A telefonia que era de todos nós

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A Emissora Nacional na inauguração da Ponte Salazar em Agosto de 1966 fotografias

Eram tempos de outros protagonistas nos media. A rádio reunia as pessoas à sua volta, em torno da voz que saía da caixa. Há 75 anos era assim. A rádio pública juntou-se ao jornalista Joaquim Vieira e a três investigadores para celebrar os anos da rádio no livroA nossa telefonia e repensar o seu lugar nos nossos dias. Por Ana Machado

São nomes como Pedro Moutinho, Maria Leonor, Igrejas Caeiro, Milú, Fernando Pessa ou Artur Agostinho que nos fazem viajar a outros dias da rádio, quando ela era um meio mobilizador. Portugal parava para ouvir os comunicados do presidente do Conselho António de Oliveira Salazar, os jogos da bola, a Volta a Portugal em bicicleta, o teatro radiofónico ou até para ouvir Fernando Pessa a entrevistar um peru no Natal, com o seu estilo inconfundível.

Aos nomes destes pioneiros sucederam-se outros e até outras maneiras de fazer rádio: José Nuno Martins, João David Nunes, Francisco Sena Santos. É a este colectivo, e ao meio em si, que o jornalista Joaquim Vieira, coordenador de um trabalho de investigação dos musicólogos Manuel Deniz Silva e Pedro Russo Moreira e do sociólogo Nuno Domingos, quer prestar homenagem no livro A nossa telefonia, publicado pela RTP no âmbito dos 75 anos da rádio pública.

Esta homenagem em forma de livro, onde as imagens e um CD de sons de arquivo nos fazem viajar pelos 75 anos de rádio pública, que são também 75 anos de história, de Portugal e do mundo, é o reconhecimento do lugar de destaque político e social deste meio que era rei até à chegada de televisão pública, 25 anos mais jovem: "Decidimos que, mais do que um anuário ou uma abordagem enciclopédica, queríamos descrever como evoluiu a rádio pública em função das várias políticas de comunicação social dos poderes que se foram sucedendo", diz Joaquim Vieira.

Quando arranca oficialmente, em 1935, a rádio pública, então Emissora Nacional, já encontrava um caminho desbravado por outros que tinham mostrado o efeito mobilizador do meio.

A rádio em Portugal estava lançada já e várias experiências, umas mais profissionais do que outras, chegavam aos ouvidos de muitos. Um dos casos mais sérios era o da Rádio Portugal, nascida em 1924 e conhecida pelo nome do emissor, o CT1AA, de Abílio Nunes dos Santos, com antena instalada no alto dos Grandes Armazéns do Chiado, que eram propriedade da família Nunes dos Santos.

No arranque dos anos 30, o Rádio Clube Português (RCP), nos primeiros anos com emissão da Parede, na linha de Cascais, começou a fidelizar um público já vasto.

A primeira direcção da Emissora Nacional, lembra Joaquim Vieira, com Henrique Galvão no comando, tem noção já do lugar que a rádio ocupa na vida social e política portuguesa. Mas a programação do arranque da rádio pública é considerada densa e pouco apelativa a grandes massas. Na chegada aos anos de 1940, um homem sente que o veículo rádio poderia ser um instrumento mais mobilizador do que até então tinha mostradoser. Chamava-se António Ferro.

A rádio é propaganda

"Nos anos 40, Ferro dá uma grande volta à rádio pública. Vai buscar Maria Leonor [locutora] e outros nomes e o seu objectivo é levar a rádio à comunicação de massas", lembra o coordenador do trabalho sobre o papel do ministro da Propaganda de Salazar. Muitos constroem os seus aparelhos rudimentares, a Emissora Nacional chega a promover marcas de baixo custo para que a telefonia chegue a todas as casas. E com ela a propaganda do Governo de Salazar. RCP e Rádio Renascença acompanhavam paralelamente a escalada deste meio que mobilizava multidões e cujo fascínio era traduzido num diálogo conhecido do filme O Costa do Castelo, de 1943, assinado por Arthur Duarte, onde uma multidão incrédula, em redor de um aparelho de rádio, pergunta a António Silva: "Mas isto toca?" António Silva responde: "Se toca! Isto, abre-se, liga-se à parede e é uma torneira de deitar música."

Joaquim Vieira recorda que com o advento da televisão a rádio manteve por algum tempo o seu protagonismo e efeito mobilizador. E as estrelas da rádio também. Mas só enquanto os aparelhos de televisão não chegavam a todos e o novo meio que aparecia em 1957 não se tinha ainda democratizado.

