Longa vida à Wikipédia

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Nuno Ferreira Santos

Quem não ouviu argumentar - ou argumentou - que a Wikipédia não é fiável, apontando esta sua (suposta) característica como um pecado original intransponível? Dez anos após o nascimento da enciclopédia global online, esse discurso começou a mudar.

O grande enciclopedista francês do Século das Luzes, Denis Diderot, escreveu na entrada "Enciclopédia" da sua célebre Encyclopédie que o objectivo da colossal obra que ele e Jean d"Alembert publicaram em 1751 era "recolher todo o saber que se encontra agora disperso à face da Terra, dar a conhecer a sua estrutura geral aos homens entre os quais vivemos e transmiti-lo aos que vierem a seguir".

E a entrada correspondente na Wikipédia (wikipedia.org) - a grande enciclopédia online da era da Internet, que esta semana celebra o seu décimo aniversário - explica que, mais do que como um simples dicionário, "Diderot via a enciclopédia ideal como um índice de ligações". Clicando no link que aparece neste artigo, podemos confirmar a informação: dois cliques e vamos parar ao texto original de Diderot, onde descobrimos uma frase que começa assim: "Através da organização enciclopédica, da universalidade do saber e da frequência das referências, as relações crescem, as ligações partem em todas as direcções." Referências. Relações. Ligações. Mais do que uma proposta, o texto de Diderot parece uma genial premonição. A enciclopédia ideal de que fala o filósofo está a ser construída hoje e chama-se Wikipédia.

Muitos irão objectar que a informação contida na Wikipédia não é suficientemente fidedigna, que não é "100 por cento fiável" e que por isso não é séria e nunca poderia ser equiparada a um trabalho erudito como o das enciclopédias tradicionais (em papel) - e, em particular, com a "rainha" do género, a Encyclopaedia Britannica.

Mas, tal como a enciclopédia de Diderot pretendia ser mais do que um simples dicionário, a Wikipédia quer ser mais do que uma simples enciclopédia (em papel): "A Wikipédia não é uma enciclopédia em papel", lê-se no artigo Wikipedia:What Wikipedia is not. E, no entanto, é algo parecido com o que Diderot, salvaguardando as distâncias (ele não tinha Internet), terá sem dúvida vislumbrado. Explica ainda a mesma entrada da Wikipédia que ela é "uma enciclopédia online e, enquanto meio para atingir um fim, uma comunidade online de pessoas interessadas em construir uma enciclopédia de alta qualidade num espírito de respeito mútuo". Descubra as diferenças!

André Barata, filósofo, investigador da Universidade da Beira Interior, aponta uma: "Enquanto enciclopédia falta-lhe o ponto de vista global que tradicionalmente a deveria enquadrar", disse ao P2 por email. "Com efeito, as enciclopédias tradicionais, desde D"Alembert e Diderot à Britannica, dispunham de um pressuposto comum, de ilustração e sistematicidade do saber. (...) O saber não é, no essencial, um enorme arquipélago de dados, informação e ilhas de conhecimento apenas linkadas, mas não realmente ligadas." Mas a seguir acrescenta: "Em contrapartida [a Wikipédia] é epistemicamente liberal e tolerante, experimental. Está menos a defender um corpo de saber da barbárie do que a gerar espontaneamente um corpo para o saber."

Cérebro fora-de-bordo

É um facto que a Wikipédia que temos não é perfeita, nem muito menos completa, nem muito menos isenta de erros, sejam eles involuntários ou não. Já foi alvo de vandalismo, a qualidade dos seus artigos não é uniforme, a qualidade das suas versões nas diversas línguas também não. Mas os factos também abonam em seu favor: um estudo publicado na revista Nature em 2005 mostrava que os artigos científicos da Wikipédia e da Encyclopaedia Britannica eram comparáveis em termos de rigor. Diga-se de passagem que a Wikipédia não foi construída do nada: a edição de 1911 da Britannica, hoje no domínio público, foi um dos seus pilares iniciais, lê-se na Wikipédia.

De resto, quando ouvimos ou lemos aqueles que usam a Wikipédia e conhecem as suas qualidades e defeitos, ficamos com a nítida impressão de que talvez tenha chegado a altura de admitirmos que é ela mesmo muito boa e que (quase) todos a usamos e precisamos dela. Dos escritores aos filósofos, dos historiadores aos jornalistas, dos estudantes aos professores. Como declarava em 2009 um post num blogue da Wired.com, a Wikipédia tornou-se "o cérebro fora-de-bordo mundial".

A Wikipédia foi formalmente lançada a 15 de Janeiro de 2001 pelos norte-americanos Jimmy Wales (empresário da Web) e Larry Sanger (filósofo), utilizando o conceito e a tecnologia wiki (palavra que em havaiano significa "rápido"), cujo pioneiro foi o informático norte-americano Howard Cunningham. Wales e Sanger tinham começado por lançar, um ano antes, a Nupedia, uma enciclopédia online escrita e editada por especialistas. Mas a lentidão do processo de produção exasperava os seus fundadores.

A 10 de Janeiro, faz hoje dez anos, a Nupedia decidiu lançar o seu wiki, cuja intenção inicial era acrescentar "uma pequena funcionalidade à Nupedia", nas palavras de Sanger, e acelerar o seu crescimento. Mas o recém-nascido, rebaptizado Wikipedia logo a 11 de Janeiro, rapidamente eclipsou o seu progenitor e passou a ser a enciclopédia "que todos podem editar".

