O maior país africano poderá partir-se em dois

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O Presidente Bashir prometeu respeitar os resultados Reuters

Votação que se inicia no próximo domingo pode ditar nascimento de um novo país, em Julho. O Presidente do Sudão, Al-Bashir, promete respeitar decisão de eleitores do Sul. Fracasso poderia fazer regressar a guerra.

Na praça principal de Juba, a poeirenta capital do Sul do Sudão, há um relógio que conta os dias, horas e minutos que faltam: hoje está-se a uma semana do início do referendo que, todos os sinais o dizem, deverá ditar a divisão em dois do maior país africano. "Por vezes passo por lá para me lembrar", confessou, sem esconder a excitação, Morri Francis, estudante e jornalista de uma rádio católica local, num blogue da agência humanitária Cafod. "Agora sinto que sou muito importante e influente no país. Agora mal posso esperar pela histórica data: 9 de Janeiro de 2011", escreveu, depois de se ter recenseado.

O referendo sobre a autodeterminação do Sul, a realizar entre os próximos dias 9 e 15, é o ponto-chave do acordo que, em 2005, pôs fim a duas décadas de uma guerra que matou pelo menos dois milhões de pessoas. Os sudaneses do Sul, predominantemente cristão e animista, vão decidir se permanecem unidos ao Norte islâmico, ou optam pela secessão e dão forma a um novo Estado com um tamanho semelhante ao da Península Ibérica. Seria o primeiro a nascer em África desde que, em 1993, a Eritreia se separou da Etiópia.

Salva Kiir, Presidente do Sul do Sudão e vice-chefe de Estado, chegou a dizer a enviados do Conselho de Segurança da ONU que, se o Norte procurasse perturbar a votação, o Sul, autónomo desde o acordo de paz, organizaria o seu próprio referendo.

Mas pelo menos os receios de um adiamento parecem afastados. O embaixador português António Monteiro, um dos três membros do painel designado pelo secretário-geral da ONU para acompanhar o processo eleitoral, faz uma avaliação positiva e acredita que não será necessário mudar a data do referendo, um cenário que, se não fosse justificado por razões técnicas, "só iria aumentar a intranquilidade". "O passo mais importante era o registo eleitoral. Não era fácil. Havia dúvidas sobre a colaboração das autoridades. Correu bem. De forma pacífica, com muito poucas objecções. Tivemos poucas reclamações, poucos recursos, que podem ficar esclarecidos até ao início da votação", disse ao PÚBLICO.

Uma das grandes dúvidas tem sido saber se o Presidente sudanês, Omar al-Bashir, acusado de genocídio e crimes contra a humanidade na região do Darfur, estará disposto a prescindir de um quarto do território, onde se concentra 80 por cento da produção petrolífera. Há perto de um ano, afirmou que seria o primeiro a reconhecer uma eventual independência do Sul. E na semana passada proferiu novas palavras de apaziguamento: prometeu "ajudar" a "construir" um país "irmão", "seguro e estável", se for essa a escolha dos mais de três milhões de eleitores. "Agora dizemos aos nossos irmãos do Sudão-Sul: "A bola está do vosso lado e a decisão é vossa. Se escolherem a unidade, sejam bem-vindos, e se escolherem a secessão, bem-vindos sejam"", disse, citado pela AFP.

Secessão é "provável"

Para que o país se divida, e em Julho nasça um novo Estado, a opção independentista deve ter a maioria dos votos, mas terão que ir às urnas pelo menos 60 por cento dos inscritos.

Os observadores prevêem o triunfo da opção secessionista, cenário também já tido como "provável" pelos responsáveis políticos em Cartum. "Todos os esforços para manter a unidade com o Sul fracassaram, a secessão do Sul tornou-se provável", reconheceu à AFP um influente colaborador de Bashir, Nafie Ali Nafie.

"Se estiverem atentos, verão que mais de 80 por cento da população já manifestou a sua preferência", afirmou Anne Itto, vice-secretária-geral dos ex-rebeldes sulistas do SPLM, Movimento Popular de Libertação do Sudão, que controla o Governo autónomo com sede em Juba, subscrevendo a ideia de que "a unidade não se tornou atraente" para os eleitores. Nas rádios locais da região, as canções pró-secessão multiplicam-se.

Muitos habitantes do Sul não só se vêem religiosa e etnicamente diferentes como responsabilizam o poder sediado a norte pelo seu subdesenvolvimento. E ainda que as palavras sejam de paz, o historial de ressentimentos e confrontos que marcou quase todo o tempo decorrido desde a independência do antigo domínio anglo-egípcio, em 1956, alimenta preocupações. "Não vejo nenhuma indicação de que o Norte e o Sul tenham intenção de retomar a guerra", tranquilizou, porém, o secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, que nos últimos dias visitou o país.

O referendo não mexe apenas com os sudaneses. Se o processo corresse mal e a guerra voltasse, seria o regresso de mais um foco de instabilidade a uma zona onde a Somália e a República Democrática do Congo são já problemas sérios. É por isso que os países ocidentais não poupam incentivos ao Governo de Cartum, incluindo o levantamento de sanções e a reintegração em instituições internacionais, como o Banco Mundial e o FMI.

O Presidente norte-americano, Barack Obama, propôs mesmo retirar o Sudão da lista de Estados que apoiam o terrorismo. Também outros países africanos seguem com preocupação o que está a acontecer porque o exemplo sudanês pode estimular separatismos em territórios de fronteiras traçadas a régua e esquadro.

Como previsto em 2005, o NCP, partido de Bashir, e os ex-rebeldes sulistas têm mantido negociações sobre assuntos como o traçado fronteiriço e a partilha de recursos. Um dos nós mais complexos é a discussão sobre a região petrolífera de Abyei, onde não haverá um previsto referendo paralelo sobre a pertença ao Norte ou ao Sul. Mas essa e outras sombras não parecem, por estes dias, diminuir em Juba o entusiasmo pela aproximação do 9 de Janeiro. "Qualquer que seja o resultado, unidade ou separação, para todos nós no Sul do Sudão será um dia de que sempre nos havemos de lembrar como aquele em que finalmente tivemos oportunidade de escolher", escreveu Morri Francis.

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