O que nos falta experimentar? Políticos e eleitores exigentes

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RUI GAUDÊNCIO

Como é que se vence uma crise no país mais "desconfiado" e mais "ingovernável" da Europa? Acreditando numa nova geração mais informada e com novos valores. Por Teresa de Sousa

Talvez porque tenha estudado e vividonos Estados Unidos(doutorou-se na Ohio State University), Pedro Magalhães, 40 anos, politólogo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, autor do blogue Margens de Erro, reaja com tamanha indignação à forma como o Estado gere o nosso dinheiro ou como os partidos se dão ao luxo de ignorar a realidade dos factos. Mas, ao fazê-lo, põe o dedo na ferida de um país que vive um divórcio profundo entre as elites políticas e o comum dos cidadãos. Acredita que a mudança já só pode chegar de eleitores mais informados e mais exigentes, que obriguem os partidos de governo a mudar de atitude. A sua esperança radica na quase certeza de que a nova geração que está a sair das universidades já não se deixará enganar.

Esta conversa é fundamentalmente sobre a política. Nacional e europeia. Mas é também sobre os valores da democracia e o seu repositório de legitimidade mundial. Muita crítica e muita esperança.

Como é que alguém da sua geração, a mais preparada de sempre, olha para a nossa crise actual? Com a sensação de que voltamos a falhar no sprint final a nossa meta de país europeu?

Não sei até que ponto sou representativo da minha geração, mas posso dizer qual é a mistura dos meus sentimentos. O facto de ter vivido em outros países e a minha actividade me pôr em contacto permanente com pessoas de outros países ajuda a relativizar e a desdramatizar esta crise. É evidente que é grave. É uma crise antes de mais económica e financeira, mas é também uma crise de identidade, como sugeria na sua pergunta. Mas não somos o único país com problemas neste momento. Sem querer tirar responsabilidades domésticas, que existem, a verdade é que a crise é mais vasta do que isso.

Diria também que não vejo razões suficientes para tanto pessimismo sobre o futuro. Há aspectos do nosso percurso que tendemos muitas vezes a não ver, porque as boas notícias não são notícia ou porque a luta política traz ao de cima os aspectos negativos. Mas a minha geração e, sobretudo, a geração que está agora nos 25 ou 30 dá-me muita esperança sobre o futuro do país. Repare que mais de um terço das pessoas que têm hoje 20 anos está na universidade. Na faixa etária dos 30-34, uma em cada cinco tem um curso superior. Isto é completamente novo na nossa sociedade...

É um corte...

Muito grande. Estas novas gerações estão muitíssimo mais preparadas, têm muitíssimos mais recursos educacionais, têm muito mais informação. Há vários estudos que demonstram que têm uma visão do mundo e valores de maior individualismo, sem dúvida, mas também de maior afirmação, de menos conservadorismo, de maior defesa da liberdade, da autonomia...

Quando olhamos para o país como um todo, somos ainda muito diferentes das sociedades mais avançadas da Europa, incluindo nos valores como o conservadorismo e o fatalismo versus o optimismo e afirmação individual, autonomia. Mas uma das coisas mais curiosas que também podemos verificar é que, quando isolamos a comparação entre os mais jovens, não somos muito diferentes do resto da Europa. Vamos ver cada vez mais nos quadros intermédios e superiores das empresas, nas posições hierárquicas intermédias e superiores das universidades pessoas com uma preparação e uma atitude que é muito mais parecida com aquilo que acontece nos países que gostaríamos de imitar. Isso trará mudanças.

Mas o que esta crise parece que veio revelar de novo é que, quando começamos a acreditar que o país mais desenvolvido está finalmente a sobrepor-se ao país mais atrasado, este volta ao de cima.

