A guerra deixou mais estilhaços e menos stress do que se pensava

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Guiné, largada de pára-quedistas em Madina do Boé, o mais flagelado dos destacamentos portugueses, 1969 General Hélio Felgas/AHM

É o fim de um tabu. Um estudo científico revela, pela primeira vez, que a geração de soldados feridos em combates no Ultramar queixa-se muito mais dos estilhaços e menos de stress pós-traumático do que se julgava. O Estado falhou no primeiro filtro de socorro, sublinha o grupo de investigadores que andou dois anos aos papéis. O que agora se sabe abre um debate e obriga a reavaliar o tratamento dos militares no Afeganistão, Bósnia, Líbano e Timor-Leste. A guerra colonial começou em África há 50 anos.

Do pinhal de Fão a Odivelas e Faro, não se sabe bem quantos ex-combatentes sobrevivem nas ruas. Às vezes, a intervenção das associações de antigos combatentes e de instituições de solidariedade tem sucesso e a reintegração acontece. Outras, o medo de sair da rua é mais forte do que a perspectiva de uma vida com telhado e paredes.

São todos casos de desgaste psicológico da guerra ou, mais grave, de doença de stress pós-traumático crónico. A sociedade revisita-os através da televisão por altura do Natal, mas não lhes deu uma resposta capaz até hoje. "A sociedade culpa-os, varre-os, esquece-os", diz o presidente da Liga dos Combatentes, Joaquim Chito Rodrigues.

O programa de saúde e inclusão social desta instituição, que presta apoio médico e psicológico a 1500 combatentes e famílias, sinalizou 80 em situação de sem-abrigo, no último ano, a maior parte dos quais em Lisboa, alertando para mais 300 combatentes e famílias em risco de exclusão social. A Comunidade Vida e Paz, por intermédio da Associação de Combatentes do Ultramar Português (ACUP), acabou por identificar 20 ex-combatentes sem abrigo entre os seus membros e que entretanto foram reinseridos ou morreram, tendo mais quatro neste momento em acompanhamento. É o Ministério da Defesa que tem os números mais globais: refere um primeiro levantamento de cerca de 100 casos, em 2010, com base na colaboração com todas as associações de antigos combatentes com as quais tem protocolos. Deste grupo, "a maioria já dispunha de algum apoio", mas ainda com respostas incompletas, diz.

Início de grande discussão

Ao fim de 37 anos, depois de um milhão de soldados recrutados, 10 mil mortos e 30 mil feridos, o país continua sem saber ao certo quantos antigos combatentes ainda vivem com doenças psicológicas. E descobre agora que muito menos sabe quantos ainda vivem limitados com ferimentos físicos.

Uma equipa envolvendo o Ministério da Defesa, o Instituto Superior de Tecnologias Avançadas (Istec), a Academia Militar, a Escola do Serviço de Saúde Militar, o Centro de Psicologia Aplicada do Exército e o Arquivo Geral do Exército e com elementos das áreas da psicologia, sociologia, direito, engenharia e economia, dedicou-se durante dois anos a este tema e encontrou uma realidade diferente da imaginada. O grupo partiu para cerca de dois anos de trabalho com a ideia de que a guerra colonial provocou níveis significativamente elevados de doença de stress pós-traumático crónico, em cerca de 15 por cento do total dos militares expostos a combate. Tem sido essa a estimativa de referência sobre as sequelas na saúde dos antigos combatentes.

Desta vez, o grupo encontrou, num conjunto de 3020 queixas de ex-combatentes do exército, todas com decisão superior, casos de doença de stress pós-traumático crónico que não passam os nove por cento do total, enquanto mais de metade, 52 por cento, reportaram ferimentos simples não tratados (36 por cento) ou múltiplos (16 por cento). A par destes dois grupos, ainda há 19 por cento com doenças emocionais secundárias, segundo a radiografia da Caracterização das Situações de Campanha ou Equiparadas no Âmbito do Estatuto do Deficiente das Forças Armadas - Feridas de Guerra: (In)Justiça Silenciosa.

