Este fenómeno que se chama Deolinda

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Na sala nas Portas de Santo Antão, em Lisboa, vimo-los em fatiotas catitas Foto: Carlos Manuel Martis/arquivo

Deolinda
Lisboa, Coliseu dos Recreios
Sábado, às 21h45
Sala cheia
Quatro estrelas (em cinco)

Comecemos assim: Tão longe chegou a Deolinda. Escrevemos “a” Deolinda, e não “os” Deolinda, porque é ela a ideia que originou o grupo, porque foi precisamente essa personagem indefinida entre os tempos de ontem e a vida de hoje, ela que não sabe se há-de ser cosmopolita ou bairrista de espírito, a que esteve a ser celebrada ontem e anteontem num quase esgotado Coliseu dos Recreios (e há uma semana em duas datas no Coliseu do Porto). E começámos por dizer “tão longe chegou a Deolinda” porque nos lembramos do início, quando do grupo existia apenas um par de vídeos no YouTube e a memória de pequenos concertos publicitados de boca em boca, qual segredo mal guardado prestes a tornar-se conhecido de todos. A Deolinda, portanto.

Chegou tão longe que hoje tem os dois álbuns que constam do seu currículo, “Canção ao Lado” e o mais recente “Dois Selos e um Carimbo”, nos topes. Tão longe que em três anos já viajou mundo fora e anda agora por Portugal a apresentar-se nesses locais de habitual consagração que são os Coliseus. E eles, os Deolinda (passemos para o plural, que agora é da banda que falamos), merecem essa consagração e essa euforia.

Na sala nas Portas de Santo Antão, em Lisboa, vimo-los em fatiotas catitas (a vocalista Ana Bacalhau surgiu qual versão “haute couture” de rainha de marcha popular), com um apoio cénico simples e eficiente (“animaram-se” as ilustrações que João Fazenda lhes desenhou) e com a colaboração esporádica de convidados como o baterista Sérgio Nascimento, a pianista Joana Sá ou um quarteto de cordas (acrescentaram novas texturas a canções como “Passou por mim e sorriu” ou a célebre “Fon fon fon”). Nada disso, porém, maculou o que lhes é essencial.

A banda que, no seu início, ensaiava na Damaia, no restaurante dos pais de Pedro da Silva Martins, guitarrista e compositor, e Luís da Silva Martins, guitarrista, é exacta e precisamente aquela que, às 21h45, vimos ontem entrar no palco do Coliseu lisboeta. A Deolinda são as canções que os Deolinda compuseram para ela e tocam através dela: Retratos, construídos de dorida melancolia e de sorrisos traquinas, de aquilo que somos hoje aqui, Portugal 2011, e do que nos fez aqui chegar. Por aí se explica que cheguem a toda a gente: um pai com a filha à nossa frente, trintões a toda a volta e um grupo de miúdos ali ao lado, bem próximos do casal sexagenário impecável no fato (o dele) e penteado armado (o dela).

A intensa rodagem em palco do último par de anos transformou-os num grupo que domina na perfeição os ritmos e a dinâmica das melodias – as duas guitarras trocando dedilhados com intuição e sabedoria, o contrabaixo de José Pedro Leitão a dar peso ao conjunto e Ana Bacalhau impecável na forma como “gere” as variações de intensidade -, mas são as canções, como antes e como agora, que fazem deles um caso especial: percebem as contradições deste sítio que habitamos e constroem a partir delas pedaços de música popular tão empolgante quanto transversal.

Tudo explicado no país temente a Deus que ganha santinha acossada em procissão por sentimentos profanos - “Contado ninguém acredita”, uma das primeiras da noite -, nos fanfarrões fiéis ao clássico “segurem-me que eu vou-me a ele” que se mostram latagões de coração mole - “Fado Toninho”, a meio de concerto -, na melancolia que espreita a cada passo – a impecável “Clandestino” é um bom exemplo – e na auto-ironia utilizada como arma poderosa – disparam-na em “A problemática colocação de um mastro”, antes do encore, e na canção resumo de toda a postura, “Movimento perpétuo associativo”, cujo mote comunal, “vão sem mim, que eu vou lá ter”, finalizou o concerto enquanto caíam confetis e a banda atravessava a plateia, cantando com o público.

Ao longo de cerca de duas horas, os Deolinda foram aquilo que são desde que os vimos pela primeira vez. Uma humilde e graciosa máquina de construir canções que tem o seu grande trunfo na expressividade de Ana Bacalhau e na certeira simplicidade e clareza de letras e melodias.

Têm o espírito fadista no trinado das guitarras, no crescendo final de cada uma das músicas, e em títulos como “Fado castigo” ou o “Fado não é mau” (outras duas interpretadas ontem), mas o fado interessa-lhes mais como universo inspirador que como modelo. Pressente-se a revolução da música popular portuguesa operada por José Afonso na melodia de “Patinho de borracha” - não sabemos o que acharia Zeca disso, mas dezenas de pessoas ergueram patos de borracha durante a canção -, intuímos a gravidade etérea dos Madredeus , aquela força arrancada à nostalgia, em “Passou por mim e sorriu”, entramos no embalo dos balanços MPB que surgem a espaços, e temos por certo que Gershwin acharia piada ao momento de música de câmara que pontuou “Ignaras vedetas”.

Com o público em euforia constante, tanto que as palmas sôfregas não se cansaram de ultrapassar o ritmo da música, os Deolinda avançaram canção após canção das 25 apresentadas – dois encores incluídos - sem pausas e sem palavreado inútil. Recuperaram as suas memórias e as da sua geração e, ao fim do primeiro encore, desencantaram esse vinil antigo de José Barata Moura intitulado “Fungagá da Bicharada”. Fizeram o diagnóstico dessa geração, a que vive agora entre a bicharada, e apresentaram uma nova canção, “Que parva que eu sou”, que fez levantar parte do Coliseu – a precariedade resumida no refrão absurdamente directo “que mundo tão parvo, onde para ser escravo, é preciso estudar”. Despediram-se pouco depois com “Movimento perpétuo associativo”, plano final inevitável e obrigatório da vida que os Deolinda inventaram para essa outra rapariga chamada Deolinda.

No Coliseu, resumiram tudo em 25 canções. Chegaram longe, mas estão como sempre os vimos. Têm as canções e não precisam de nada mais.

Texto corrigido às 14h08
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