Da Bolívia, com amor

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Poucos dias depois de Salazar ter caído da cadeira, a família Patiño fazia "a festa das festas" com 1500 convidados de todo o mundo Colecção particular da duquesa de cadaval

A vida de Antenor Patiño dava um filme e parte dele foi "rodado" no Estoril, onde organizou "a festa das festas" que, em 1968, pôs Portugal no roteiro do jet-set internacional. Uma parcela da propriedade onde tudo aconteceu está agora à venda. Por Ana Brito

Estava a ser um começo de década atribulado para o multimilionário boliviano Antenor Patiño. A revolução de 1952 nacionalizou todos os bens da família na Bolívia. A relação com a ex-mulher, de quem tentava há anos e sem sucesso divorciar-se, continuava a ferro e fogo. E a filha mais nova fugiu e andou a monte na Escócia para poder casar-se, contra a vontade do pai, com o herdeiro judeu dos hotéis Savoy.

Foi no meio de tamanha agitação que Antenor Patiño conheceu o Estoril. No início dos anos 50, a região ainda era porto de abrigo de nobres e aristocratas europeus, exílio dourado daqueles a quem as convulsões políticas e a guerra tinham afastado dos seus países. Manuelita de Rivera y Digeon, marquesa de Castéja, convidou a irmã, Béatrice, e o cunhado, Antenor, para passar uma temporada na quinta de Manique, que ela e o marido haviam transformado em residência de Verão.

E foi amor à primeira vista. Patiño, homem com muitos interesses no imobiliário, pôs-se à procura do sítio ideal para construir a casa de Verão da família e encontrou-o em Alcoitão, onde foi comprando parcelas de terreno até formar uma quinta com cerca de 50 hectares.

No sítio onde a vista era "a mais espectacular", mandou construir um palácio inspirado na arquitectura portuguesa do século XVIII. Cinco mil metros quadrados de área coberta e muitos mais de jardins imensos, construídos em três planos distintos, mais piscina, sala de cinema, salão de bowling, discoteca e até uma réplica em miniatura da biblioteca joanina da Universidade de Coimbra. "Eles partiram da ideia de uma casa normal, mas depois foi sempre aumentando", recorda Claudine de Cadaval, que manteve com a família Patiño uma amizade de 40 anos.

É uma parcela desta propriedade, com uma área de dois hectares, que agora se encontra à venda por dez milhões de euros. E em breve o último marco desses tempos, em que as festas Patiño em Portugal eram notícia, pode mudar de mãos.

O Rolls-Royce de Antenor

Antenor Patiño "era um número, um homem que adorava rir e fazer rir", garante a viúva de D. Jaime Álvares Pereira de Melo, 10.º duque de Cadaval. O boliviano falava "com a maior abertura das origens humildes da família" em Cochabamba (região montanhosa da Bolívia) e dos tempos em que "viviam numa cabana com chão de terra", lembra.

Todos os anos, os Patiño, que tinham casas em cidades como Paris, Londres e Nova Iorque (além do México, onde o magnata chegou a viver e criou o empreendimento turístico de luxo Las Hadas, em Manzarillo), passavam os meses de Verão em Portugal. "Estas pessoas eram apaixonadas pelo nosso país, sentiam-se em casa", e quando vinham amigos de fora, "muitos mexicanos e libaneses", e visitantes ilustres, como os duques de Windsor ou o industrial italiano Gianni Agnelli, dono da Fiat (que chegou a ponderar comprar a casa de Alcoitão quando Béatrice Patiño quis colocá-la à venda, depois da morte do marido), não perdiam a oportunidade de levá-los num tour por alguns dos seus "sítios preferidos, como Coimbra, Óbidos e Porto".

"Os pilares" das amizades lusas eram o decorador Duarte Pinto Coelho, o pintor Pedro Leitão e Mary Espírito Santo. E, claro, os duques de Cadaval. "Quando eles cá estavam no Verão, íamos lá almoçar três ou quatro vezes por semana. Eles adoravam receber, a casa estava sempre cheia", recorda a duquesa.

Eugénio Gomes, hoje mestre alfaiate na histórica casa lisboeta Rosa & Teixeira, ainda se lembra de quando "a [Avenida do] Duque de Loulé parava para ver o Rolls-Royce preto" de Antenor Patiño. Era na esquina desta com a Rua da Sociedade Farmacêutica que, no primeiro andar, funcionava a Alfaiataria José Luís.

A "festa das festas"

Eugénio Gomes, que, à época (início da década de 70), era ajudante do mestre Zé Luís, recorda as "três ou quatro vezes" em que ajudou nas provas de Antenor Patiño, pessoa de trato fácil, a quem fizeram "fatos normais e algumas túnicas de seda para usar por cima da roupa e andar mais à vontade em casa para receber os amigos".

Já Béatrice e Antenor Patiño passavam temporadas em Portugal havia anos quando decidiram dar "a festa das festas", um evento majestoso para mais de 1500 convidados da política, indústria, alta finança, cinema, música, moda e aristocracia mundiais.