"É o fim de um tabu. Os ferimentos físicos são a grande queixa, não o stress crónico", diz João Andrade da Silva, coronel na reserva e coordenador do trabalho, surpreendido quanto ao resultado da investigação, cuja principal motivação foi o stress de guerra dos militares que combateram na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Comentário dos autores: "Nada haveria de surpreendente se o grosso das queixas configurasse stress pós-traumático tardio. Mas, em vez disso, mais de metade referem-se a ferimentos simples e múltiplos." O coordenador acrescenta que "o dado mais inesperado é andarmos ainda a tratar de queixas do foro biológico" ao fim destes anos.

A investigação baseou-se nas 3020 queixas de antigos militares apresentadas entre 1997 e 2006, que procuravam a atribuição da classificação de deficiente das forças armadas. Estas queixas deram origem a processos com decisões oficiais e guardados nos serviços jurídicos do Ministério da Defesa (DeJur). Em 1997, a lei que reconhece a doença de stress pós-traumático para efeitos de classificação de deficiente das forças armadas ainda não tinha entrado em vigor (foi em 1999). E 2006 fica dentro do limite razoável para os prazos que a ciência dá para a manifestação das doenças emocionais provocadas pelos traumas da guerra (admite demorar até 30 anos). O conjunto das doenças emocionais (o stress pós-traumático agudo e crónico, este mais grave) pesa hoje cinco vezes mais do que na triagem feita durante a guerra.

O fim do tabu significa, na verdade, o início de uma grande discussão e os autores são os primeiros a reconhecê-lo. Recusam comparações com outros estudos por tratarem de populações diferentes, mas realçam que a surpresa se instalou e se abriu espaço a nova investigação. Este estudo "não confirma nem infirma", responde Andrade da Silva, "não é uma estimativa, é uma verdade" sobre a população de ex-militares que se queixaram, mas se o stress pós-traumático crónico "tivesse tanta relevância, teria de ter um reflexo muito mais intenso nesta amostra". Todo este grupo pertenceu ao Exército, o ramo mais afectado na guerra e mais exposto a situações traumáticas, e foram queixas tardias.

O pressuposto inicial de que a "quase totalidade dos queixosos seriam pessoas afectadas por doenças emocionais com emergência tardia" não se confirmou e os queixosos tardios "apresentaram muitos outros traumas que não são do foro emocional", contrariamente às "estatísticas que referem 10 por cento ou mais de antigos militares" com esta doença. Em contrapartida, o grupo de feridos impôs-se. É este desalinhamento que prenuncia o debate e a necessidade de a ciência se dedicar mais à herança dolorosa da guerra.

No início da década de 2000, o estudo epidemiológico do psiquiatra Afonso de Albuquerque sobre a prevalência do stress pós-traumático na população portuguesa com mais de 18 anos, a partir de uma amostra de mais de duas mil pessoas, extrapolou que existiam 55 mil pessoas ex-combatentes com esses sintomas indicadores. Significava, à data, um valor próximo dos da guerra do Vietname - 15 por cento dos militares expostos a combate tinham passado à fase crónica da doença -, que serviram também de referência a este autor. É um número obrigatório no debate que se fizer.

As reservas de Albuquerque

Afonso de Albuquerque ainda não conhece o novo estudo, mas previne também que não se podem comparar amostras diferentes, neste caso muito diferentes. Coloca algumas reservas no que se refere ao risco de a população analisada ser muito heterogénea e ao facto de se tratar de processos que "não têm a ver com a doença em si, mas com o grau de incapacidade que a doença provoca". Este psiquiatra, impulsionador da associação de ex-combatentes com esta doença, a Apoiar, não planeia voltar a estudá-la, mas admite que o tempo muda os resultados. "Se tivéssemos feito o estudo logo a seguir à guerra, teríamos números muito mais elevados. Há gente que melhorou gradualmente e não entrou em descompensação. Num estudo feito hoje, já não vou encontrar 55 mil, seriam menos. Alguns já morreram, outros provavelmente trataram-se ou a própria evolução da doença foi menos grave."

Joaquim Chito Rodrigues, o presidente da Liga dos Combatentes, também não comenta os resultados, alegando que a sua instituição está a desenvolver uma investigação própria, a concluir em 2012, mas aceita que o estudo dê "e bem" valores mais baixos do que os conhecidos até agora quanto ao stress de guerra crónico. A experiência também lhe diz que o número é "relativamente reduzido face aos mutilados". Outras associações ou desconhecem ou esperam para conhecer o estudo. Para o Ministério da Defesa, é um primeiro estudo que carece de mais investigação.

