"Filha, a mãe está desempregada"

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PAULO PIMENTA

Como se diz a uma criança em idade de brincar com ursos de peluche que o pai foi despedido? E quando essa criança reage a chorar? "Se precisares de dinheiro, partimos o meu mealheiro", disse Vanessa à mãe. Por Natália Faria

A notícia do desemprego atingiu Eduarda com a eficácia de um tiro à queima-roupa. "Desculpe, mas vou ter que a dispensar." Que a crise afugentara a clientela. Que um salão de cabeleireiro de uma cidade pequena como é Vila do Conde não tem como inventar promoções de modo a convencer as clientes a investir em permanentes quando o dinheiro mal chega para o pão. Que mais vale no desemprego com o subsídio em dia do que a trabalhar com salários em atraso. "A minha patroa disse-me em meados de Agosto que só ia trabalhar até ao final do mês e que o que eu tinha a receber me ia ser pago em quatro partes."

Doeu. Mas o pior não foi isso. O pior foi quando esta mulher de 34 anos, separada, teve que se sentar à mesa do jantar com a filha de 12 anos e anunciar o fim do salário ao fim do mês.

"Disse qualquer coisa como: "Temos mais uma desempregada a partir de hoje cá em casa."" À mesa, o avô, pescador que só vai ao mar quando as condições meteorológicas deixam; um tio, desempregado; a avó, idem. A mais depressa a reagir foi a filha, Vanessa Macieira.

"Ela primeiro ficou impávida, a olhar para mim. Mas quando me viu chorar, começou logo: "Ó mãe, não chores, não faz mal. Se precisares de dinheiro, partimos o meu mealheiro. Vais ver que arranjas um emprego melhor.""

Ricardo Carvalho, 36 anos, ex-funcionário da Qimonda, conhece bem o sentimento de inutilidade que começou a corroer Eduarda Silva ao fim de algumas semanas no desemprego. "Não é o desemprego em si que mata... é o sentirmo-nos psicologicamente inúteis. É o não sabermos como vai ser o dia de amanhã e, mesmo assim, termos de fazer um esforço terrível para estarmos em casa disponíveis para brincar com os nossos filhos, com alegria e boa disposição, para que eles não sejam afectados pela situação."

A sua filha tinha acabado de fazer cinco anos quando Ricardo se viu transformado em mais um dos 609,4 mil desempregados do país - números do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) do terceiro trimestre de 2010. "Assinei a rescisão no dia 14 de Novembro, e nesse dia à noite, quando passava com ela de carro junto às instalações da Qimonda, disse-lhe: "Olha, o papá já não trabalha ali." Ela chorou e começou a perguntar "porquê, porquê, porquê?". É que eu tinha-lhe prometido que um dia ela ia passar ali o dia todo comigo, porque a Qimonda tinha um family day, e aquilo, para ela, era um sonho a ir por água abaixo: como se tivesse prometido levá-la à Disneylândia e depois lhe dissesse que, afinal, já não podia ser."

Lição número um...

O psicólogo João Lopes, professor no Departamento de Psicologia da Universidade do Minho, com mestrado em Psicologia do Desenvolvimento e da Educação da Criança, recusa a tentação fácil de encarar estas situações como traumáticas para as crianças. "O que constato na minha prática clínica com miúdos é que, de forma geral, estas coisas só são traumatizantes se a pessoa que as comunica o fizer com ar dramático e traumatizante, dando a ideia de que se está perante uma catástrofe terrível."

Lição número um: "A forma mais razoável de comunicar uma situação de desemprego a um filho sem provocar grande alarme é dizer: "Olha, estamos sem emprego, se calhar vamos ter que mudar algumas coisas cá em casa, esperamos que seja temporário, mas até lá...""

Até lá, a ideia é conseguir transformar a adversidade em pretexto para educar, do género: "Hoje estamos mal, mas amanhã estaremos melhor porque vamos lutar todos por isso, as coisas boas não caem do céu..." Em síntese, "o grau de traumaticidade está na forma como a coisa é comunicada".

No caso de Aníbal Rebelo, jornalista do Rádio Clube até Julho de 2010 - altura em que a estação emissora fechou as portas -, a solução foi explicar ao filho João, de seis anos, que daí em diante o pai passaria a estar mais tempo com ele. "Ele não percebe muito bem este conceito do desemprego, mas estava habituado a ouvir-me na rádio de manhã, quando ia para a escola. Quando deixou de me ouvir, dissemos-lhe que o pai estava à procura de outro local para ir trabalhar e que, enquanto isso não acontecesse, queríamos aproveitar para estar mais tempo com ele."

Sem ares funeralíssimos, portanto. "Fugimos ao lado negativo, nem falámos em dinheiro, aliás. A nossa preocupação foi falar com descontracção." O resultado é que João tem desfrutado da presença do pai e até já lhe pediu que, quando fosse para outro emprego, escolhesse um mais perto da escola. "Gosta de poder estar mais tempo comigo, de podermos andar de bicicleta..."

O sexto sentido dos miúdos

É mais fácil quando o desemprego não se traduz imediatamente em falta de dinheiro em casa. Ricardo Carvalho diz que fez tudo para preservar a filha das consequências da crise doméstica que se seguiu ao desemprego. Porém, "os miúdos apercebem-se destas coisas: parece que têm aquele sexto sentido...".

