Memórias de Rómulo

Foto
No fim do manuscrito, Rómulo de Carvalho deixou um espaço em branco para a data da sua morte, que a mulher mais tarde preencheu. Nascera em 1906 em Lisboa, na Graça, onde nesta foto dança com a irmã Graciete (par da esquerda) enquanto a mãe Rosinha toca piano in

Tudo o que fez na vida "foi por amor", diz o filho. Mas nas Memórias agora publicadas, e que escreveu sem que ninguém soubesse, confessa um profundo desamor pela vida. "Estranho", diz a mulher, numa pessoa tão dedicada à vida, às pessoas e ao trabalho. Por Ana Dias Cordeiro

No princípio, a poesia foi, para Rómulo de Carvalho, a expressão íntima de uma inadaptação à vida, um solitário desabafo. Tinha 30 anos, passava para o papel o que sentia para depois destruir o que escrevia. Só maistarde viria a publicar os primeiros poemas que reuniu em seis volumes, com um pseudónimo.

Assim nasceu em 1956 António Gedeão, 50 anos depois de nascer, em Lisboa,o professor, o pedagogo, o autor de manuais escolares, o historiador, o investigador e o físico que deu vida ao poeta e depois declarou a sua morte, em 1967, muito antes de ele próprio se apagar em Fevereiro de 1997.

"Numa noite quente de Verão (...) António Gedeão morreu, olhando o chão, sem uma palavra. (...) Envolvi-o nos olhos, aconcheguei-o e sepultei-o no esconderijo da memória. Adeus, António. Adeus. Para sempre?"

Não seria para sempre. Em 1984 e 1990, juntaria, não sem ironia, Poemas Póstumos e Novos Poemas Póstumos à lista de poesia publicada em quatro livros: Movimento Perpétuo (1956), Teatro do Mundo (1958), Máquina do Fogo (1961) e Linhas de Força (1967). Pelo meio, publicou a peça de teatro RTX 78/24.

Se, no início, a poesia, que escrevia em jovem e rasgava, era reflexo do estado de alma de um ser "sem vocação para viver", o livro inédito de Memórias - que começou a escrever em 1985, com 79 anos de idade, e é hoje lançado pela Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa - revela, em toda a sua pujança, esse desamor pela vida, desconhecido até de familiares.

"Entre o viver e o morrer" era o morrer que preferia, escreve Rómulo de Carvalho, que se diz dono de uma "inadaptação (...) profundamente interior" embora "sem reflexos externos", porque não era notada pelos outros.

A propósito da passagem pela vida, fala da "amarga experiência de existir" e da "imensa riqueza negativa com que a humanidade se arma". "O mundo é repugnante e a vida não tem sentido", escreve em Adeus, a fechar as Memórias em 5 de Fevereiro de 1997.

O filho de Rómulo de Carvalho, Frederico Carvalho, 74 anos, que coordenou o livro e é autor do índice remissivo, diz que "só agora se conhece" esse lado do pai, pelo menos na forma grave em que é expresso. "Essas passagens foram, para mim, uma surpresa. Porque são ditas de uma forma quase trágica", afirmou numa entrevista ao P2.

Chave da personalidade

O livro de mais de 500 páginas junta a história de uma vida a um retrato da sociedade e do país no século XX, um testemunho, por vezes irónico, de um observador atento e crítico, numa vida que começa ainda na Monarquia, atravessa a I República, depois a ditadura, assiste à revolução do 25 de Abril, terminando num país em democracia.

"A visão que tinha da vida e do mundo já estava reflectida na sua poesia", diz Frederico Carvalho. Agora, nas Memórias, "estão os sinais, as raízes, daquilo que ele escreve nos poemas". Quem conhece a poesia, reconhecerá no livro a essência dessa visão do mundo, desta vez, em prosa. E quem o conheceu no seu percurso multifacetado de professor, escritor e investigador "encontrará aqui a chave da sua personalidade, a chave do homem" que foi Rómulo de Carvalho, considera o filho.

Escritas entre 1985 e 1997, estas Memórias foram encontradas pela segunda mulher, Natália Nunes de Carvalho, numa estante da casa da Rua Sampaio Bruno, onde viviam em Lisboa, muitos meses depois da morte do autor, em 19 de Fevereiro de 1997. Duas semanas antes, parara de escrever.