Esta realidade está lá sempre, nós é que nos esquecemos que ela existe. Mas não vejo as coisas em termos de uma luta entre duas metades do país, uma subdesenvolvida e outra desenvolvida. Parece-me mais relevante outro tipo de contraposição: entre um determinado tipo de ideias e de valores que é veiculado por alguma opinião publicada e aquilo que as pessoas realmente pensam. Os temas a que dão valor não são os mesmos. Notava isto especialmente quando estava mais ligado às sondagens. Tínhamos muitas expectativas sobre aquilo que os jornais dizem que as pessoas querem, o que preferem, o que acham disto e daquilo, e depois, quando olhávamos para os resultados, verificávamos que não era nada disso. Essa diferença entre os temas e as preocupações que interessam à comunicação social, ao discurso das elites políticas e dos opinion makers, e aquilo que realmente preocupa as pessoas, é aí que vejo uma tensão.

Essa tensão é uma particularidade que nos afecta mais a nós do que às outras sociedades europeias?

Penso que é particularmente forte no caso português. Uma das coisas que mais me intrigam é o desinteresse das elites políticas em relação à informação sobre o país. Os dados económicos, os dados sociais.

Têm um discurso que ignora a realidade?

Constroem um discurso que não parte da realidade, fazem propostas, dizem que vão atingir este e aquele objectivo sem se incomodarem em fornecer uma indicação mensurável de que isso é possível. Lemos programas partidários que têm imensas ideias e que não têm um facto, um dado, uma medição do impacte de uma proposta. E isto não diz respeito apenas aos partidos e às elites políticas. Devia ser também uma responsabilidade do Estado, que tinha obrigação de analisar o impacte das medidas que toma e que não o faz, e uma responsabilidade das universidades.

As universidades melhoraram muito nos últimos anos, é um facto. Recordo-me que, quando cheguei dos Estados Unidos, em 1998, nos primeiros meses pensei que não ia aguentar. Pensava: isto é outro mundo, não tenho acesso a nada. Em 13 anos houve uma mudança absolutamente incrível.

Mas não se vê ainda esse impacte na sociedade...

As universidades têm de afirmar-se mais. Especialmente nas áreas da economia, ciência política, sociologia, precisamos de saber tornar-nos mais relevantes e de mostrarmos que somos capazes de gerar informação que seja susceptível de ser usada para a decisão política sem que isso seja um compromisso da nossa objectividade.

Mas se as elites políticas são indiferentes a isso, como também acabou de dizer...

Em 2009 estive envolvido num projecto em que oferecíamos às pessoas a possibilidade de responder a uma série de perguntas para ajudar a posicioná-las em relação aos programas dos partidos. Li-os todos e é uma experiência absolutamente extraordinária. É possível ler na mesma frase que vamos diminuir os impostos, aumentar os apoios sociais e reduzir o défice sem que isso pareça sequer problemático. Não há dados, estudos, comparações, avaliações de impacte. Nada. Podemos passar uma tarde inteira na Assembleia da República a ouvir um debate sobre uma lei sem nunca ouvir outra coisa que não sejam palpites...

Se ligar a televisão, também se arrisca a só ouvir palpites. Também não vê aquilo que vê nas televisões britânicas ou francesa. É um problema que ultrapassa a classe política.

A comunicação social não procura as pessoas que têm know-how sobre os diferentes assuntos e essas pessoas também não se deixam procurar. Nós temos debates sobre localização de aeroportos ou outra questão complexa sem nunca ouvir um dado objectivo sobre o assunto. O que ouvimos são pessoas que quase nada sabem sobre o que estão a falar a debitar sobre o assunto.

Este jogo tem dois lados, naturalmente. Quem está nas universidades devia comprometer-se um pouco mais com a investigação aplicada, sem ter medo de que isso possa comprometer a sua integridade científica e a sua objectividade. Penso mesmo que quem financia projectos científicos devia levar em conta essa dimensão. Quase diria que a Fundação para a Ciência e Tecnologia, da mesma maneira que pergunta a quem faz projectos nas áreas de engenharia quantas patentes tenciona registar, devia perguntar também para que serve este ou aquele estudo nas ciências sociais. E o Estado, se tem investido tanto dinheiro em pós-graduações, doutoramentos, investigação científica - e tem feito um enorme investimento até em comparação com outros países -, agora devia tentar receber os benefícios desse investimento.

Essa falta de comunicação entre o discurso político e mediático e o saber que se produz cada vez mais nas universidades tem a ver com o facto de não termos think tanks em Portugal que façam essa intermediação?

