Com quem ficará o espólio de Vasari?

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São Lucas Pintando a Virgem

Trocou cartas com cinco papas. E elas são uma das razões para que o espólio do pintor e escritor renascentista tenha tanta importância. Uma polémica sem fim à vista

A história é longa e complicada. Envolve o espólio do mestre renascentista Giorgio Vasari, um magnata russo, o Estado italiano e várias reviravoltas judiciais e personagens secundárias sugadas para esta novela internacional sem fim à vista.

O pintor, arquitecto, escritor e historiador renascentista Giorgio Vasari nasceu em Arezzo, na Toscana, em 1511, e o seu grande feito - para além de ter começado a pintar o tecto da Catedral de Florença - foi ter escrito diversas biografias de alguns dos mais importantes artistas do Renascimento italiano.

Por esse motivo tinha, à data da sua morte, um imenso espólio de correspondência trocada com alguns dos mais célebres protagonistas do seu tempo: o pintor Miguel Ângelo, cinco papas renascentistas e vários membros da importantíssima família Médici, entre outros. Tinha igualmente entre os seus pertences uma importantíssima colecção de desenhos e pinturas.

O arquivo de Vasari esteve desaparecido durante cerca de 300 anos até que reapareceu, no início do século XX, na posse de um tal conde Spinelli, descendente do executor do testamento do mestre. Passou então para a antiga casa habitada por Vasari, em Arezzo, a 80 quilómetros a sudeste de Florença, continuando na posse dos descendentes de Spinelli, a família Festari.

150 milhões de euros

O enredo desta história adensou-se em Setembro de 2009. Foi nessa altura que os herdeiros do falecido proprietário do espólio àquela data, Giovanni Festari, mergulhados em dívidas ao fisco, começaram a procurar activamente um comprador para o arquivo.

Por intermédio de um empresário, os herdeiros entraram em contacto com um magnata russo chamado Vasily Stepanov, da empresa russa Ross Engineering (Grupo Ross) e os termos do contrato ficaram assinados. A venda era certa.

"Foi-me dito que aquele arquivo era uma daquelas oportunidades que só aparece uma vez na vida e que eu poderia vir a ter uma colecção que mais ninguém possui", disse Stepanov ao The Art Newspaper.

A mesma fonte indica ainda que Stepanov estava disposto a pagar 150 milhões de euros pelo acervo. "Os meus associados responsáveis por estas diligências asseguraram-me que o preço era acertado e justo", disse o russo, declarando igualmente que os arquivos seriam um tesouro mundial digno de uma exposição no Museu Hermitage, em São Petersburgo.

Porém, este preço e as condições da venda desencadearam imediatamente uma polémica, ainda em 2009. Muitos questionaram a verdadeira identidade do comprador e outros tantos acharam estranho o facto de Stepanov estar interessado em pagar um preço tão elevado - oito ou dez vezes mais do que o valor real do arquivo, argumentaram então vários especialistas.

Estes dois argumentos serviram, segundo muitos, para pressionar o Governo italiano, que tinha direitos de preferência para a aquisição e podia apresentar uma contraproposta.

Como ninguém parecia interessado em ver passar este acervo para mãos estrangeiras, a pressão pública foi aumentando - mesmo depois de o advogado dos herdeiros, Guido Cosulich, ter tranquilizado o Estado italiano afirmando que o espólio não sairia de Arezzo.

Já em Março de 2010, o Ministério Público ordenou o arresto do arquivo Vasari pela polícia da Toscana e deu início a uma investigação criminal por fraude contra o Estado italiano, de acordo com um porta-voz do Ministério da Cultura, igualmente citado pelo The Art Newspaper. No âmbito deste inquérito, Stepanov teria de apresentar-se ao ministério e provar que a Ross Engineering existia, bem como confirmar a sua intenção de prosseguir com a aquisição.

No meio disto tudo, uma reviravolta surpreendente: dado o incumprimento no pagamento de impostos por parte dos quatro herdeiros Festari (uma dívida de 700 mil euros), a agência estatal de impostos Equitalia decidiu levar o arquivo Vasari a leilão, no qual o Ministério da Cultura pretendia arrematar o negócio.

Leilão cancelado

A venda nunca chegou, porém, a realizar-se. Um juiz toscano cancelou este leilão depois de um recurso apresentado pelos herdeiros argumentando que as estimativas da leiloeira para a venda (2,6 milhões) eram muito baixas.

Ainda em Março de 2010 outra reviravolta: um tribunal de Arezzo deu o leilão como válido e deliberou que seria indicada uma nova data para as licitações.

Finalmente, na última reviravolta de todas, soube-se esta semana que o comprador russo pretende desistir do negócio. Vasily Stepanov disse ao The Art Newspaper ter recebido informações que sugerem que, "desde o início, os italianos não tinham nenhuma intenção de vender o arquivo". Stepanov reafirmou, porém, ter sempre agido de boa-fé: "Assim que me apercebi das suas verdadeiras intenções, decidi romper os meus contactos com eles. Considero o negócio terminado", disse.

Os herdeiros Festari contradizem, porém, esta versão dos factos: "Nunca houve intenção de coagir o Estado italiano. Na verdade, em Setembro de 2010, os Festari pediram ao Estado para abdicar do seu direito de compra do espólio ao preço estabelecido pelo mercado de forma a dar continuidade ao contrato com o Grupo Ross", indicou um porta-voz da família.

Aconteça o que acontecer, seja ou não vendida em leilão ao Estado italiano, o espólio de Vasari permanece valioso e imutável às disputas judiciais.

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