A razão para o volume de queixas encontrado é o falhanço do primeiro filtro de socorro e apoio aos militares vitimados, na opinião dos investigadores. "Vinte a 40 por cento destes foram mal diagnosticados ou tiveram diagnósticos optimistas", segundo Andrade da Silva, atirando o número total de acidentados na guerra para lá dos 25 mil militares, a caminho dos oficiais 30 mil. Esta "relativa ineficácia", segundo os autores, ter-se-á devido a aspectos organizativos, reflectidos em diagnósticos que dificultaram um apoio adequado aos militares.

Sem base de dados única

Mais de três décadas após o fim da guerra, os antigos combatentes têm ainda um capital real de queixa e inesperado. Eram oficiais superiores, subalternos e capitães, sargentos e praças do Exército, ramo em que o estudo se fixou por impossibilidade de superar as diferenças de métodos em relação aos outros e pelo facto de o Exército ter sido o mais envolvido na guerra.

Sem critérios homogéneos, Portugal também não tem uma base de dados única sobre os militares que foram para o Ultramar e continua a não tê-la para as guerras que se seguiram, na Bósnia, Timor, Líbano e Afeganistão. No prazo mais breve, o que se promete é a criação de uma base de dados dos deficientes militares do Exército, em 2013, e hoje espalhados por vários departamentos, diz o Ministério da Defesa à Pública.

O grosso das reclamações (85 por cento) analisadas pela equipa veio de homens que à data da incorporação viviam no campo, com o ensino primário feito ou incompleto e foram quase sempre incorporados como praças. São também estes que se queixam mais de ferimentos únicos ou múltiplos, comuns a acções de guerra subversiva de patrulhamento apeado e motorizado, com acidentes de viação, minas e tiros. Para estes casos, "esperar-se-ia que ainda no decorrer da guerra ou logo após o seu término, a maior parte das queixas estivesse devidamente enquadrada e acompanhada", mas não foi isso que aconteceu.

A um quarto dos reclamantes o Estado deu razão, tendo-lhes concedido o estatuto de DFA (deficientes das forças armadas). Metade destes tinha uma incapacidade inferior a 30 por cento, mais de um terço tinha entre 30 e 60 por cento e ainda houve quem tenha esperado mais de três décadas para ver reconhecido um grau de incapacidade superior a 60 por cento (5,5 por cento da amostra).

Nos casos dos ferimentos simples, a razão era tão óbvia que o Estado concordou com a quase totalidade dos queixosos, atribuindo-lhes uma média geral de incapacidade de 17,5 por cento. O sistema de triagem precoce para os casos mais graves, logo após o incidente, o primeiro filtro médico-psicológico e administrativo e social, parece que "funcionou com adequada eficiência".

Para muitos, porém, os ferimentos lá ficaram, concentrados nas pernas, nos braços e nas costas, segundo os relatórios oficiais consultados pelos autores, e que os convenceram de que o tipo de distribuição de ferimentos e a grande incidência nos praças, à frente no terreno da guerra subversiva, se deveram sobretudo a estilhaços provocados pelo rebentamento de explosivos. Perceberam também que o número de incidentes subia significativamente na época seca e no primeiro ano de comissão do militar.

Perante a baixa representação de militares com esta doença, o estudo socorreu-se da evolução da ciência e estendeu-o às outras doenças emocionais, como ansiedade, neurose e depressão, que a guerra também provoca. Nas doenças psicológicas, já não são os antigos praças quem mais sofre mas os oficiais. O Estado concedeu à quase totalidade deste grupo de queixosos um grau de incapacidade superior a 30 por cento.

Um calvário

Foi o contacto directo e repetido com situações de violência que marcaram estes homens, que não faziam uma guerra ofensiva e eram mais sujeitos a emboscadas em patrulhamentos. O stress de guerra não é fácil de diagnosticar e os estudos dizem que pode manifestar-se entre uma semana e 30 anos após o evento traumático. A lei portuguesa só em 1999 o reconheceu como doença, a geração que passou por ela está a entrar na reforma e a sociedade deixou de discriminar quem se queixava, sendo considerados factores favoráveis ao aumento de casos com esta doença.