Essa ausência é parte do problema. Vou dar o caso extremo. Quando um Presidente americano é eleito, ele passa alguns meses a nomear pessoas, mas não passa alguns meses a decidir o que vai fazer. Ele escolhe logo o que vai fazer. Politicamente, há uma série de considerações de oportunidade, de pragmatismo, de necessidade de negociação e também considerações ideológicas. Mas as bases dos vários caminhos possíveis de um programa de governação já existem, estão feitas. Quem as fez? Foi a Brookings Institution, o American Enterprise Institute, etc. São instituições que fazem essa ponte entre os saberes das universidades e a governação.

A questão é saber por que não há cá. Ninguém financia?

Não creio que seja só isso. É, em parte, porque talvez não haja ainda nas universidades onúmero suficiente de pessoas para fazer a investigação fundamental e a investigação aplicada e mais determinada ideologicamente. Mas também nos devemos perguntar se os partidos querem isto. E a percepção que eu tenho é que, muitas vezes, não querem. Talvez sintam que não precisam.

Não precisam disso para ganhar eleições?

Sim. E isso leva-nos ao problema derradeiro: os eleitores. Os eleitores também não são destituídos de responsabilidade.

Não são exigentes?

Não são exigentes. São muito críticos, muito negativos. Portugal é um dos países em que aquela famosa relação entre a situação da economia e o castigo ao governo é das mais fortes. Somos óptimos a castigar. Mas o facto de sermos muito negativos em relação aos governos - os mais críticos da Europa, só comparáveis à Roménia e à Bulgária -, em relação aos partidos, à classe política, à corrupção, não nos torna exigentes.

Repare que não há semana em que não apareça um relatório do Tribunal de Contas que mostra casos de desperdício, de má gestão. E, no entanto, as pessoas parecem imunizadas. Vamos aos jornais ver o que a opinião publicada tem para dizer e o que lemos é se "ele vai dissolver ou não", se "o FMI vier é bom ou mau"... A opinião publicada está presa ao jogo táctico entre os partidos. E, naturalmente, os eleitores, que só através dessa intermediação podiam ser mais exigentes, não o são. Estamos aqui a falar, sobretudo, do funcionamento do Estado.

O Estado também não deveria ser um produtor de pensamento e de fundamentação para as decisões políticas?

O ponto é outro: seja qual for o caminho que o governo queira dar à sociedade, seja qual for o grupo que queira beneficiar ou prejudicar, seja qual for a maneira como queira distribuir recursos, se não conhecer a realidade, se não tiver uma indicação sobre a relação entre a decisão e a consequência, então é indiferente o partido de governo...

Já estamos mais ou menos aí. Quando olhamos para esta crise, o que percebemos é que ela está a transformar-se num crise de confiança em que ninguém acredita em ninguém. Já somos por tradição um país em que as pessoas não confiam umas nas outras.

Algum grau de desconfiança é sempre bom. É normal e salutar que as pessoas desconfiem do poder. Mas aqui essa desconfiança do poder não emana apenas disso. Emana dessa desconfiança entre as pessoas que mencionou. Uma das coisas mais regulares, mais fortes, mais intensas e mais constantes na comparação com outros países é o baixíssimo nível de confiança interpessoal em Portugal.

Se perguntarmos a uma pessoa se tende a confiar nos outros, ou se acha que todo o cuidado é pouco, setenta e tal por cento respondem que todo o cuidado é pouco. Na Suécia é ao contrário. Isto tem efeitos muito negativos. Desde logo para a actividade económica. Quem é que se junta aos outros para formar uma empresa? Para criar uma associação? Quem é que se organiza para defender um interesse, se acha que os outros estão ali para, mais tarde ou mais cedo, se aproveitarem dele? A partir daqui a desconfiança virtuosa em relação aos partidos não tem condições para ser a mesma.

Referia-me à confiança que é preciso para vencer crises como esta. Um inquérito recente mostrava que a confiança dos portugueses no governo, nos partidos, na banca, era mínima em termos europeus.

Essa confiança também é muito afectada por factores conjunturais. Neste caso, da economia. A situação económica afecta a confiança nos partidos, no governo, no Parlamento e nas instituições em geral. O efeito dessa conjuntura é mais forte em Portugal do que na maioria dos países europeus.