Mas, mesmo com o aparecimento da TV, a rádio continuava a ser um meio agregador, lembra Joaquim Vieira: "O papel agregador da rádio continuou com a televisão, nomeadamente graças à guerra que se iniciou em 1961 e ao papel da onda curta, que permitia chegar às colónias."

Era através do éter que chegavam as mensagens dos soldados e os relatos dos comentadores do regime sobre um conflito em terras distantes onde parecia estar tudo sob controlo do poder da ditadura.

Com a guerra perdida e com o fim do regime, a rádio vai perdendo gradualmente lugar para a nova protagonista: "Em 1974 já se ligava mais à televisão. Aí o protagonismo da televisão já foi maior. Mas a velha rádio ainda faz passar a senha da Revolução de Abril. E é por ela que passa o Comunicado do Movimento das Forças Armadas que abre a porta do Portugal livre", recorda mais uma vez Joaquim Vieira.

Para o jornalista, aperda de protagonismo da telefonia sentiu-se na elaboração deste trabalho especialmente na recolha dos sons do CD que acompanha o livro: "Os sons que encontramos eram mais fortes antes do 25 de Abril." A mensagem de entrega do Nobel da Medicina a Egas Moniz, em 1949, as comunicações dos soldados na guerra para as famílias na metrópole, os discursos mobilizadores de Salazar, o regresso do paquete Santa Maria depois do sequestro, em 1961, a partida das tropas para África, a inauguração da Ponte 25 de Abril (então Ponte Salazar), o anúncio da morte do ditador e depois o comunicado do MFA e as primeiras palavras de exilados ilustres como Mário Soares ou Álvaro Cunhal no regresso são alguns dos excertos dessa rádio que ficaram na nossa memória.

"O fascínio que a rádio exercia sobre as pessoas foi-se perdendo com a TV. Foi ocorrendo uma invasão do espaço privado por este meio novo. O fenómeno de escuta colectiva de rádio que ocorria passou a fazer-se em redor da TV. Não se pode dizer que a TV substituiu a rádio. Mas é verdade que lhe roubou protagonismo. Até o star system que existia na rádio deixou de existir com a TV. Deixámos gradualmente de ter uma relação com as figuras da rádio. E essa relação não volta mais. Não me parece que a relação que existia do público com um Pedro Moutinho seja a mesma que existe hoje com um António Macedo, por exemplo", diz Joaquim Vieira sobre o locutor das manhãs da rádio pública hoje e noutros tempos.

Com a liberalização das rádios, no final dos anos 1980, e, depois, com a privatização, o meio renovou-se. Joaquim Vieira destaca aqui o papel da Rádio Comercial e do nome de João David Nunes, então seu director: "Aí houve uma renovação muito grande da linguagem radiofónica. E, depois, o aparecimento de projectos fortes privados, como a TSF, também veio trazer um papel inovador da rádio".

"Hoje, o facto de a rádio pública estar misturada com a TV, o facto de a rádio já não ter autonomia, é sintomático do papel que a rádio pública perdeu, com uma audiência residual", afirma Joaquim Vieira, destacando o papel dos grupos privados na actual audiência de rádio.

Qual o papel da rádio pública na sociedade actual? "Cabe à própria rádio pública fomentar o debate sobre o seu lugar hoje. No meu entender, deve ser de credibilidade na informação e na divulgação da música e cultura portuguesas. E será sempre um instrumento de acesso rápido à sociedade enquanto reserva do poder, embora cada vez menos presente entre nós. Marcou gerações mais antigas. Marcou até uma geração que era jovem na década de 1980. Mas hoje as pessoas, principalmente os mais novos, são marcados por outros media", afirma Joaquim Vieira.

Os autores do livro A nossa telefonia concluem: "A trajectória da rádio pública constitui um objecto privilegiado para pensar, nas suas horas sombrias e nos seus gestos de liberdade, nos seus êxitos e nos seus fracassos, o que foi a política cultural no Portugal dos últimos 75 anos. Ficam-nos dessa história mais questões do que respostas, mais dúvidas do que certezas. A imprevisibilidade da equação entre a intervenção estatal e a transbordante vitalidade do social continua intacta, e permanece o desafio essencial para qualquer tentativa de pensar o que possa ser, hoje, o serviço público de radiodifusão." (página 217)

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