A arte e os artistas perante a crise do regime

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Os artistas responderam individualmente aos reptos do presente, longe da assistência dos museus. Na Culturgest, Asier Mendizabal mostrou com "and/or" um dos momentos mais fascinantes de 2010: o basco revisitou as vanguardas históricas, o cinema político, o punk, o marxismo. Exposição do ano, quando a crise chegou às políticas da arte

Foi um ano morno, sem terríveis polémicas, novelas ou blockbusters. O circuito galerístico resistiu à crise, os museus não interromperam as suas programações e os artistas continuaram a trabalhar e a expor as suas obras. Enfim, a arte continuou a ser, como escreve Frederico Ferrari no livro que introduz "Às Artes Cidadãos", no Museu de Serralves, "uma longa reflexão sobre o sentido de criar imagens e sobre o mundo que a imagem cria". E, por isso, um sujeito autónomo, indiferente a palavras ou a conjuntos de palavras como dívida pública, precariedade laboral, FMI ou Angela Merkel.

Quem fizer um balanço das exposições pode pensar o contrário. Em 2010, a arte e a política juntaram-se em mais do que uma vez nas salas dos museus. O Museu Colecção Berardo foi o primeiro a acolher a reunião com "Tudo o que é sólido dissolve-se no ar", colectiva comissariada por Miguel Amado que pretendia mostrar a realidade social na arte e a crítica do real com obras da colecção do museu e de várias galerias nacionais. A lista de artistas era heterogénea (de Rigo 23 a João Louro, de Aleksander Rodchenko a Ivan Grubanov) e muito fincada na produção de arte contemporânea.

"POVOpeople", na Fundação EDP, estendeu-se a outros territórios, interrogando-se sobre o conceito de povo, através de uma reflexão a cargo de quatro comissários (João Pinharanda comissariou a parte artística da exposição). O tema central, a representação do povo na arte e na política, motivou a coexistência no mesmo espaço de obras de Paula Rego ou Vieira da Silva, depoimentos de João Carlos Espada ou Jorge Sampaio, e de uma instalação de Diana Andringa, Bruno Morais Cabral e João Dias, realizada a partir de arquivos da RTP e da Cinemateca. Uma mostra multidisciplinar para atrair vários públicos. Menos transversal, sem deixar de abraçar outras áreas (a cerâmica ou a ilustração), "Res Publica 1910 - 2010", com curadoria de Helena de Freitas e Leonor Nazaré, na Fundação Gulbenkian, confrontou o tempo da primeira República e com o da actualidade, através de obras de mais de 60 artistas, com predomínio dos nacionais. De novo, na condição de objecto do trabalho de curadoria estavam os aspectos sociais e políticos.

Serralves juntar-se-ia, na recta final de 2010, a esta celebração sem citar Marx (como Miguel Amado no Museu Berardo), mas inspirando-se no refrão do "Chant de guerre pour l´arm du Rhin" (também conhecida como "A Marselhesa"): "Às Artes, Cidadãos!" (no original, "Aux armes, citoyens"). O objectivo? Pensar a cidadania com uma ideia transversal à arte, à cultura e ao mundo. Para tal, os comissários João Fernandes, director do museu, e "scar Faria, crítico e comissário, seleccionaram um conjunto de trabalhos de artistas nascidos depois de 1961 e alargaram o campo de intervenção da colectiva a outros lugares (a cidade, por exemplo). Deste grupo de exposições, é a mais ambiciosa e bem sucedida (inaugurou a 20 de Novembro e termina em Março), principalmente pela constelação de ideias, imagens e acções que o seu corpo oferece sobre o político (ideologia, arquivo, activismo, iconoclastia).

O político e a história

Poder-se-ia pensar que de alguma forma, as instituições museológicas de arte contemporânea, em Portugal, reagiam ao estado do mundo. Aos fins anunciados (do estado social, da soberania política das nações), às transformações que, do alto da sua inevitabilidade, vão caindo sobre o trabalho, a comunicação, o corpo. Nem por isso, nada disso. As razões são prosaicas, comezinhas e descobrem-se no calendário. O Museu Serralves, a Fundação Gulbenkian e a Fundação EDP (com o Museu Berardo a antecipar a data) limitaram-se a participar nas Comemorações dos 100 anos da República. Enfim, integraram a programação oficial de uma efeméride, enquanto exposições do regime, cedendo a uma tematização que, por sua vez, não resistia a ofuscar o olhar sobre as possibilidades "políticas" da intervenção artística