Seria difícil que não percebessem: as idas dominicais ao Norte-ou-whatever-shopping foram riscadas, a lista de presentes a remeter ao Pai Natal ficou reduzida a um item. "Escolheu uma Barbie, coisa para 60 ou 70 euros, quando, antigamente, reservávamos sempre 125 ou 130 euros para os presentes para ela."

Pior está Eduarda Silva, que também tratou logo de pôr ponto final às idas ao McDonald"s e ao cinema. "Apesar de ter 12 anos, a Vanessa ainda é uma criança e teve que ouvir muitas vezes: "Vanessa, não pode ser, a mãe não tem dinheiro." Hoje, ela tem perfeita noção de que o dinheiro é pouco, aliás, é a primeira a dizer que não precisa."

Mais uma vez, João Lopes desdramatiza. "A vida é uma negociação e é importantíssimo que os miúdos peçam, contestem, tentem. Aos pais compete obviamente dizer não, sem dramas e sem pesos desnecessários na consciência."

Claro que este raciocínio - fácil para as situações em que o que está em negociação são umas calças de ganga ou umas sapatilhas XPTO - perde força quando o dinheiro falta até para os bens essenciais. Eduarda outra vez: "A Vanessa deu um pulo muito grande e precisa de casacos e de botas. Também precisava de uma máquina de calcular daquelas que custam cento e tal euros... Às vezes fico desesperada, porque é muito difícil não termos para dar aos nossos filhos, mas, claro, perante ela, estou sempre de cabeça erguida, consigo disfarçar. A Vanessa até já nem fala muito disso e, mesmo quando se atreve a pedir-me alguma coisa, é a primeira a desistir e a dizer: "Já sei, mãe, que não me podes dar, não faz mal.""

Terá sido essa consciência que terá levado esta criança a ocultar da mãe que precisava de um livro para a disciplina de Português. "Só descobri porque ela começou a levar faltas de material por não ter o livro. Ela não me dizia nada, para não termos de gastar mais dinheiro."

Vanessa não foi umas das cerca de cinco mil crianças entrevistadas no âmbito do estudo Um Olhar sobre a Pobreza - Análise das condições de vida das crianças, coordenado por Amélia Bastos, do Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa. Não foi mas podia ter sido. Até porque se arrisca a fazer parte dos seis por cento de inquiridos que disseram que o jantar costuma ser apenas "sopa e pão" ou, então, "sopa, pão e fruta".

O inquérito foi feito em sete concelhos da Grande Lisboa, nos anos lectivos de 2004/2005 e 2005/2006, ou seja, muito antes de o desemprego ter alastrado a 10,9 por cento da população, o equivalente aos tais 609,4 mil indivíduos contabilizados pelo INE no terceiro trimestre deste ano.

Na altura, 45,8 por cento das crianças inquiridas diziam ter noção de que a família tinha que lidar com dificuldades financeiras. É lícito admitir que, tendo o desemprego aumentado, hoje mais crianças ainda partilhem o mesmo sentimento.

Sem grande surpresas, os autores do estudo constataram que as dificuldades eram mais sentidas pelas crianças "em agregados familiares em que o pai e ou a mãe têm um menor grau de escolaridade e profissões menos qualificadas". Tal percepção decorre de carências efectivas mas, "fundamentalmente, do discurso corrente na família", eventualmente mais negativo.

Já não vai ser cabeleireira

Na prática, nem sempre é fácil. "Passamos todos os dias na minha antiga empresa e todos os dias a minha filha me faz a pergunta: "Papá, quando é que vais voltar a trabalhar?"" Às vezes, Ricardo consegue engolir a raiva, às vezes não. "Eu tive que renascer e adaptar-me a uma realidade completamente diferente. Era uma pessoa sem tempo para nada e, de repente, ficou um vazio enorme. É como se tivesse estado preso na Casa dos Segredos e, de repente, fosse posto na rua em liberdade", justifica Ricardo Carvalho.

O estudo coordenado por Amélia Bastos lembra que "os recursos económicos do agregado se reflectem directamente nas condições materiais de vida das crianças no curto prazo e condicionam as suas perspectivas de vida no médio prazo". No caso de Eduarda, o que mais a assusta é deixar de poder pagar o centro de estudos para colmatar as dificuldades de aprendizagem que Vanessa revela na escola. "Só para aí são 80 euros, mais 150 em gasolina só para ir buscá-la e levá-la à escola. Com 419 euros de subsídio é difícil..."

Mas o pior, para Eduarda, seria que Vanessa crescesse na convicção de que não é preciso trabalhar. "É um medo que tenho, porque a Vanessa está a crescer numa família de desempregados, onde, apesar de tudo, a comida aparece. Por isso é que, quando ela me pede alguma coisa, faço sempre questão de lhe dizer que estou desempregada para ela ter a noção de que quem não trabalha não tem dinheiro."

Um sonho Vanessa já deixou pelo caminho. "Queria ser cabeleireira como eu, mas agora viu o que me aconteceu e deixou de falar nisso."

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