Depois, há o terceiro ponto, que é mais político e que é muito complicado. Quando observamos os últimos 20 anos da democracia portuguesa, a impressão que nos fica é: o que é que falta experimentar? Já tivemos governos minoritários, maioritários, de coligação. A única coisa que não tivemos foi uma coligação à esquerda e esse é um dos problemas. Não tanto o facto de nunca ter existido, mas o facto de não poder existir.

Ponho-me no lugar de qualquer cidadão e pergunto-me: o que é que falta experimentar? E só tenho uma resposta: o que falta experimentar é políticos e eleitores mais exigentes.

Vi com alguma simpatia a chegada do Pedro Passos Coelho, porque acho que a alternância é uma coisa boa e o PS já ganhou duas eleições seguidas. Mas, nestes últimos meses, começo a ficar com outra impressão. Por exemplo, ele diz nas entrevistas que está preparado para governar. Ah! sim? Mas como? Para fazer o quê? Li o livro que ele escreveu. São ideias, gosto de algumas e não gosto de outras. Mas são ideias. O debate de ideias é muito importante, mas quem quer governar não pode apresentar só ideias. Até porque nós sabemos por experiência - e os eleitores começam a percebê-lo muito bem - que essas ideias são facilmente descartadas, quando se enfrentam as realidades e os condicionalismos.

Essa é outra razão para a crise de confiança?

Era aí que queria chegar. As excepções são poucas. Acontecem quando observamos, por exemplo, pessoas como Correia de Campos na Saúde ou Maria de Lurdes Rodrigues na Educação, que fizeram a diferença, porque agiram com conhecimento da realidade que tinham de mudar. E que mudaram a realidade. Nalgumas coisas bem, noutras mal, mas com um saldo final muito positivo.

Mas não podemos estar dependentes de algumas pessoas. Deviam ser as instituições. É isso que torna esta crise tão difícil?

É a combinação de várias coisas: um contexto económico internacional muito negativo, um contexto nacional de estagnação, o factor de desconfiança uns nos outros e esta sensação de bloqueamento que resulta da percepção de que os dois principais partidos estão muito mais preocupados em tomar conta do Estado e em vencer as eleições a qualquer preço.

Quem é que os partidos representam? Ninguém sabe. As pessoas não sabem por que é que cada um deles se bate. Não se sentem representadas por eles. Os políticos gerem o ciclo económico para serem reeleitos e ninguém pode ficar surpreendido com isso. Mas ser reeleito para fazer qualquer coisa.

Do outro lado, também não vejo da parte dos eleitores suficiente ultraje. Não nos sentimos ultrajados pela forma como se distribuem cargos, benesses, como há duplicação de funções, como são mal geridos os recursos do Estado. E, inclusivamente, quando alguém fala em mudar isto, começa-se logo a ouvir falar em direitos. Toda a gente parece achar que os direitos dos cidadãos em geral, que deviam ser servidos pelo Estado, não contam e o que o que conta são os direitos das pessoas que estão a ocupar o Estado.

O que está a dizer é que essa incapacidade de reformar o Estado é comum ao centro-esquerda e ao centro-direita?

Enquanto a esquerda se comporta de uma forma cada vez mais imobilista e meramente defensiva, especialmente desde 2009, a direita ideológica comporta-se, hoje, como se tivéssemos chegado ao fim do Estado social: inviável, irreformável, financeira e ideologicamente falido.

Para mim, estes extremos são duas faces da mesma moeda: a abdicação de reformar o Estado. Uns não o querem reformar para defender interesses instalados, outros acham que a única forma de o reformar é acabar com ele, o que certamente beneficiaria também interesses, nalguns casos os mesmos. Por outras palavras, é como se o centro político em Portugal estivesse a esvaziar-se. Só que esse centro não é um lugar vazio: é o lugar do reformismo, que recusa o statu quo, mas também o recuo civilizacional que seria o fim do Estado social. E é com ele que se identifica a esmagadora maioria dos cidadãos. E, no entanto, é como se, mais uma vez, não fossem representados. Preocupa-me mais a esquerda. Enquanto a direita ideológica tem, pelo menos, uma agenda de mudança, a esquerda está a ficar sem agenda de espécie alguma, a não ser defender-se da direita agitando papões.

