A nossa vida no reino do economês

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Quem está realmente a ficar nervoso quando "os mercados estão nervosos"? (Eu estou. Estarei a tornar-me um mercado?)

O ano de 2010 foi oficialmente o do combate à pobreza e à exclusão. Posto que não se vislumbra que haja menos pobres, perguntemo-nos o que se anda a passar. Uma das causas primeiras da pobreza prende-se com aquilo que fazemos à riqueza que, enquanto Estados, geramos. Pois é: lá vamos outra vez parar à economia política. Quem me ajuda? Exponho em poucas palavras o meu problema: não percebo as explicações que nos vão dando, fico como a criança que olha desconfiada para o discurso sisudo do adulto e suspeita que está a ser endrominada.

Não vou aqui detalhar o processo que tem estado a conduzir do Estado social ao neoliberal. O neoliberalismo é uma ideologia clara, que foi teorizada por um grupo de economistas, historiadores e filósofos políticos de que sobressaem Von Hayek e Milton Friedman, celebrada a tal ponto que conduziu ambos ao prémio Nobel nos anos 70, e que chega ao poder político nos anos 80 com Reagan nos EUA e Thatcher na Inglaterra e daí irradia para o mundo. A nova ortodoxia económica chega, portanto, ao mais alto poder e marca a perda de influência do keynesianismo e a ascensão do capitalismo financeiro, em que o mercado, autonomizado e auto-regulado, é indiscutível e o Welfare State um estorvo.

Que efeitos sobre as nossas vidas comuns está a ter esta profunda mutação? Muitos. Saliento aqui um deles, algo que está a acontecer no modo como cada um de nós olha para a sociedade, para o Estado, para o poder político, e que é consequência da difusão insidiosa do estilo neoliberal. Vejamos dois efeitos desta ocultação:

- a naturalização do campo económico-financeiro. A crença de que a economia se rege por uma espécie de automatismos exclusivamente económicos (seria uma esfera autónoma), perdendo de vista que ela é um espaço de intervenção política. Tal crença naturaliza os seus objectos e conceitos: moeda, câmbio, juros, dívida, lucro, PIB, défice, produtividade... E os órgãos internacionais (FMI, G7, G20, Banco Central Europeu, agências de rating...) seriam avaliadores de algo que ocorre nesse mundo natural da economia, tomando decisões com base nas suas leis incontornáveis.

- o economês, ou o poder duma linguagem que escutamos mas não percebemos. Quem está realmente a ficar nervoso quando "os mercados estão nervosos"? (Eu estou. Será que estou a tornar-me um mercado?) Quem compra a dívida pública dos Estados? Para onde vai o fruto desse dinheiro? Que entidades são as agências de rating? E nós no meio - ou melhor, por fora. Ignorantes, peões comandados, bois a olhar para o palácio da nebulosa discursiva que torna aquilo que decide das nossas vidas um poder opaco e não-escrutinável - não democrático, portanto, em pleno coração dos países democráticos.

O resultado prático desta nebulosa é o domínio do poder neoliberal, que aparece como natural neste status quo do economês. A economia, tornada objecto-assim-mesmo, diz-nos inevitável o que se está a passar, só havendo um modo de o resolver: emagrecer o Estado. Transferindo, claro, para o sector privado sobretudo aquilo que representa mercado seguro: saúde, educação, segurança social, transportes, energia. Eis a ficção que o economês erigiu em postulado: o Estado, causa principal do nosso desequilíbrio financeiro. O Estado, que nasceu para perturbar essa entidade intangível e omnipresente que é o mercado - exactamente as características que tinha Deus nas sociedades teocráticas. Também ele, de resto, sempre muito indignado com o comportamento dos homens, acenando com privações e castigos.

O Estado, agora perdido de vista que é serviço, que é causa pública, o Estado é caro por dois motivos: porque é alarve e porque gasta muito com os que não querem trabalhar. Vamos por partes:

- diabolização do Estado: está gordo porque há funcionários em excesso, porque trabalham pouco, porque tem demasiados institutos, porque os gestores ganham de mais. Argumentos ao gosto das massas e que distraem do essencial. No reino do economês comemos a palha das explicações redutoras, que complicam mais do que explicam - como essa de o Estado só ser despesa. E antes, não havia Estado? Não era maior?

- diabolização dos pobres. O Estado estaria a delapidar recursos com os que têm vindo a engrossar o número dos pobres e dos marginalizados. Passa-se ao lado do facto de serem as vítimas primeiras da neoliberalização das economias, assente na desregulação do trabalho, que os converteu em subproletários pobres e em errância. Apontados como os que não querem trabalhar, seriam a "legião do rendimento mínimo". Que preguiça é essa que agora acomete 10% da população, quando há uma dúzia de anos só acometia 6%? Quem anda assim a convencê-los a não fazer nada, a viver em bairros degradados, a ir e vir em fluxos migratórios sem futuro nem esperança, a subsistir de sopas sociais, a ficar sem-abrigo - tudo só para não ter de trabalhar?

Interromper o ciclo da pobreza é denunciar este discurso. E é tomar decisões políticas diferentes das que têm conduzido ao Estado neoliberal. Os ataques especulativos a economias periféricas mostram como o jogo do dinheiro não olha a sentimentalismos. Falo por mim, falo por muitos que como eu servem a res publica: temos de arcar com dois acontecimentos extraordinários. Primeiro, passámos a ser considerados despesa; segundo, pagamos do nosso salário a ganância dum capitalismo que, escorado no economês, nos convenceu de que tem de levar em juros o que produzimos para, mais adiante, nos vir salvar. Querem que adiante já o dinheiro do meu funeral? Professor da Universidade do Porto

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