caldo que depois explode em multidão. Nos casos de bloqueio institucional ou outro, é esta que chega a resultados. A multidão não é necessariamente violenta, em especial nas democracias, por via do processo político e civilizacional. A violência em manifestações é provocada com mais frequência pelas autoridades do que pelos manifestantes. Já nas ditaduras e democracias inexperientes, a violência ocorre facilmente. A multidão não precisaria de ser violenta, pois tem o poder do número.
A multidão são muitos. Foi exactamente o que disse um bispo inglês na Idade Média, quando uma multidão lhe rodeou a catedral: "São demasiados." A multidão tem também o poder da representação, equiparável ao dos políticos, poder que lhe é atribuído pela sua força visual: são muitos e vêem-se. Como se fossem mais ainda. E a multidão detém ainda um poder simbólico: são muitos, representa mais do que esses e ocupa o espaço de todos, a rua. Chamam-lhe a "rua", no caso do momento é "a rua árabe". No século XIX, Governo e Parlamento franceses perceberam a importância de restringir o uso do espaço público, através de regulamentos rigorosos, hoje generalizados nas democracias: algumas das manifestações de professores em 2008 foram alvo de acção policial por causa desse monopólio de gestão do espaço público pelo poder. A multidão-rua disputa o lugar do poder político: basta existir no espaço público para parecer que é ela quem manda, quem representa (i)legitimamente todos os que a viram, à distância.
E aqui entra a televisão: ela valoriza triplamente a multidão. Mostra-a, que é o que ela quer desde sempre, seja ou não obra dos poderosos. Espalha as imagens por todo o lado, por todo o mundo, como ela quer. Representa-a como sinal de algo maior do que ela mesma, como ela também quer. Por essa razão, as multidões democráticas não precisam de violência, antes a abominam, porque lhes basta ser. Nas ditaduras, raramente as multitudes se transformam em multidão sem que as manche o sangue. Nos países de Leste, em 1989, a multidão e a televisão juntaram-se para proporcionar a democracia sem violência, talvez por estar maduro o processo. Em países como a Tunísia e o Egipto, apesar da Al-Jazira, é mais difícil. Crítico de televisão