Como é que se sai desta crise de governabilidade?

É difícil. Temos os dois principais partidos que, num momento de enorme gravidade para o país, em que era preciso formar consensos, tiveram de ser quase puxados pelas orelhas para aprovar o Orçamento e, no dia seguinte, estavam a renegar o seu próprio acordo. Foi um espectáculo lamentável e assustador. Porque mostra que, no próprio momento em que estavam a chegar a consenso, estes partidos só estavam preocupados com as consequências eleitorais das suas decisões.

E isso pode conduzir-nos aonde?

Pode parecer um pouco ingénuo o que vou dizer, mas penso que só nos resta uma hipótese: a mudança tem de vir dos eleitores. Da indignação das pessoas. E também da comunicação social, porque ela é a ponte entre o mundo da política e os eleitores.

Há sinais de alguma mudança?

Na comunicação social talvez não haja. Mas, em contacto com as pessoas, vejo que pode haver alguma mudança. Posso estar enganado, mas insisto que esta nova geração que está a sair das universidades, muito mais informada, não vai aceitar que o poder político os trate como se fossem crianças.

Até agora tem resultado. Digo isso porque não vemos grandes manifestações nas ruas e as que vemos são a favor de interesses instalados.

Acho que isto não tem de passar necessariamente pela rua, pode passar por outras formas de pressão e o que vemos também é que são as pessoas mais instruídas que, muitas vezes, nutrem maiores sentimentos de insatisfação. Se olharmos para as redes sociais, começamos a ver outro tipo de reacção. Vemos disparates, mas vemos também muita informação e muita crítica fundamentada. Se os políticos se aperceberem dessa mudança, terão de mudar também.

Posso estar a ser ingénuo, já lhe disse, mas a mudança tem de vir da sociedade. Da mudança social que traga eleitores mais exigentes, que peçam informação, que não deixem os partidos políticos pensar que podem iludir as pessoas com meia dúzia de ideias vagas nos programas eleitorais ou nos debates televisivos.

Pensávamos que a Europa e o euro eram o nosso seguro de vida. Essa segurança desapareceu e voltamos a sentir-nos entregues a nós próprios. Não sabemos qual será o futuro da Europa, mas sabemos que as regras do jogo vão mudar. Em que medida é que esta alteração de contexto se vai repercutir internamente?

A situação da Europa já não era fácil desde Maastricht. Nessa altura qual era o dilema? Era entre aqueles que achavam que a integração devia prosseguir a variados níveis e não apenas na abertura das fronteiras, no comércio livre e na união monetária, mas também noutros domínios das políticas económicas e sociais, e aqueles que defendiam que se deveria limitar à integração económica. Hoje em dia, o dilema extremou-se. Houve uma espécie de polarização de posições. Os que acreditavam na integração económica já nem na integração monetária acreditam, e o que defendem é, no máximo, uma espécie de mercado único, uma EFTA [European Free Trade Association] reforçada. Essa é a posição de muita gente hoje, inclusivamente em Portugal. E há o outro lado, que também extremou as suas posições no sentido de dizer que isto já só se resolve com uma união política.

Não sei quem tem razão, mas é fácil de diagnosticar que este conflito, que vai acabar por reflectir-se na política partidária, é muito mais polarizado. E ainda por cima complicado pelos interesses nacionais...

Que voltaram a emergir com uma força inesperada...

Eles sempre estiveram lá, nalgumas coisas. Quando olhávamos para os dados dos inquéritos, isso reflectia-se na própria opinião das pessoas. Quando perguntávamos esta coisa tão simples: acha que as políticas sociais devem ser decididas a nível nacional ou europeu, já se via um conflito claro. Os portugueses dizem a nível europeu.

E os nórdicos dizem a nível nacional. Os pontos de partida são opostos.

