Os pioneiros ressurgem

Dois pioneiros da música negra subiram ao palco para recriarem a sua música, um produtor vê os seus beats serem postos sob a forma de orquestra

É um objecto estranho, a série "Timeless". Composta por três discos ao vivo, é uma espécie de homenagem a músicos que trabalharam em géneros radicalmente diferentes, mas unidos por um fio comum - não o hip-hop, mas a base onde os homens do hip-hop pilharam, tornando-se seus heróis pessoais. Dito de outra forma: a editora Mochilla organizou três noites em que três dos nomes mais samplados e admirados pelos homens do hip-hop fizeram o que quiseram com a sua música ou viram a mesma alvo de recriações. Esses três homens foram o etíope Mulatu Astatke, a música do falecido J Dilla reescrita para orquestra e o brasileiro Arthur Verocai - escolhas de um ecletismo tal que definem um universo, o dos tolinhos pela música negra que compram a (maravilhosa) revista Waxpoetics. Isto é: estes são músicos que a malta que ama a história do hip-hop aprendeu a respeitar pelo uso que os produtores fizeram do seu trabalho ao samplá-los.

O primeiro a ter carta branca, a 1 de Fevereiro de 2009, foi Mulatu Astatke, etíope que criou o conceito de ethio-jazz - uma espécie de cruzamento de música tradicional etíope com o que por vezes aparentava ser música latina, o swing do jazz e o suor do funk. Uma boa parte do melhor da obra de Astatke pode ser encontrada em "Ethiopiques: vol 4", quarto tomo de uma (inacabável) compilação de música etíope, outra boa parte está no disco que fez a meias com os Heliocentrics, a banda de DJ Shadow.

Aqui é puro festival: Astatke teve à disposição (os seus) vibrafones, sopros, metais, guitarras eléctricas, percussões nativas, tudo o necessário para alcançar aquele balanço digno de uma Giselle Bünchen a procriar. Temas que foram durante décadas obscuros e que entretanto se tornaram (para uns quantos) clássicos, como "Yèkèrmo Sèw" surgem num nível de combustão quase pornográfico. Cada miligrama desta música (nada de originais) parece nascer espontaneamente, como se a dança sempre tivesse existido e esperasse apenas a banda-sonora certa - esta. E no entanto, tal é impossível, porque aquelas estranhas escalas etíopes exigem um demorado trabalho de composição e treino para poderem ser transformadas neste regalo de absoluta vibração. Astatke é um dos grandes génios esquecidos do século XX e ponto final.

Menos sorte teve J Dilla. A 22 de Fevereiro de 2009, Miguel Atwood-Ferguson levou a palco, com a ajuda de uma orquestra de 60 elementos, a música do falecido produtor. Percebe-se a ideia: se muitos dos melhores beats do hip-hop foram feitos samplando a música a que antes chamávamos orgânica (do samba-canção às grandes orquestras), porque não pegar na música que um produtor criou de forma electrónica e imaginar uma viagem a um falso passado de onde a música de Dilla tivesse saído? O problema é este: sabem aqueles separadores da NBA em que os movimentos dos jogadores são desacelerados e acompanhados por música de bailado, assim realçando a beleza clássica de um desporto de combate? O que se passa é que os separadores funcionam porque têm 10 segundos - ninguém pagaria para ver um desses separadores esticado até duas horas habituais de um jogo.

Até "Gobstopper" a ligação à música de Dilla é demasiado ténue, o que não seria problema não fora a orquestra quedar-se por uma oscilação entre a música para bálé e o simples "nhé". A partir daí há uma aproximação reconhecível ao universo do hip-hop e o disco torna-se não entusiasmante mas aprazível.

Com Arthur Verocai, que actuou a 15 de Março de 2009, a música é outra. Verochai foi guitarrista, arranjador, produtor, compositor a pedido, homem para toda a obra durante o pós-bossa (era parceiro do enorme Marcos Valle que ainda hoje o gaba), mas só gravou um disco, tão falhado comercialmente que o homem nunca mais arriscou um disco em nome próprio. Obviamente, a malta do hip-hop à cata do arranjo de cordas perfeito elevou-o a herói, e não sem razão: o disco é aqui tocado na sua completude e é indefinível: temos sambas-canção, proto-bossas, pós-tropicalismo, muito jazz ornado de arranjos psicadélicos soando a David Axelrod, melodias intemporais debruadas a harmonias que Martin Denny não desdenharia, sumptuosíssimas avalanches de cordas que nos deixam ofegantes, todo um mundo de invenção que está para lá da simples canção. Uma última nota: cada disco é acompanhado de notas biográficas, uma entrevista e um DVD - nenhum deles é uma valiosa peça cinematográfica, mas é difícil não ter carinho pelo que surge no ecrã.

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