Este universo é complexo

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Dois irmãos portugueses descobriram em 2005 um "universo paralelo e complexo": o maior aglomerado de favelas do Rio, o Complexo do Alemão. Filmaram a vida de três moradores, conversaram com traficantes, dormiram e acordaram entre as ruas destruídas e os esgotos a céu aberto

"Cara, é isso aí, não tem mais o que dizer, vocês falaram". Isto e um abraço. Foi assim a reacção dos habitantes do Complexo do Alemão no final da projecção, num cinema do Rio de Janeiro, do filme "Complexo - Universo Paralelo", dos irmãos portugueses Mário e Pedro Patrocínio.
Mário (realizador) e Pedro (director de fotografia) não queriam mais.

Lançaram-se no projecto de filmar no maior aglomerado de favelas do Rio, cidade onde estavam a viver (depois de terem tido várias experiências profissionais, Mário nos EUA e em Cabo Verde, Pedro em Cabo Verde, onde juntos fizeram o seu primeiro filme documental) porque ambicionavam mostrar o Complexo como ele é. E mostrar que é um mundo diferente do que é relatado pela comunicação social brasileira. O filme, produzido por Henrique Salgado, ganhou o prémio Melhor Filme Internacional Direitos Humanos no Festival Artivist, em Los Angeles.

Tudo começou quando conheceram MC Playboy, um artista que vive na favela e que os convidou para fazerem um vídeo. "Nem sabíamos o que era o Complexo do Alemão", conta Mário, nascido em 1978 (é quatro anos mais velho que o irmão). "Fomos fazer pesquisa e a primeira coisa que aparecia eram as notícias sobre o Tim Lopes, jornalista da Globo, assassinado [em 2002], esquartejado, queimado, e pensámos 'bem, isto é o terror, onde é que nos estamos a meter?'."

Depois foram conhecendo as pessoas, o Seu Zé, a Dona Célia e os seus oito filhos, e os outros. "Percebemos que era como uma vila, apesar de ali morarem 300 mil pessoas." Conheceram a gente honesta, "as pessoas normais que acordam de manhã e vão trabalhar", e os traficantes. São dois mundos, mas inevitavelmente ligados.

"Muitos deles [os traficantes] nasceram ali, foram criados ali. De repente, as pessoas com quem andaste na escola estão no tráfico. E eles perguntam-se 'vou deixar de ser amigo do cara? Vou deixar de lhe dizer bom dia porque ele agora anda no tráfico?'. Há uma ligação que é inevitável porque as pessoas cresceram juntas, se calhar têm o mesmo tio, jogaram à bola juntas".

O filme segue três personagens principais: Seu Zé, "um sábio", um veterano do Complexo, onde já viu chegar e de onde já viu partir muita gente; a Dona Célia, que apanha lixo para reciclagem e tenta alimentar e educar os oito filhos, sem a ajuda do marido que passa a maior parte do tempo deitado no sofá; e o MC Playboy, que faz letras de músicas a contar como é viver na favela e cuida da sua imagem porque, apesar de tudo, é uma star.

Um Natal na favela

Foi no Natal de 2005 que os irmãos, nostálgicos por estarem longe da família, decidiram passar a época no Complexo. "Pela primeira vez dormimos lá e ficámos alguns dias. Pensámos que era uma época boa porque eles iam estar mais sensíveis e abrir-se mais connosco, mas nós também estávamos mais sensíveis, e esquecemo-nos disso." A experiência tocou-os mais do que esperavam. E começaram a pensar fazer o filme.

Não era fácil, não tinham dinheiro nem apoios. "Às vezes", conta Mário, "estava a conversar com o Pedro quando saíamos do Complexo e estávamos a voltar à Zona Sul, ao Rio Maravilhoso, e pensávamos 'estamos a ter estas dificuldades todas para levantar o projecto, mas se a Dona Célia consegue, com oito filhos, todos os dias sorrir para a vida, nós também temos que conseguir'."

Dona Célia, com a sua voz um pouco rouca, o corpo magro, as t-shirts largas, a contar, à janela da sua casa com vista sobre todo o morro, como quase perdeu o primeiro bebé porque não tinha nada para comer, foi "uma inspiração". "Dona Célia é uma entre milhares de mães de conhecemos [na favela] que são o pilar da família, porque existe uma ausência paternal total. Colocávamo-nos na situação dela e foi uma lição de vida total."

No filme, Mário e Pedro falam também com os traficantes. Armas na mão, caras tapadas, gestos nervosos. "Sempre pensámos falar com os traficantes e inicialmente um deles ia ser uma das personagens principais". Mas quando decidiram começar as filmagens, em 2007, deu-se o cerco policial ao Complexo do Alemão "e foi tudo por água abaixo". Já ninguém estava disponível para trabalhar no filme. "Não queriam trabalhar porque eram notícias a toda a hora na mídia, Complexo do Alemão, guerra, mortos", descreve Mário.

Era impossível, no meio da tensão que se tinha instalado na favela, acompanhar um traficante. "Estava sempre a haver operações, pequenos tiroteios, incursões. E a movimentação dos traficantes é brutal, sempre de um lado para o outro". Pedro, geralmente mais calado, interrompe para explicar que aqueles "não dormiam duas noites no mesmo sítio".