E outra coisa que se verificava: nos países com mais níveis de corrupção, pior funcionamento da justiça e das instituições de governo, as pessoas queriam mais Europa. Olhavam para o seu próprio país e viam na Europa uma solução para os seus problemas. Os países mais bem governados, com sistemas de justiça mais eficazes, com melhor qualidade da legislação, olhavam para a Europa com muito mais cepticismo.

No caso português, víamos na Europa um horizonte para a solução dos nossos problemas domésticos. Hoje, nem isso temos.

Não vou dizer que é um projecto que fracassou. Mas a Europa, nalguns dos seus possíveis caminhos, fracassou. Há caminhos que já não são viáveis.

A Europa era, apesar de tudo, duas coisas: a garantia de que o nacionalismo não voltaria e a segurança do modelo social europeu. Estas duas certezas estão hoje em crise?

Estão em crise. Mas isto acaba quase sempre na questão de saber quais são os incentivos de políticos e de eleitores. O que vemos a chanceler Merkel fazer não é pensar na Europa. É pensar na saúde dos seus bancos, nos interesses dos seus eleitores, porque é isso que garante a sua sobrevivência política. É isso que acaba por prender os políticos à terra, no sentido de que os prende a uma constelação de interesses e de prioridades que, em muitos casos, parece incompatível com muitas das coisas que se dizia que a Europa devia ser...

Esta crise dividiu a Europa em duas. Há um conjunto de países, com a Alemanha à cabeça, que se estão a sair bem, que têm alternativas mundiais na globalização. E há outros, os do Sul e da periferia, que sofreram duramente e que estão em dificuldade para se adaptar ao mundo que emerge desta crise.Temos de mudar a nossa estratégia europeia?

Se calhar precisamos de um discurso mais realista em relação aos nossos interesses e aos interesses dos nossos parceiros. Se é verdade que a Alemanha tem muitos mercados para exportar, também é verdade que a prosperidade alemã tem sido feita muito à custa das suas exportações para o mercado europeu. Os fundos de coesão não vieram sem moeda de troca, que era ajudar a desenvolver mercados que passaram a comprar os produtos alemães ou daquele grupo de países que anda à volta da economia alemã. Temos de perceber que há potenciais interesses comuns entre os países do Sul que a crise está tornar mais evidentes e que têm necessariamente de se coordenar.

Para sintetizar: a Europa tem sido muito alimentada por ideias, o que não é mau e foi bom durante muito tempo. Essas ideias ajudaram a superar interesses que eram manifestamente nocivos, como o nacionalismo, a militarização, a guerra. Se calhar, agora temos de falar mais em interesses, porque há os interesses dos alemães e há os interesses dos países que estão na nossa situação. Temos de saber falar essa linguagem e juntar-nos àqueles que partilham os nossos interesses.

Hoje, o domínio do Ocidente em termos económicos, culturais e de valores está a ser questionado. Em que medida é que uma mutação desta natureza põe em causa as referências com que vivemos? Passámos os últimos 20 anos a anunciar a vitória da democracia. Onde estamos agora e para onde vamos?

Questão dificílima. Vou responder a partir das coisas que observo, que têm a ver com a forma como as pessoas pensam no regime democrático. Uma das coisas que observámos na sequência da queda do Muro de Berlim foi o domínio total da democracia enquanto regime legítimo. Nos inquéritos que se fazem nos países da Europa de Leste ou da América Latina, que são jovens democracias, a ideia de que a democracia é o único regime legítimo é verdadeiramente esmagadora do ponto de vista da opinião pública. Desse ponto de vista, a democracia parece ter um reservatório de legitimidade muito forte.

A pergunta que se segue é o que é que as pessoas querem dizer com isso. E um dos dados mais interessantes são os resultados que se obtêm em países como a China ou Singapura. Quando se pergunta em Singapura quão satisfeito está com a sua democracia, eles são os mais satisfeitos em toda a Ásia. O pequeno detalhe é que não vivem numa democracia.

O que é que democracia significa? Na China, embora haja algum cuidado com os dados, porque estamos a lidar com um regime em que as pessoas podem ter receio de exprimir a sua opinião, o que notamos é que os chineses querem a democracia, mas entendem-na de uma forma mais paternalista do que os ocidentais. Quando se fala na China em democracia, a primeira palavra que surge é "Rússia": "Vejam o que aconteceu à democracia russa." Predomina uma visão de que a democracia pode ser alguma liberdade, alguma competição, desde que o papel do Partido Comunista não seja colocado em causa.

