Maxime: O melhor cabaret de todos os tempos

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O Maxime abriu nos finais dos anos 40 Foto: Ricardo Jorge de Carvalho/arquivo

Hoje há festa de encerramento no Royal Maxime, em Lisboa. Depois disso, não se sabe se o cabaret fundado no final dos anos 40 voltará a abrir as portas. Manuel João Vieira procura já um novo espaço que possa assumir o papel da sala lisboeta de destino incerto, um sítio onde a música conviva saudavelmente com o striptease.

A primeira vez que cruzou aquela porta de esquina na Praça da Alegria foi levado por um grupo de amigos. Tinha 18 anos, chegara há pouco tempo a Lisboa e tudo era um deslumbramento. O Royal Maxime, cabaret de luxo, era um deleite para os seus olhos pouco experimentados. Duas orquestras lado a lado, ballets que se sucediam no palco num corrupio emprestado pelas melhores salas parisienses, um espectáculo de cor e animação que desconhecia haver na capital, as funcionárias vestidas impecavelmente, uma vida nocturna tão excitante e fascinante que quase se diria proibida. Em 1958, António Calvário da Paz já começara a cantar, mas estava muito longe de atrever a imaginar-se naquele mesmo palco, rodeado de um público ajoelhado aos seus pés. Mas não tardaria a voltar a entrar no Maxime, passados dois anos, como um artista subitamente idolatrado de Valença do Minho a Sagres. Entraria, então, pela porta grande, graças ao sucesso de Regresso, o tema com que tinha acabado de conquistar, no Porto, o Festival da Canção Portuguesa.

"Um ambiente fabuloso, de cabaret de selecção. Não era cabaret rasca, era ao mais alto nível. As empregadas que circulavam por aqui eram gente que se arranjava muitíssimo bem, não é como muitas vezes acontece agora, em que as pessoas vêm para estes sítios da mesma maneira com que vão de manhã fazer as compras à praça." Retrato por António Calvário, resgatando as primeiras memórias de um Maxime de que hoje apenas restam estas imagens que formamos a partir dos relatos alheios. A casa que hoje fecha as portas - quem sabe se para sempre - rivalizava na altura com o Casino do Estoril ao nível das atracções, entre ballets e stripteases internacionais, cantores de primeira água, ilusionistas e um sem-fim de gente que passava pelo palco numa só noite, das dez às seis da manhã. Eram noites de uma Lisboa boémia que dançava, bebia um copo e via um espectáculo. António Calvário não tem dúvidas: "Era o melhor cabaret de Lisboa de todos os tempos." Ali cantaram todos os grandes nomes da canção portuguesa. Calvário, mas também Simone de Oliveira e Tony de Matos, e o cantor chegou inclusivamente a ver Julio Iglesias no início de carreira, ainda só metade do sedutor que depois se fez. Ali se estreou também Raul Solnado.

A descrição contrasta agudamente com o cenário que Gimba e Manuel João Vieira, dois músicos dos Irmãos Catita, ali foram descobrir em meados dos anos 90. Passadas três ou quatro décadas sobre os tempos áureos do Cabaret Royal Maxime, sobre a altura em que ali fora recebido o príncipe Juan Carlos de Espanha, a mesma sala de vibrante animação transformara-se num moribundo chamariz para uns quantos endinheirados, uma casa de alterne, onde antes se encontrava um dos palcos mais cobiçados da cidade. O templo máximo do entretenimento cosmopolita, imaginado como espelho do Moulin Rouge ou do Folies Bergères, tinha dado lugar a um paraíso da decadência. Mas uma decadência "inofensiva", concordam os dois músicos que por ali tocaram algumas vezes, sobretudo depois do encerramento do vizinho Ritz Club - outro mítico cabaret da noite lisboeta do tempo do Estado Novo -, em 2000. O Ritz, de resto, assumira em parte a herança do Johnny Guitar, e o Maxime prolongaria parte do seu legado até à presente semana. Na altura, tinha "um ambiente normal lisboeta, com um pouco de alterne, um pouco de striptease, um pouco de canção, comia-se até às tantas, e era um bocado caro, porque nestes ambientes as bebidas são sempre mais caras", lembra Manuel João Vieira.

Garrafas por 60 contos

Quando começou a frequentar o Maxime, Manuel João encontrou lá o mesmo cenário que descobrira antes no Ritz, numa miraculosa cápsula temporal que conservava resquícios vários do entretenimento das décadas anteriores. "O Ritz continuava com aqueles números antigos, que vinham desde os anos 50, de cantoras, travestis, um autêntico circo felliniano. Depois isso foi acabando, tornou-se um sítio mais para ouvir música, e por essa altura de vez em quando vinha ao Maxime. Achava piada a estes ambientes que estavam a desaparecer. Gostava daquele tipo de espectáculo de cabaret, que é uma coisa de que os putos hoje em dia não fazem a menor ideia. Nessa altura, o Maxime era sobretudo uma casa onde havia muitas raparigas sentadas a desfrutar de bebidas adocicadas e uns senhores a divertirem-se."