No fim das mais de 1300 folhas escritas dos dois lados, Rómulo de Carvalho deixou um espaço em branco para mais tarde ser escrita a data da sua morte. Com problemas de saúde vários nos últimos tempos, ele sabia que ia morrer, diz Natália Nunes, companheira de quase 55 anos de casamento e mãe da filha mais nova de Rómulo de Carvalho. À data da morte, que preencheu à mão, Natália Nunes juntou uma despedida em forma de carta de amor.

Embora sendo o romance de uma vida, este livro "tem interesse cultural para o país", diz ao P2. Contém uma crítica sociopolítica velada e passa em revista a evolução do ensino em Portugal.

"No domínio pedagógico conta a vida de professor e as dificuldades que encontrou", refere Natália Nunes, e isso acrescenta a História do Ensino em Portugal, que Rómulo de Carvalho publicou em 1986 e se tornou numa obra de referência no estudo do sistema educativo português. Foram também obras de referência, entre outras, O Texto Poético como Documento Social e Origens de Portugal - História contada a uma criança.

Entusiasmo de aprender

Escolheu a profissão de professor para ver nos olhos dos jovens o entusiasmo e a surpresa de aprenderem coisas novas, conta o filho Frederico Carvalho. E tudo o que fez "foi por amor", sintetiza.

Além de professor, foi um dos directores da Gazeta de Física, da Sociedade Portuguesa de Física, e co-director da revista Palestra do Liceu Pedro Nunes, além de académico da Academia das Ciências de Lisboa.

Publicou livros sobre História da Ciência e de divulgação científica, nos quais tentava responder às perguntas mais simples para dar a perceber o mundo de forma concreta e acessível a todos.

Através da escrita e da investigação, conciliou os dois mundos que dizia serem tidos por quase todos como distintos e distantes - o da Ciência e o das Letras. Pertenceu a um século, ele próprio o notou, marcado pelo progresso da ciência. E foi reconhecido por vários quadrantes da sociedade, sem de nenhum deles fazer parte de forma exclusiva.

No Poema para Galileo, musicado por Manuel Freire - como o foram Lágrima de Preta e Pedra Filosofal -, põe em evidência o obscurantismo da Igreja, ao mesmo tempo que com Arma Secreta, também de Gedeão, inspirou religiosos sobre a convicção de que só o amor pode salvar os homens.

Era agnóstico: não negava a existência de Deus, mas dizia não ter elementos para acreditar que algum deus existisse. Não era crente mas respeitava as crenças de todos. E sobre política, de Gedeão (e dele próprio) dizia não ser de esquerda nem de direita, "embora muito aprecie os fundamentos doutrinários do comunismo".

Apreciava os fundamentos "mas não a prática" do comunismo, salienta a mulher. Recebeu um convite para se juntar ao Partido Comunista, mas recusou. "Ele não era capaz de se alistar em nenhum partido, em nenhuma religião ou organização secreta. Era extremamente independente, pensava por si", descreve.

À independência de espírito, "que o levava a observar o mundo com realismo", Frederico Carvalho acrescenta a "inteligência das coisas" e a sua consciência de "se sentir parte do universo e integrado na natureza" como outras características do pai, também subjacentes nestas Memórias.

Natália Nunes conhecia-lhe o confessado "desagrado" pela vida, "estranho" para uma pessoa que se agarrava tanto a ela através de uma dedicação ao trabalho e às pessoas. Porém, reconhece que nas Memórias esse sentimento é declarado como nunca antes o tinha sido. "Ele era uma pessoa triste. Acho que o foi desde novo. Dizia que era um desadaptado."

Havia o outro lado: de pessoa afável e atenta à família, capaz de se dedicar ao outro, infatigável trabalhador, de espírito versátil e independente, que valorizava o passado, e punha o perfeccionismo ao serviço de tudo o que fazia - o que lhe valeu a alcunha entre colegas e alunos de O Príncipe Perfeito, lembra o filho.

Nestas Memórias, reflecte sobre os tempos em mudança e projecta essa reflexão, numa adivinha constante de como serão a vida e o mundo na época dos tetranetos - os filhos dos netos dos actuais cinco netos.

Logo na introdução, Rómulo de Carvalho explica que vai escrever as Memórias para as dedicar aos seus "queridos tetranetos", que, ao mesmo tempo, simbolizam pessoas que só o poderiam ler num futuro muito longínquo. Esse é, para Frederico Carvalho, o sinal de um desejo, embora nunca manifestado, do pai de ter as Memórias publicadas, sim, mas depois da sua morte.

Rómulo de Carvalho - Memórias

Fundação Calouste Gulbenkian 45 euros (desconto de 10% para professores e estudantes) 557 páginas

Sugerir correcção