Novo Governo é ainda dominado pelos homens do regime

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Centenas de tunisinos exigiram nas ruas o saneamento de todos os ministros do partido de Ben Ali FRED DUFOUR/AFP

Sete ministros mantêm-se no executivo de "união". Depois dos protestos da manhã, Tunes anoiteceu calma, como testemunhou a enviada do PÚBLICO

O anúncio que a Tunísia esperava há quase 72 horas chegou pouco antes da hora do recolher obrigatório. Mohammed Ghannouchi, o primeiro-ministro que já foi do regime e é agora da transição, anunciou a formação de um Governo de "união nacional", um passo essencial para o país ultrapassar o vazio que se seguiu ao derrube do Presidente Zine El-Abidine Ben Ali. Mas os principais ministérios vão continuar nas mãos de homens do regime, o que pode ser inaceitável para aqueles que há um mês protestam nas ruas.

"A Tunísia merece muito melhor: 90 mortos [78, segundo o último balanço oficial], quatro semanas de revolta para conseguir o quê? Um Governo que não é de união porque, na realidade, é composto pelo partido da ditadura", disse Moncef Marzouki, histórico opositor tunisino auto-exilado em França. Apesar de legal, o seu Congresso para a República (CPR, esquerda laica) não terá ninguém no executivo, que excluiu também os islamistas e comunistas, perseguidos por Ben Ali.

Numa declaração ao país, Ghannouchi disse ter conseguido formar "um Governo que integra os diferentes partidos e componentes da sociedade civil". Entre os 24 ministros, estão três líderes da oposição, o blogger Slim Amamou (detido durante os protestos), mas também sete nomes que transitam do último Governo de Ben Ali: além de Ghannouchi estão lá os ex-ministros dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Finanças e Interior, este nomeado apenas na semana passada.

Ficaram apenas os tecnocratas, sem envolvimento directo na repressão das manifestações, mas, como explicou um diplomata que falou à Al-Jazira sob anonimato, a imagem que passa é a de que está lá "muito da velha guarda e pouco da nova". E isto pode não ser suficiente para pôr fim às manifestações, como as que ontem de manhã se repetiram na capital, Tunes. Centenas de pessoas (mais de um milhar, segundo algumas fontes) saíram à rua para exigir o saneamento de todos os ministros da União Constitucional Democrática (RCD, o partido de Ben Ali). "Já tivemos que chegasse deste partido. Não os queremos ver mais aqui", disse um manifestante à Reuters enquanto descia a Avenida Bourguiba, a mais importante de Tunes.

A marcha, que começou pequena, foi engrossando e acabou por ser parada pela polícia antimotim, que usou canhões de água e granadas de gás lacrimogéneo para dispersar os manifestantes. A Al-Jazira noticiou também protestos em Sidi Bouzid, cidade no interior do país onde a revolta começou há um mês, com o suicídio de um vendedor ambulante em protesto contra as autoridades locais, e na localidade vizinha de Regueb. "Podemos viver apenas com pão e água, mas não podemos viver mais com a RCD", ouviu-se gritar na manifestação em Regeb, onde a repressão das últimas semanas foi mais dura.

Numa tentativa de apaziguamento, Ghannouchi prometeu investigar "todos os que tenham uma enorme riqueza ou sejam suspeitos de corrupção" e a extinção do Ministério da Informação, responsável pela censura. Anunciou ainda a libertação dos presos políticos e a legalização de todos os partidos e da Liga dos Direitos do Homem, uma das principais vozes da dissidência. As eleições, nas quais os tunisinos depositam as esperanças, serão realizadas, "o mais tardar, dentro de seis meses", para dar à oposição tempo de se organizar e reformar a legislação, disse o primeiro-ministro.

Calma no aeroporto

Durante a tarde, o aeroporto de Tunes teve menos movimento do que tivera pela manhã, quando muitos estrangeiros, residentes e turistas, se concentraram ali para embarcar com destino aos seus países de origem. À tarde houve mais voos a chegar do que a partir e vinham quase vazios. O avião da Tunisair que levou dezenas de portugueses para Lisboa, por exemplo, aterrou em Tunes só com oito passageiros, metade tunisinos, metade portugueses, incluindo a embaixadora, Maria Rita da França Sousa.

No aeroporto havia filas nos bancos e nas lojas de câmbio e quase todas as outras lojas estavam fechadas ou desertas. Ben Ali, nome que antes só se pensava ou dizia em sussurro, faz agora parte das conversas de todos. Abdelssalem, um tunisino que acaba de regressar ao país, disse estar preocupado por ter ouvido dizer que o novo Governo mantém vários ministros do Presidente deposto, "mesmo os mais importantes".

Kamel, um taxista que decidiu tentar a sorte no aeroporto depois de dias "de muita confusão e pouco trabalho", exibia um dedo negro e um vidro lateral recém-colocado: o anterior tinha sido partido na véspera, por uma pedra lançada não sabe por quem nem porquê. O que Kamel sabe é que continua a haver gente a atacar outros sem motivo aparente e é por isso que se diz feliz de cada vez que vê polícias ou soldados.

A menos de uma hora para começar o recolher obrigatório, era cada vez menor o movimento. Os poucos taxistas procuravam quem andava por ali, avisando que o tempo começava a escassear para chegar aonde quer que seja. Passa uma carrinha de caixa aberta cheia de militares. Pouco depois, um helicóptero sobrevoa a zona.

Polícias de branco

Ao fim da tarde, o centro de Tunes esvaziou-se de gente e lojas fecharam. Pelas ruas, os soldados identificam-se bem à distância. Mas os polícias, alguns à civil, apenas com um colete como identificação, misturam-se com os jovens que decidiram tomar em mãos a segurança do seu quarteirão, da sua rua ou da sua casa. Quase todos têm farda, uma T-shirt de alças branca por cima da roupa; na mão, todos erguem bastões de madeira.

Acompanhados ou não por polícias, os jovens feitos agentes de segurança concentram-se junto a barricadas improvisadas com bidões, portões arrancados aos seus lugares habituais ou pedaços de ferro, alguns adornados por bandeiras tunisinas. Mandam parar carros e revistam malas.

Quando se aproxima o início do recolher obrigatório, em vigor entre as seis da tarde e as cinco da manhã, não há mais ninguém nas ruas. "São muito importantes estes grupos. São eles que estão a ajudar a fazer a revolução", diz Ben Ali Halem, que trabalha num dos hotéis do centro da cidade nova. A noite cai com a ordem de recolher e traz o silêncio à capital.

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