Tunisinos não se cansam de vasculhar no lixo da família de Ben Ali

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A casa de Abdelssalem, um dos dez irmãos da primeira-dama Foto: Miguel Manso

Em Marsa, a família Trabelsi tinha 22 casas. O bairro tornou-se uma atracção para a população, mesmo que não sobrem mansões intactas depois da revolta contra o ditador.

Sai-se de Tunes pela Avenida da Qualidade de Vida em direcção a norte e a confusão da capital vai ficando para trás. Há mar dos dois lados e o ar torna-se mais fresco. À direita ergue-se o porto, à esquerda espraia-se a baía que recorta a cidade. O percurso costumava estar repleto de cartazes de Zine El Abidine Ben Ali. Já não: os tunisinos arrancaram e pintaram por cima dos símbolos do ditador deposto.

Primeira paragem, Cartago. Há ruínas romanas na alameda que desemboca no palácio presidencial. Os banhos antoninos, a cisterna, o anfiteatro. Uma rampa e ao cimo um imponente portão que só deixa ver as árvores do jardim. Já não mora ali ninguém, mas dois polícias sorridentes impedem a passagem.

De Cartago a Marsa são poucos quilómetros. Subúrbio de luxo, tem os melhores hotéis e restaurantes da região. Aqui vivia quase toda a família de Leila Trabelsi, primeira-dama desde 1992, duas décadas a coleccionar propriedades. Na Tunísia, e não só: dona de apartamentos em Paris e duas mansões na Côte d"Azur, ainda em Setembro comprou um hotel no 17.º Bairro de Paris.

Em Marsa, os Trabelsi tinham 22 casas. Agora que tomaram em mãos o seu destino, o dia-a-dia dos tunisinos também se faz de visitas ao que sobra destas mansões.

Numa curva da marginal, ergue-se a moradia de Abdelssalem, um dos dez irmãos de Leila. Alguém pintou no muro da entrada: "Adeus tristeza, olá felicidade e liberdade".

A casa é branca e cor de salmão e tem quatro andares, escadas em caracol, jardim lateral com uma fonte de pedra, outro nas traseiras com uma piscina em forma de onda. Não sobra um móvel nem uma divisão intacta. Só paredes vazias. As lâmpadas e as tomadas foram arrancadas, as janelas partidas. Há vidros a boiar na piscina, ao lado de garrafas e do que já foi uma porta. Mesmo se já há pouco para ver, não param de chegar tunisinos: grupos de amigos, mães e filhas, famílias inteiras, até polícias. Sobem e descem escadas, remexem no lixo, param nas varandas a gozar a vista de mar.

"Queríamos saber onde estava o nosso dinheiro. Aqui está! Como eles viviam, com tunisinos a morrer de fome...", diz Sana, professora de Inglês e estudante universitária. "Antes, nem sonhávamos entrar. Aqui viviam serpentes. Agora fugiram, como ratos", continua, antes de se dizer "muito optimista" com o futuro da Tunísia. "Por causa da ditadura, estamos muito mal preparados politicamente. Mas vamos exigir que os partidos nos tratem com respeito. Temos de aprender a escolher, a viver em democracia."

Fuad, um jovem da vizinhança, tornou-se guia turístico dos restos da ditadura. Umas ruas à frente, nova moradia, o mesmo cenário. Esta era uma das casas de Imed, sobrinho da primeira-dama preso às ordens do Governo interino. Pelo chão, restos de revistas de moda, de DVD, livros de escola, uma caixa de PowerRangers. No que terá sido um quarto, há graffiti e mãos marcadas na parede. Numa das casas de banho, ficou um jacuzzi em forma de flor que ninguém conseguiu fazer passar pela porta. Há paredes e tectos que parecem prestes a rebentar, cheios de bolhas. "Como não conseguiam partir as paredes, tentaram incendiar a casa", explica Fuad.

À falta de outro troféu, um homem leva um caderno de trabalhos de casa com letra infantil antes de seguir para a próxima casa.

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