Revelou-se notória, no entanto, uma reacção epidérmica, concreta e (podemos acrescentar) sincera dos artistas ao "político", à história como forma de ganhar e imaginar o futuro, ao real, sem o peso da datação, dos constrangimentos das comemorações e das cerimónias oficiais. Dito de outro forma, os artistas responderam individualmente aos reptos do presente, longe da assistência dos museus. Na Culturgest, em Lisboa, Azier Mendizabal mostrou com "and/or" um dos momentos mais inteligentes e fascinantes de 2010. Recorrendo a materiais básicos, rudes (madeira, ferro, papel, plástico, betão), a cartazes, bandeiras e slogans, ao filme e à fotografia, à escultura, o basco propôs-se revisitar criticamente as vanguardas históricas, o cinema político, o punk e o marxismo. Sem tentação panfletária: antes efectuando uma crítica do signo enquanto símbolo e, em particular, enquanto forma de identidade de colectivos políticos ou culturais. Várias narrativas e histórias serviram a investigação de Mendizabal: o movimento hardcore-punk e o uso que este fazia de uma linguagem codificada para controlar a distribuição e produção da música, a partilha de formas de design pelas vanguardas e as subculturas juvenis, a construção de um monumento público em homenagem ao socialismo na cidade de Bilbau.

Fernando Brito, no Espaço Chiado, com "Ich bin ein Baixinher" (três peças de cariz escultórico) demoliu com humor e inteligência certas narrativas da modernidade (da arte à sociedade, passando pela arquitectura). E dividida entre o Solar de S. Roque e o Centro de Memória, em Vila do Conde, "Montage" permitiu um encontro inédito e fecundo com a obra de Filipa César; encontro esse enriquecido pelo cinema, a memória, a história social e política, arquitectura e, por fim, a consciência do espectador diante das imagens em movimento. Outras exposições, ainda que com intenções e caminhos distintos, também espelharam a presença do político e da história: "O Inverno do Nosso Descontentamento", de André Romão, e "Show Titles (audio)", de Stefan Brüggeman, na Kunsthalle Lissabon, "Contra o Muro" de Marlene Dumas no Museu de Serralves ou "Les Limites du Désert" de João Tabarra, na Graça Brandão.

O artista do ano

Curiosamente, aquele que foi o artista de 2010 não figurou em nenhumas das exposições acima referidas. Falamos de Alexandre Estrela, que prosseguiu a sua fascinante investigação em torno da experiência perceptiva e da tridimensionalidade da imagem com três extraordinárias individuais: "Motion Seekness", na Culturgest do Porto, "A Viagem ao Meio", na Galeria Zé dos Bois em Lisboa e "Uma Ilha no Tecto do Mundo", na Galeria Marz, em Lisboa. Já na pintura, destacaram-se dois nomes: Jorge Queiroz ("Donnerstag e outros desenhos", Chiado 8, Lisboa) e João Jacinto ("Tendas no Deserto, Fundação Carmona e Costa, Lisboa, e "Pele Atrasada", Galeria Fernando Santos, Porto).

À margem do contexto institucional e comercial, três espaços, prosseguiram teimosamente os seus projectos, animando o circuito: no Porto, a A Certain Lack of Coherence; em Lisboa, The Barber Shop, de Margarida Mendes (interrompido a meio do ano) e a Kunsthalle Lissabon que, para além de vigorosa programação feita de artistas nacionais e internacionais, descentrou a sua actividade, organizando no Convento de Cristo, em Tomar, "Constructing History: the future life of the past", exposição que introduziu ao público português obras de Matthew Buckingham e do The Otolith Group. E por falar em periferias ou lugares distantes do centro, lembramos os trabalhos de David Santos no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, de Nuno Faria em várias cidades algarvias (com o programa de exposições "Arquipélago"), da equipa da solar Solar - Galeria de Arte Cinemática, em Vila do Conde. Todos, em latitudes diferentes, alagaram e aprofundaram a realidade da arte contemporânea portuguesa.

Um artista em especial colaborou nessa expansão: Gabriel Abrantes. Venceu, com "History of a Mutual Respect", o Leopardo de Ouro, no Festival de Locarno, para a melhor curta-metragem, teve retrospectiva no Centro Cultural de Guimarães e vai alcançado um reconhecimento que atravessa, sem pudor, as fronteiras do cinema e da arte. Não é todos os dias que um nome português figura nos balanços da Artforum e da Sight and Sound. Será isto o princípio de uma internacionalização? Teria razão uma certa comissária francesa quando disse numa entrevista que o cinema português era mais estimulante que a arte?

Veneza desta vez não trouxe guião novelesco. A adopção pela Direcção-Geral das Artes do modelo de nomeação do comissário (Sérgio Mah) e a escolha deste para representar Portugal na Bienal Internacional (Francisco Tropa) foi recebida com alívio e num ambiente de relativo consenso. Um boa notícia num oceano de outras menos boas e que deixam em suspenso o futuro: os cortes anunciados no apoio às artes e a suspensão da participação do Ministério da Cultura para aquisições de obras de arte para a colecção de Serralves. A crise chegou às relações entre a arte e a política, em tempo real. E às políticas da própria arte.

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