Apesar disso, quando as coisas acalmaram, foi possível entrevistar alguns traficantes. "Eles viam que era uma oportunidade para falar, para dizer o que pensam sabendo que as palavras deles não iam ser deturpadas". Mário e Pedro tinham já passado por um "processo de conquista" dos habitantes. "Primeiro fizemos um vídeo, chamado Por Amor, que falava das pessoas boas que se tinham destacado na favela, e isso ajudou bastante":
As pessoas, contam os irmãos, têm geralmente uma grande desconfiança "da mídia" - "é fácil chegar à favela, arranjar um miúdo qualquer, meter-lhe uma arma na mão, uma coisa na cabeça, e pô-lo a dizer o que se quer". Eles queriam ouvir as histórias verdadeiras. "As pessoas que nos deram os depoimentos têm mais de 30 anos, o que em termos de crime significa que têm experiência, que têm algo a acrescentar". Quando se começa muito novo, "és miúdo, pensas que vais estar uns tempos no crime e depois sair, mas é um processo sem volta e só se apercebes disso se sobrevives". Muitos não sobrevivem - vários traficantes que os dois irmãos tinham conhecido, e entrevistado, morreram na operação policial de 2007.

Sair do crime é muito difícil. "Acabam por ter muitas pessoas dependentes deles, têm muitos filhos, querem ajudar o primo, o tio, o avô, sentem-se responsáveis por uma estrutura familiar". Mário tentava colocar-se no lugar deles. "Imagina que tenho a minha mãe e oito irmãos pequenos, vejo os meus irmãos a passar fome todos os dias, não tenho tempo para ir à escola porque tenho que ajudar a minha mãe. Qual é a forma mais fácil de conseguir dinheiro?".

Pedro intervém: "Aquilo é uma firma, como se fosse uma empresa". Mário continua: "Não vais passar para barão da droga em dois minutos. Ao princípio podes ser a pessoa que está ali só sentadinha a guardar. E ganhas para aí uns 300 reais por semana, que é quase o salário mínimo. Vais chegar a casa e os teus irmãos vão estar a comer, a tua mãe vai estar mais feliz. Isto é o que muitos deles pensam. E eu pensava: será que se visse isto todos os dias ia ter força para persistir e continuar a tentar arranjar um trabalho para ganhar x reais por mês e para que os meus irmãos, mesmo que continuassem a ter fome, pelo menos não morressem à fome?"

Polícias ao longe

E os polícias? No filme são figuras agressivas, vistas ao longe, de armas nas mãos. "Todos os policiais são filmados ao longe porque era assim que os víamos. Enquanto ali estivemos o que havia era um cerco, de vez em quando uma operação, e a polícia voltava a sair." Para os moradores era sempre melhor que a polícia estivesse longe. "Acabam por só criar mais ódio", diz Pedro. "As pessoas ficam revoltadas, a polícia chega ali, mata o teu pai, a tua mãe, sem que saibas porquê."
Dentro do Complexo, na altura em que os dois portugueses lá viveram, havia "uma esquadra que parecia uma casa abandonada, com dois polícias dentro". Duas figuras totalmente impotentes. "Não faziam nada, limitavam-se a olhar as motas passar, cheias de traficantes, de um lado para o outro."

Agora, depois de a polícia ter tomado o Complexo, no final de Novembro, as coisas mudaram. Pedro e Mário não estão lá mas mantêm-se em contacto com os amigos, recebem notícias e tentam ajudar, mesmo à distância. Desesperaram quando souberam que durante três dias a Dona Célia não conseguia arranjar comida, e que a família já estava a comer farinha. Mas sentem que há um novo optimismo a instalar-se. "Esta é uma operação que tinha que se feita, que mais cedo ou mais tarde terá que ser feita por todo o Rio de Janeiro".

Agora há polícia dentro da favela, e o ambiente geral é de muito maior optimismo. O Plano de Aceleração do Crescimento já tem cerca de três anos de aplicação e "uma rua que antes tinha três metros [às vezes menos do que isso, como se vê em muitos planos do filme, em que as personagens se esgueiram por entre escombros e lixo amontoado, por onde passeiam ratos] agora tem dez metros, já tem um banco do lado direito, um posto médico do lado esquerdo, um teleférico que permite atravessar a favela sem demorar horas".

Além disso, há trabalho. Os moradores da favela são chamados a trabalhar nas obras e "quem não tinha dinheiro nenhum passa a ter algum, e isso faz uma enorme diferença na auto-estima". O tráfico, esse não vai acabar, mas vai perceber que "tem que funcionar sem controlo de um território, sem ser um estado dentro do Estado".

Quanto a Mário e Pedro, vão continuar a fazer documentários - têm até um plano para, dentro de três a cinco anos, filmar o que mudou no Complexo do Alemão - mas o que querem para já é fazer ficção. Têm projectos para a América Latina, África, Ásia. "Vivemos pelo mundo".
Vão continuar ligados ao Complexo - estão a preparar um livro e têm um projecto com a ONG portuguesa Terra dos Sonhos para apoiar mediadores que trabalhem dentro da favela nas áreas da educação, desporto e artes. Querem continuar a ajudar a Dona Célia e todos os amigos que fizeram desde aquele ano de 2005 em que, como escreve Mário na sua nota de intenções como realizador, pisaram pela primeira vez "o solo do universo paralelo e complexo".

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