Em defesa do legado de Egas Moniz

O inventor da "lobotomia" reabilitado, numa biografia que explora a fascinante personalidade do único Prémio Nobel português até Saramago

Há décadas que paira uma sombra sobre a obra do único Prémio Nobel português numa área científica: a má fama da "lobotomia". Com esta biografia, João Lobo Antunes, 66 anos, um dos mais conhecidos neurocirurgiões portugueses, trata não só de resgatar a sua reputação como de devolver a Egas Moniz um lugar que por vezes lhe é negado, o de cientista de excelência. "O lugar na História que Egas Moniz procurou com tanta persistência e perícia é seu de pleno direito", argumenta Lobo Antunes. Isto apesar de Moniz ter seguido um percurso bastante heterodoxo, pelo menos se o julgarmos pelos critérios actuais ou se o virmos à luz da imagem moderna de um cientista.

Quem era realmente Egas Moniz? Talvez esta seja uma das melhores sínteses: "Político desiludido, clínico carismático, burguês rico, humanista amador, no fundo, cientista improvável". Mais do que improvável: tardio. Quando iniciou as investigações que levariam ao desenvolvimento da angiografia cerebral, já tinha mais de 50 anos; quando propôs a leucotomia pré-frontal, já tinha dobrado a fronteira dos 60 anos. Até então praticamente não produzira nada a nível científico.

Quase nada na carreira inicial de Egas Moniz parecia dirigi-lo para os feitos científicos da sua vida tardia. Nascido em 1874 numa família abastada de Avanca (Estarreja, distrito de Aveiro), beneficia do apoio de um tio abade para seguir os estudos, primeiro no Colégio de S. Fiel, dos jesuítas, conhecido pelo rigor e pela qualidade, depois na Universidade de Coimbra. Quase sempre bom aluno, ingressa na carreira académica ao mesmo tempo que inicia a prática clínica e se começa a dedicar à política, sendo eleito para o Parlamento nas listas do Partido Progressista de José Luciano de Castro, ainda no tempo da Monarquia. Orador contundente, tornar-se-ia um republicano moderado que, após o 5 de Outubro, alinharia com os que se opunham ao radicalismo de Afonso Costa. Viria assim a ser um dos mais importantes colaboradores de Sidónio Pais, em cujo consulado chegou a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo sido o primeiro chefe da delegação portuguesa à Conferência de Versalhes. O assassinato do Presidente-Rei acabaria contudo por precipitar o seu afastamento da política activa, primeiro desiludido com a violência que marcou os anos finais da I República, depois triste pela falta de liberdade durante o Estado Novo (apesar de muito amigo do Presidente Carmona, detestava Salazar).

O fim da aventura política permitiu-lhe dedicar mais tempo ao consultório (muito procurado e fonte de avultados proventos, que lhe permitiram reunir uma pequena fortuna) e à Universidade. Aí, com a colaboração de um finalista de Medicina e futuro cirurgião, 29 anos mais novo, Pedro Almeida Lima, começa a tentar visualizar os vasos cerebrais. Nessa altura já Egas Moniz contava 51 anos, idade pouco habitual para se lançar a uma investigação com esta ambição - basta recordar que os cientistas que ganharam o Nobel desenvolveram os seus trabalhos mais importantes com uma idade média de 36 anos, como recorda Lobo Antunes. Mesmo assim, começando por realizar testes em cães e, depois, em doentes, Egas e os seus colaboradores desenvolveram a angiografia que, escreve Lobo Antunes, "se manteve viva durante décadas como técnica de diagnóstico quase exclusiva das lesões tumorais, vasculares e traumáticas do sistema nervoso". Gradualmente substituída para alguns diagnósticos pela tomografia axial e pela ressonância magnética (duas técnicas que justificaram a atribuição do Nobel aos seus criadores), a angiografia "desempenha hoje um papel indispensável e previsivelmente perene como técnica de intervenção terapêutica, a única aplicação que Egas não terá previsto, que permite, por exemplo, tratar um aneurisma intracraniano sem cirurgia".

