Governo interino da Tunísia é cada vez menos um Governo de união nacional
Os ministros da transição tomaram posse ao final do dia, numa cerimónia ensombrada pela ruptura da União Geral dos Trabalhadores Tunisinos (UGTT), a central sindical que desempenhou um papel crucial no derrube do ex-Presidente Ben Ali, ao colocar-se ao lado dos manifestantes.
"Não nos interessa fazer parte de um Governo que não dá garantias de querer encaminhar-se para uma real transição democrática", disse Abdeljelil Bedoui, nomeado adjunto do primeiro-ministro. Com ele saíram o ministro do Emprego e o dos Transportes, depois de a UGTT ter anunciado "não reconhecer" um Governo que reservou as principais pastas para os partidários de Ben Ali.
Mustapha Ben Jaafar, líder de um dos três partidos da oposição chamados ao Governo, decidiu também deixar vago o Ministério da Saúde. E os ex-comunistas do Ettajdid ameaçaram seguir o exemplo, caso não sejam redistribuídos alguns dos ministérios.
O primeiro-ministro interino defendeu-se, pela manhã, numa entrevista à rádio Europe 1, explicando que todos os que transitam do anterior Governo têm "grande competência" e as mãos limpas da repressão que, em menos de um mês, provocou 78 mortos. "Dêem-nos tempo para pôr em marcha as reformas", disse Mohammed Ghannouchi. Ontem, em vários dos cafés e lojas que abriram portas no centro da capital, várias pessoas ouvidas pela Reuters pareciam concordar. "Não podemos entregar tudo nas mãos de pessoas sem experiência", disse à Reuters Ali Ajaimi.
Mas, a curta distância dali, no meio das centenas que voltaram a desafiar o estado de emergência, sobrava indignação. "Este regime é como um cancro: se deixarmos uma pequena parte, ele regressa e espalha-se", dizia Kamal Ghazwan. Ao lado, os amigos falavam numa "conspiração para convencer as pessoas a aceitar um Governo que mantém o regime no poder".
Ao final do dia, numa tentativa para sublinhar a sua independência, Ghannouchi, e o Presidente interino, Foued Mebazaa, desfiliaram-se do antigo partido único, mas o gesto foi de imediato desvalorizado pela UGTT.
As demissões e os protestos nas ruas "provam que as pessoas são contra a ideia de o país continuar a ser governado pelas mesmas caras de sempre", explicou à Al-Jazira Blake Hounshell, editor da Foreign Policy, dizendo não ser certo que o Governo consiga aguentar-se o tempo suficiente para organizar eleições, prometidas para o prazo de seis meses.
Islamistas nos protestosA manifestação de ontem na capital - a que se juntaram outras em nas cidades de Sousse, Sfax e Sidi Bouzid - começou pequena e pacífica, mas foi engrossando e de novo a polícia recorreu à força para a dispersar.
A contenção da véspera desapareceu e, pela primeira vez desde o derrube de Ben Ali, na sexta-feira, voltaram a ser usados os bastões contra os manifestantes. Pouco depois, toda a Avenida Bourguiba estava debaixo de uma nuvem de gás lacrimogéneo.
À cabeça dos protestos, a AFP encontrou Sadok Chorou, ex-líder do partido islamista Ennahdha, libertado em Outubro, após 20 anos de prisão. "O novo Governo não representa ninguém e deve cair", disse o velho dirigente, no primeiro dia em que os simpatizantes islamistas se fizeram notar nas ruas de Tunes. O Ennahdha anunciou que quer concorrer às próximas eleições e para isso pedirá a sua legalização, mas o Governo avisou que o seu líder, Rached Ghannouchi, condenado a prisão perpétua em 1991, só poderá regressar do exílio após a aprovação de uma lei de amnistia.
No país está já Moncef Marzouki, histórico opositor e activista dos direitos humanos. "Hoje é dia de uma grande vitória, porque posso estar num país livre", disse, emocionado, aos 200 apoiantes que o esperavam no aeroporto. Marzouki é um dos candidatos falados para as próximas presidenciais, mas, como os demais opositores, é pouco conhecido num país onde a propaganda e a censura só deixavam espaço para o regime.
"A nossa paisagem política foi devastada", disse ao Libération o escritor Abelwahab Meddeb, comparando a situação na Tunísia à vivida na Europa de Leste no final dos anos 80. Mas se a revolução tem já um símbolo - Mohamed Bouzizi, o vendedor que se imolou pelo fogo - "ainda não tem um Lech Walesa ou um Vaclav Havel".