Dez anos volvidos, lê-se na actualização de Novembro de 2010 da factsheet da Wikipédia que este é o quinto site mais popular a nível mundial. Está disponível em mais de 270 línguas, tem a participação de mais de 80 mil editores voluntários, a versão em inglês contém 3,4 milhões de artigos e o total das suas edições nas várias línguas soma 17 milhões de entradas. Em Setembro de 2010, teve quase quatrocentos milhões de visitantes únicos. A Wikipedia é gerida, desde 2003, pela Wikimedia Foundation, entidade sem fins lucrativos que vive de donativos e de financiamento público.

Do frívolo ao profundo

A Wikipédia é de facto muito mais do que qualquer enciclopédia em papel. Por uma razão muito simples: nela, todos os temas têm direito de cidade, dos mais nobres, eruditos e especializados aos mais secundários, abstrusos, recônditos. Uma formiguinha venenosa que vive numa ilha do fim do mundo, um cantor pop menor, podem dar origem a uma entrada tão digna como a de uma grande teoria científica. Num delicioso artigo publicado em 2008 na New York Review of Books e no Guardian (neste último, sob o título Como me apaixonei pela Wikipédia), o escritor americano Nicholson Baker fala da sua experiência como "salvador" de textos da Wikipédia em perigo de desaparecer porque um punhado de utilizadores tinham votado que os seus tópicos não eram suficientemente "notáveis". Acrescentando umas citações, umas referências bibliográficas e com alguma edição estilística, Baker conseguiu preservar da foice digital entradas sobre uma obscura empresa têxtil sul-coreana, um desconhecido poeta russo censurado, um telemóvel para pessoas idosas, entre outros. Esse trabalho de preservação, escreve, deu-lhe uma sensação de imenso prazer ("wow, did that feel good").

No século XVIII, Diderot já pensava exactamente nesses termos ao descrever a sua enciclopédia ideal, exortando os autores a não desprezarem nenhum tema, por mais modesto que fosse: "(...) o mais sucinto dos nossos artigos talvez poupe aos nossos descendentes anos de pesquisas e volumes de dissertação; (...) um escrito sobre as nossas modas, que hoje consideraríamos frívolo, será visto, dentro de dois mil anos, como uma obra erudita e profunda sobre os hábitos dos franceses (...)".

Esta ideia da poupança de tempo é muito importante para Paulo Feytor Pinto, professor e presidente da Associação de Professores de Português: "A Wikipédia permite-me esboçar o plano de uma pesquisa mais aprofundada", explicou-nos em conversa telefónica. "Recentemente, usei-a para pesquisar um tema totalmente desconhecido para mim: o provençal. E quando fui à biblioteca confirmar isso tudo, já ia com o meu percurso bem delineado. Consegui fazer numa semana o que, há dez anos, teria demorado seis meses."

Quase todos usam

Das cinco pessoas que responderam às nossas perguntas sobre a Wikipédia, apenas uma, o escritor Rui Zink, disse que não usava. Os outros - para além de André Barata e Paulo Feytor Pinto, foram Joaquim Vieira, ex-provedor do PÚBLICO e presidente do Observatório da Imprensa; Nuno Santos, neurocientista da Universidade do Minho; e Rui Ramos, historiador -, todos recorrem a ela com maior ou menor intensidade. Para confirmar nomes e datas, para ter uma visão de conjunto de um dado tema, para encontrar referências bibliográficas.

Todos usam mais a versão em inglês do que as outras. "Há uma diferença muito grande entre a qualidade média em inglês em relação ao português", salienta Rui Ramos pelo telefone, acrescentando que há lá artigos "excelentes". E embora o problema da validação da informação surja sempre em pano de fundo nas respostas, não parece ser assim tão grave para estas pessoas, cuja profissão gira em boa parte em torno da pesquisa e da validação de informação nos seus respectivos campos.

Pelo contrário, seria muito melhor que fosse usada mais vezes: "Vejo muitos jornalistas a cometerem erros básicos de informação que poderiam ser evitados se tivessem consultado a Wikipédia", diz-nos Joaquim Vieira.

E na escola, o uso da Wikipédia deve ou não ser permitido? "É preciso pô-la no centro da sala de aula para os alunos se aperceberem quando uma informação não é fidedigna", diz Paulo Feytor Pinto. Contudo, Nuno Sousa levanta outra questão neste contexto: a da "ilusão de que se sabe tudo quando se confina a consulta de um tópico exclusivamente à Wikipédia, o que é particularmente perigoso para os mais jovens, na medida que em que os formata neste tipo de estratégia".

Seja como for, a Wikipédia, dizem todos, mudou a nossa maneira de aceder ao conhecimento. Curiosamente, quanto a contribuírem para a Wikipédia, poucas pessoas parecem interessadas, apesar de estarem conscientes das fraquezas da Wikipédia em português. Falta de tempo, mas não só. "Ainda não sou 100 por cento info-incluído", confessa Paulo Feytor Pinto. "Tenho sido um parasita do sistema", diz Joaquim Vieira. "Já pensei em fazê-lo, mas nunca contribuí", responde Rui Ramos, acrescentando que ainda há em Portugal "uma falta de disponibilidade cívica, um desprezo pelo espaço público. Mas as coisas estão a mudar, as pessoas começam a participar."

Segundo o relatório sobre o ano 2010 da Wikipédia, publicado no jornal Wikimedia Signpost, há apenas seis meses a Wikimedia Foundation anunciou um projecto-piloto, em colaboração com várias universidades dos EUA, que envolve a participação dos estudantes, como parte do seu currículo universitário e com a ajuda de "embaixadores da Wikipédia", na melhoria dos conteúdos da Wikipédia. Ainda vamos a tempo.

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