A angiografia teve uma rápida expansão na Europa, ao contrário da leucotomia pré-frontal, que seria pouco praticada no Velho Continente (à excepção do Reino Unido), mas que se tornaria uma terapia muito popular nos Estados Unidos. A intuição que esteve por trás do desenvolvimento desta intervenção foi a de que "desligando" alguns circuitos neuronais era possível tratar certos tipos de doenças neurológicas. Com Egas Moniz, a técnica seguida - a que chamou "psicocirurgia" e que ele mesmo considerara "ousada" ou mesmo "temerária" - consistia em cortar os feixes nervosos que ligavam os dois lóbulos frontais do cérebro. As primeiras cirurgias apontaram para resultados positivos, pelo que a técnica foi rapidamente adoptada em países onde o número de doentes psiquiátricos era muito elevado. Nessa época, é importante recordar, não estavam ainda disponíveis outras terapias menos invasivas ou reversíveis, pelo que acabaram por ocorrer muitas intervenções sem um diagnóstico correcto ou mesmo motivadas por intenções menos nobres, abrindo campo a uma controvérsia que ainda hoje perdura.

João Lobo Antunes faz a defesa da intuição e do trabalho de Egas Moniz seguindo duas linhas de argumentação. A primeira é a da correcção dessa sua intuição. O neurocirurgião nota que assistimos hoje a uma recuperação da psicocirurgia, sendo que "à ablação de áreas de extensão variável e limites imprecisos sucedeu a inibição reversível de circuitos restritos através da estimulação cerebral profunda, que tem como consequência o silenciamento temporário dos neurónios e dos circuitos que integram". Ou seja, passou o tempo da leucotomia, chegou um tempo em que "não há dúvida que a intuição de Egas e o seu destemor abriram um caminho sem retorno na cirurgia funcional do sistema nervoso".

Em segundo lugar, João Lobo Antunes defende que não se pode avaliar Egas pelos critérios da ética médica contemporânea, que não existiam no tempo em que trabalhou, um tempo em que os primeiros neurocirurgiões portugueses registavam taxas de mortalidade de 50 por cento.Isto leva a que o autor considere que a história que se propôs contar "demonstra sem rebuço a modernidade do pensamento de Egas, entendida aquela num sentido não infalivelmente positivo". O que significa que esta biografia, sem ser hagiográfica, é a biografia de alguém que, sentindo-se de alguma forma herdeiro de uma escola médica de que Egas Moniz foi mestre, não omite o seu fascínio por um personagem que, não duvidemos, era mesmo fascinante. Nesta obra revela-se sobretudo o seu percurso médico e científico, se bem que Lobo Antunes dê também atenção à sua carreira política e, mais marginalmente, à sua vida mundana. É-nos reconstituído, com detalhe, todo o processo que leva às suas descobertas científicas, mas, se ficamos a saber que viveu na moradia onde hoje está instalada a Nunciatura Apostólica e que utilizava um faqueiro que pertencera ao Marquês de Pombal, não ficamos a saber por que razão utilizava capachinho, um pormenor que só nos é revelado quando nos aproximamos do leito de morte do nosso prémio Nobel. Mais: se também nos são recordados muitos artigos que escreveu sobre pintura (era um apaixonado da pintura naturalista portuguesa), não chegamos a perceber os motivos das suas inimizades, ou mesmo guerras com outros vultos da medicina portuguesa, como Francisco Gentil ou Pulido Valente, seus eternos críticos.

Em contrapartida, é notável a forma como nos descreve os seus esforços para conseguir o Nobel, mostrando como também nesta frente nada pode ser descurado e não contam as falsas modéstias. Como escreve João Lobo Antunes, Egas acreditava "na superioridade das vontades", sendo que, no seu caso, "quis tudo e quase sempre o conseguiu". O que não é pouco, se é que não é tudo.

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