Gimba lembra-se que graças a essas actuações dos Irmãos Catita, Manuel João Vieira reconheceu na sala "um potencial bestial". Gimba e Tita - da produtora independente Banana Royale, responsável por parte da programação e produção do Maxime nos últimos anos, sobretudo a ligada à recuperação de nomes do passado e que eram a cara do espaço - começaram então a frequentar o Maxime enquanto clientes: "Saíamos à noite, os sítios começaram a ficar todos iguais e íamos até ao Maxime." Nessas noites de sábado, "à hora de ponta, duas e meia da manhã", recorda Gimba, "aquilo não tinha mais de quatro clientes, só que esses quatro clientes bebiam garrafas de 60 contos". "Uma vez houve um que acabara de comprar uma garrafa de Moët & Chandon por 60 contos e veio oferecê-la à nossa mesa, comprando depois outra para beber com as meninas". Mas nesse contacto mais próximo com a casa, não foi apenas o bafo do álcool que lhes chegou ao nariz. "Percebemos que aquilo estava a morrer", diz Gimba.

O Maxime acabou por fechar e ser colocado "um pequeno, bastante pequeno até" anúncio de jornal que dizia simplesmente: "Cede-se exploração de Maxime." Manuel João e o seu padrasto, Bo Backstrom, avançaram então para a tentativa de revitalização do espaço no início de 2006. E, quando lhe pegaram, quiseram preservar alguns dos artistas que por ali tocavam habitualmente. Um deles, Carlos Cruz, era conhecido por homem-banda e animava os serões com a sua bateria e aparelhagem Midi, pondo toda a gente a dançar. Através do cantor romântico italiano Sandro Core, que já participara em espectáculos dos Irmãos Catita, sabiam que havia toda "uma espécie de submundo das variedades" em aflição, porque a sua subsistência estava em perigo: os cantores José Portugal e José Nobre, ou a stripper Michelle, conhecida por as suas curvas estarem demasiado à vista, de tal forma transbordavam já para fora da roupa antes sequer de o espectáculo se iniciar.

O amor é livre

Sandro Core, velho conhecido de todos os casinos portugueses, e que ali cantou pela primeira vez em 1972 integrado num espectáculo de ballet inglês que andava em digressão pelo mundo, viaja facilmente no tempo a qualquer sugestão dos anos dourados do Maxime. "Era considerada uma das melhores salas de espectáculos da Europa - orquestras, ballets, stripteases, atracções, era tudo do melhor que havia", diz de olhos perdidos nas cortinas vermelhas que ainda hoje balizam o palco. E por recordar bem o que eram aquelas noites de boémia, tem uma explicação bem prosaica para justificar a decadência deste e de outros espaços semelhantes. "Esta coisa das mulheres a alternar já não interessa mais a ninguém. O amor é livre, não é como antigamente. Agora as mulheres é que escolhem o homem, não é sequer preciso o homem andar à procura delas. Os homens vinham a estas casas à procura das mulheres. Hoje há mulheres em todo o lado. Por isso é que estas casas decaíram e já não existem."

Depois de Manuel João e Bo Backstrom assumirem a gerência e de a Banana avançar com algumas das ideias de programação, o Maxime rapidamente ganhou um espaço no roteiro da noite lisboeta, tendo sido a casa que relançou a carreira de José Cid no já histórico concerto em Abril de 2006 e por onde passaram os actores dos Sopranos (Michael Imperioli e John Ventimiglia) armados de ambições musicais. Foi igualmente ali que os Deolinda começaram a rodar as canções que agora todo o país sabe de cor. Mas foi mantendo, tanto quanto pôde, os artistas residentes do antigo Maxime, "do tempo do engenheiro" Vítor Azevedo. Entre eles estavam José Portugal, Sandro Core, a stripper Gretty Star e Carlos Cruz, hoje a trabalhar no Casino Algarve de Portimão. "Os artistas eram muito engraçados, mas o novo público não estava muito para aí virado, lamentavelmente. O público contemporâneo é estúpido", ri-se Gimba, "porque só sai de casa para ver o que já conhece." Aos poucos, os nomes do antigamente foram caindo dos cartazes do Maxime. Mas havia um sentido de missão em apresentar concertos de António Calvário - que sempre esgotou o Maxime, de 1960 a 2007 - e outros clássicos da música portuguesa, mesmo quando era quase incomportável financeiramente, por fazer parte da imagem da casa.

Febre de sábado à noite

Até Manuel João Vieira foi evitando ser uma presença regular. "A partir de determinada altura tentei não vir aqui muitas vezes, porque estar a beber à borla é uma coisa perigosa; portanto, vim aqui sobretudo no contexto de alguns concertos que queria ver e dos próprios concertos que fazia, de maneira que a memória que tenho é a do palco e das pessoas à volta." Um palco que, na sua opinião, continua a ser o melhor de Lisboa, e que, pela cor branca, foi utilizado na série Paraíso Filmes para recriar o famoso número de dança de John Travolta em Febre de Sábado à Noite.

Depois dos seus tempos de glória, de uma lenta transformação com fado e folclores a horas próprias e meninas a despirem-se a horas impróprias, nos últimos cinco anos o Maxime recuperou um lugar destacado na noite de Lisboa. Mas agora, o néon da entrada, um M vermelho incrustado numa espécie de insígnia azul, ameaça apagar-se para sempre.

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