O reconhecimento de deficiência incapacitante para os antigos soldados é um calvário. Passam por requerimentos de queixa, por juntas de inspecção, por comissões de pareceres, por despachos sucessivos até chegarem ao veredicto do ministro da Defesa. O tempo médio de espera para cumprir todos estes passos é de cinco anos e meio, com mais de metade do tempo passado na inquirição e definição da classificação e o restante entre instâncias de verificação e homologação de procedimentos.

A média esconde, no entanto, as dezenas de casos que se arrastam por 10, 15, mesmo 16 anos, como os autores comprovaram, pedindo, nos casos de stress de guerra, mudanças profundas, "para evitar que no fim do processo os ex-combatentes estejam piores do que no início, por força do prolongado procedimento".

Em resposta às perguntas da Pública, o Ministério da Defesa dá prazos ambiciosos. "Idealmente, o nosso comprometimento, que conta com a adesão dos ramos, é com uma meta temporal que não venha a exceder um ano", segundo o secretário de Estado da Defesa.

E por que se queixaram tão tarde estes ex-militares, aos 50 anos? As razões são várias, mas uma parece consensual. Nenhum dos ferimentos simples e múltiplos era de gravidade extrema, mas passaram "a ser pressentidos como verdadeiros problemas, com a idade mais avançada". Outras razões: mais e melhor acesso à informação, associativismo mais eficaz, leis mais amigáveis, criação da rede de apoio e finalmente a libertação de constrangimentos sociais e psicológicos. No passado, queixar-se "significava dar parte de fraco e ser criticado por outros camaradas". "Eram "cacimbados"", tinham "neuroses", diz Andrade da Silva, que enviou sínteses do estudo aos candidatos presidenciais.

O preconceito social não foi apenas português. A Organização Mundial de Saúde incluiu o DSPT na Classificação Internacional das Doenças apenas em 1992.

No caso dos feridos simples ou politraumatizados, admite-se que muitos queixosos tentaram ainda "evitar o estigma de deficiente para quem inicia uma vida e com um casamento pela frente", quando regressaram da guerra, com 20 anos, ocultando os estilhaços alojados no corpo.

Os investigadores tendem a distinguir entre stress pós-traumático crónico e as outras doenças emocionais menos graves, com a primeira mais ligada ao envolvimento directo ou testemunho de um ou mais acontecimentos violentos em combate, e as outras à manifestação em situações de pressão possíveis tanto na guerra como fora dela. A principal mola é a "vivência geralmente repetida de acontecimentos traumáticos (emboscadas, minas e outros) sem que o queixoso tenha sido fisicamente atingido, mas assistiu a ferimentos e mortes de camaradas seus".

Alguma perplexidade

Num estudo de 1987 de vários autores norte-americanos sobre os veteranos da guerra do Vietname, verificou-se que os militares capturados ou envolvidos em mortes de civis ou foram expostos a atrocidades constituíam um grupo de maior risco ao stress pós-traumático: 70 por cento destes militares desenvolveram a doença.

Para os três milhares de queixosos do novo estudo português, a guerra durou mais 30 anos do que na versão oficial. É "significativo, até surpreendente, ao nível de um segundo filtro, ou seja, num processo de triagem, 30 anos depois dos incidentes, para um conjunto de traumas que não se prende com doenças de emergência retardada, mas com ferimentos", sublinham os autores. Para estes, "é uma realidade que perante tão elevados graus de desvalorização deixa alguma perplexidade, de como os défices foram suportados até aos 50 e mais anos de idade".

A equipa não tem dúvidas de que "a constatação de um número significativo de feridos obriga a uma profunda revisão das metodologias de diagnóstico aquando das ocorrências, no fim da vida militar e no seguimento médico".

Não sabem se mais surpresas podem surgir até que esta "geração da guerra colonial" chegue globalmente à reforma. Face ao tempo que resta e ao ritmo de entrada de processos, o Estado deverá receber 1800 queixas adicionais até 2015, ano em que se estima dê entrada a última. Com o tempo médio de processos nos cinco anos, significa que os últimos casos serão decididos apenas por volta de 2020. Talvez por essa altura a guerra de África acabe.

lurdesf@publico.pt

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