A relação entre as barriguinhas-de-freira e as nossas

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Beijos-de-freira, do Convento de Santa Clara de Vila do Conde Inês Gonçalves/Doçaria dos Conventos de Portugal/Assírio & Alvim

Se a doçaria conventual portuguesa fosse um doce, a receita seria: junte muito açúcar a muito dinheiro. Acrescente muito tempo e muita vontade de se entreter. Transforme a cozinha e a mesa nos únicos lugares onde o prazer e o luxo são permitidos e encorajados.

A maioria das freiras não ia para os conventos por escolha espiritual. Como diz Alfredo Saramago: "As segundas filhas ricas, algumas herdeiras solteiras, viúvas, adolescentes órfãs mas com fortunas constituíam a população feminina dos conventos. Gente habituada a uma vida rica com os hábitos e costumes de uma classe privilegiada."

Seja: eram meninas queques e tias. Sujeitavam-se, com maior ou menor resignação ou vontade, a vestirem-se e a portarem-se todas da mesma casta maneira. Tirando-lhes a liberdade, o ócio, os namoros, a roupa, os sapatos e os penteados e enchendo-lhes a vida de missas e obrigações, que podiam elas fazer?

Explodir na cozinha. É o único sítio onde podem exprimir-se; onde podem inventar; onde podem deliciar-se.

Nem pensar em fazer sopas ou assados. Tinham empregadas para lhes fazerem as refeições. De resto, os salgados eram coisa de frades barrigudos. Não, as freiras portuguesas só podiam interessar-se pelo que é supérfluo, complexo e descaradamente sensual: os doces.

Foi tal a concentração de inteligências, sexualidades, imaginações e perícias destas nossas irmãs nos doces que inventaram que se tornou uma banalidade dizer que a doçaria conventual portuguesa é a melhor do mundo.

São doces difíceis, retorcidos, com receitas mentirosas e segredos impartilhados, aperfeiçoados com vaidade e teimosia, competindo com elegante violência entre si. Doutra forma, era impossível serem tão deliciosos.

É nos nomes destes doces que as freiras, por assim dizer, levantam um bocado o véu. As receitas podem ser impenetráveis, mas os nomes puxam e chamam por nós.

As raivas

As frustrações das mulheres que foram para freiras à força - e não há força como a ordem social - foram grandes geradoras de raivas de todas as espécies. Desde as raivas violentas às raivinhas.

A relação entre as frustrações e o açúcar é tão estreita como o maior amor. O lugar-comum da mulher que trata um desgosto de amor com chocolate, bolos ou (nos filmes americanos) gelado, é o mais comum e verdadeiro de todos os lugares.

Isto com mulheres livres que podem vingar-se, dedicando-se ao trabalho, aos filhos, aprendendo a dançar o tango, escrevendo romances, saindo à noite, comprando sapatos, fazendo as pazes, arranjando outro.

Imagine-se agora com uma mulher enclausurada. Para sempre. Tem fartura de açúcar, ovos e amêndoas. O que é que faz? Doces. Doces que levam muito tempo a fazer. Doces que pode comer. Doces que pode oferecer ou vender. Doces que dão prazer, que trazem elogios e são trocados por outros doces. Doces que se podem comer à mesa, numa atmosfera católica e portuguesa onde a gula gastronómica é mais uma prova de humanidade do que um pecado mortal. Que é, no máximo, uma marotice.

Pode-se fazer doces, comer doces e, sobretudo, pode-se engordar. Os doces podem ser sumptuosos, podem custar uma fortuna e podem ser tão exuberantes e finos como se quiser. Que bem que as freiras portuguesas aproveitaram esta única liberdade.

Os sonhos

Os nomes da doçaria conventual são espantosos não porque evocam o amor, o namoro, o corpo e o sexo, mas porque, fazendo-o claramente, foram permitidos e adoptados por quem mandava nos conventos.

Há os sonhos, os suspiros e os ais. Há os beijos-de-freira. Há os namorados. Há as barrigas-de-freira, as barriguinhas-de-freira e os pescoços-de-freira.

Há as ternuras, os mimos-do-confessor, as sestas. Há os papos-de-anjo e os toucinhos-do-céu. Há as raivas, os melindres e os mexericos-de-freiras.

Estes nomes são os que passaram. Imaginem-se agora os que não foram autorizados.

Os luxos

Se nos esquecermos, por um momento, que somos portugueses, as palavras "doçaria conventual" não nos deveriam excitar. Imagine-se "doçaria franciscana" ou "pastelaria carmelita".

Pode ser mais difícil um rico entrar para o reino dos céus do que um camelo pelo buraco de uma agulha, mas esse estigma contra a riqueza não se aplica aos bolos. Pelo contrário: na doçaria conventual portuguesa quanto mais rico for um doce, mais divino deverá ser.

Distinguiam-se os bolos ricos dos bolos pobres. Os pobres - biscoitos, broas, raivas - eram para comer nos dias de abstinência. (Rica abstinência, com tanto apetitoso docinho à disposição.)

Os bolos ricos, que se podiam comer nos dias em que se podia comer carne (uma coisa puxa a outra, não é), podiam ser tão ricos e tão caros como se quisesse.

São descarados luxos. Não é só nos ingredientes (dúzias de ovos, quilos de amêndoas e de açúcar) mas no trabalho que dão, na perfeição técnica de que precisam e, sim, na astronómica concentração calórica que alcançam por centímetro cúbico, isto em doces tão irrecusavelmente deliciosos que é impossível não comer de mais.

Dir-se-ia que são o contrário da simplicidade e do sacrifício das freiras. Mas não são: são o resultado. Os doces conventuais são onde se soltam e concentram todos os desejos de liberdade e de prazer - toda a criatividade e toda a revolta - que não podem ser exprimidos e satisfeitos separadamente, de maneiras mais directas e mais fáceis.

Os prazeres

Voltando aos nomes, em vez de tentar ver o que querem ou possam querer dizer, por que é que não nos ficamos por eles?

Comparem-se os nomes da doçaria conventual portuguesa com os da doçaria secular. São, de longe, mais brincalhões, mais imaginativos e mais malandros. Os nomes em si dão prazer. Piscam-nos o olho. Sorrimos quando falamos em barriguinhas-de-freira e papos-de-anjo. Imaginamos freiras gulosas mas endiabradas, querendo tentar-nos com as suas guloseimas, fazendo-nos ceder, obrigando-nos a pecar gulosamente, deixando-nos a consciência pesada de culpas calóricas. Como é que 100 gramas de toucinho-do-céu conseguem transformar-se em mais um quilo de nós?

Esta fantasia é exclusivamente nossa. Chegou a altura de admiti-lo, até para podermos continuar a aproveitar-nos dela. Para podermos continuar a comer o prazer do pecado ao mesmo tempo que o bolo, que é o melhor acompanhamento que pode ter, valha-nos Deus.

P.S. O pouco que sei sobre o assunto fui buscá-lo ao delicioso livro Doçaria dos Conventos de Portugal, escrito por Alfredo Saramago e Manuel Fialho, com fotografias de Inês Gonçalves, publicado pela Assírio & Alvim em 1997

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