Não têm a mesma noção de liberdade individual...

Ou de competição partidária que nós temos no Ocidente. Não sei quando a China vai ser uma democracia, mas tudo aquilo que nós sabemos sobre o que é que causa a mudança cultural sugere que, mais tarde ou mais cedo, podemos encontrar na população chinesa aspirações a mais do que aquilo que têm.

Essa é uma das interrogações que esta crise nos colocou. Há meia dúzia de anos, tendíamos a acreditar que uma classe média chinesa cada vez mais vasta acabaria por exigir cada vez mais liberdade. Hoje não temos tanta certeza disso.

Essa relação entre democracia e desenvolvimento é complicada. Aquilo que sabemos é que o desenvolvimento sustém a democracia. Um regime que se torne democrático num país desenvolvido tem mais probabilidade de sobreviver. É mais complicada a questão de saber se leva à democracia. É um dos temas mais discutidos na área em que eu trabalho e é visto como uma crença um bocadinho ingénua. A democracia também pode surgir de factores políticos, embora possa não sobreviver.

Mas o que queria sublinhar é que, se pensarmos a democracia não apenas como regime mas como um conjunto de valores - a aspiração à liberdade, conforto com o conflito de ideias, tolerância, competição política -, verificamos que há muitos sinais na China de um crescente conforto com estas ideias. É interessante verificar que até nas elites do próprio Partido Comunista há uma preocupação muito grande em alimentar experiências que tornem as pessoas mais autónomas. Há muitas eleições na China, embora não tenhamos grande consciência disso. E são eleições livres no sentido em que, não havendo dois partidos, há diferentes candidatos. E dão-se sobretudo no meio rural, porque o PC percebeu que era muito pior para ele tentar gerir conflitos a nível local do que deixar que esses conflitos se resolvessem através de mecanismos que, no fundo, são democráticos.

O que diz, portanto, é que essa aspiração democrática persiste à escala global?

Tenho a noção de que a História não tem um único caminho e que há contingências, vontades políticas, actores que interferem e mudam o caminho das coisas. Mas, dentro desta convicção geral, também tenho outra, segundo a qual há coisas que são universais. Quando as pessoas têm mais dinheiro e mais recursos, quando deixam de ficar preocupadas com a sua sobrevivência, começam a pensar noutras coisas - que querem ter liberdade para falar, para discutir, para transmitir as suas ideias, para viajar... E aquilo que nós vemos é que a China, não sendo uma democracia, está a seguir este caminho.

Mesmo assim, a hegemonia ideológica e política do Ocidente está a ser abertamente posta em causa. Ouviu o que disse o presidente Lula na despedida? Que estava feliz, porque chegava ao fim do seu mandato com os EUA, a Europa e o Japão em crise.

A minha área não são as relações internacionais e o meu ângulo é mais aquele de que falámos, das aspirações das pessoas. Mas é compreensível que, em face do seu crescimento económico, esses países - Brasil, China, Índia e também a Rússia - tentem afirmar-se no plano mundial e falar com voz grossa. Hoje podem fazê-lo, porque há qualquer coisa que os sustenta. E num certo sentido também há aqui uma tentativa de enviar um sinal para dentro, de uma certa... se calhar vingança é uma palavra excessiva. Mas para dizer que as divisões norte-sul estão a ser redefinidas e que "nós já não somos a periferia, somos os novos centros".

Mas o meu ângulo é um bocadinho diferente. É dizer: sim, mas também é verdade que o crescimento desses países e a sua integração na economia mundial expõem as suas novas classes médias aos valores do Ocidente. O Brasil sempre esteve no Ocidente; noutros casos, é esse crescimento que faz com que os jovens e as classes médias fiquem expostos aos valores e às ideias desse mundo que está a ser contestado.

O enfraquecimento do Ocidente pode vir não apenas da afirmação económica e política desses países, mas pelo facto de já não sermos os únicos paladinos desses valores. Aquilo que eles têm de bom passou a ser partilhado por outros.

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