A data ficou marcada para 6 de Setembro de 1968 e o assunto rapidamente se tornou notícia na imprensa internacional. O interesse dos media aguçou-se quando se soube que o casal Conceição e Pierre Schlumberger decidiu aproveitar a ocasião do baile dos Patiño para oferecer uma festa na sua Quinta do Vinagre, em Colares. As "festas gémeas", como lhe chamou nesse Verão a revista Times, num artigo intitulado See you in Portugal ("Vemo-nos em Portugal"), encheram de caras mundialmente famosas o Ritz e o Tivoli de Lisboa e o Hotel Palácio do Estoril.

Naqueles primeiros dias de Setembro de 1968, os ecos distantes das mortes de militares no Ultramar não eram senão pequenos apontamentos de jornal e os preparativos para os bailes milionários de Colares e Alcoitão partilhavam as páginas com notícias da guerra e da fome no Biafra, do banho de sangue da invasão soviética de Praga e da devastação causada pelo terramoto de 31 Agosto no Nordeste do Irão.

Da agitação no aeroporto da Portela com a chegada dos visitantes ilustres (em aviões de carreira, como Gina Lollobrigida ou Audrey Hepburn, ou em jactos particulares, como Henry Ford, os Rothschild e os Rockfeller) ao frenesim na baía de Cascais, onde acostaram iates como o Creole, do armador grego Stavros Niarchos, ou o Tritona, do conde Theo Rossi di Montelera, às filas de espera nos salões de cabeleireiro de Lisboa e Cascais, de tudo isto se foi dando conta nas páginas de títulos como o Século e o Diário Popular.

Motivo de notícia era também o estado de saúde do presidente do conselho. Poucos dias antes da festa, Salazar deu a célebre queda da cadeira que viria a pôr fim ao seu mandato. "Antenor dizia: "Se ele morrer, cancelo a festa"", conta a duquesa.

Uma noite genial

Se a festa dos Schlumberger encantou os seus cerca de mil convidados, o melhor ainda estava para vir: o baile dos Patiño é que foi "verdadeiramente inesquecível". A decoração ficou a cargo da dupla Valerian Rybar e Jean François-Daigre, com a ajuda do decorador português Álvaro Pimenta da Gama. E nada foi deixado ao acaso. Durante meses, vários marceneiros trabalharam os tectos do pavilhão mandado construir propositadamente para a realização da festa - o vermelho e o verde deram o mote.

Claudine de Cadaval, Béatrice Patiño e as filhas (do seu primeiro casamento, com o conde italiano Giovanni di Rovasenda) usaram Valentino. "Era tudo Givenchy, mas nós fomos infiéis e escolhemos Valentino", conta Claudine de Cadaval, que guarda memória de uma "noite genial", que terminou já depois das oito da manhã "com pessoas a tomar banho na piscina".

Nessa semana única, teve ainda lugar uma festa tipicamente portuguesa organizada pelo industrial Manuel Vinhas na Herdade do Zambujal (em que os famosos dançaram música popular, comeram petiscos típicos e assistiram à largada de touros) e um grande jantar na Estalagem do Muxaxo (Guincho), a convite dos duques de Cadaval.

As notícias de jornal sobre os bailes prolongaram-se por vários dias. Da actriz Zsa Zsa Gabor recorda-se o episódio em que tentou sair do Hotel Palácio sem pagar a conta e levando as toalhas de recordação. A vedeta italiana Gina Lollobrigida tentou outra estratégia: "Ela ligou-me duas ou três vezes, porque queria que o meu marido, que conhecia de Nova Iorque, pagasse a conta. Mas eu fingi que era a secretária e disse que ele não estava", recorda, entre risos, a duquesa de Cadaval.

Com Antenor Patiño ter-se-á passado algo semelhante, tendo o boliviano dado um rotundo não à famosa "Lollo", de acordo com a edição sevilhana do jornal ABC. "Se não sou seu marido, nem seu amigo, não sei por que é que hei-de ter que pagar as suas dívidas", escreveu o multimilionário numa carta em que devolveu à actriz a elevada conta de hotel que esta deixou "pendurada" no Hotel Palácio.

Nesse mês, foi ainda notícia no jornal O Século a oferta pelos Patiño de uma creche à povoação de Alcoitão. "Desde há anos que eu e a minha mulher temos passado nesta acolhedora terra boa parte da nossa vida. Aqui construímos a nossa casa e criámos amizades", disse Antenor, na cerimónia de lançamento da primeira pedra da creche Béatrice Patiño. "A estima que por ela [pela região] criámos estende-se às populações", garantiu o milionário, num discurso perante o então presidente da Câmara de Cascais.

Também o Museu Nacional de Arte Antiga tem razões para se sentir grato ao casal Patiño, que, em 1969, lhe doou uma sala Luís XV. O mobiliário, a arte e as jóias eram, de resto, uma das grandes paixões dos Patiño. Recentemente, a Sotheby"s leiloou as últimas peças da colecção Patiño (tapeçarias, mobiliário, pratas e pinturas repartidos entre a casa de Alcoitão e o apartamento de Paris de Béatrice) e os cerca de 400 lotes que estavam avaliados entre 2,5 e 3,6 milhões de euros foram vendidos por 4,8 milhões.

Antenor Patiño morreu em Nova Iorque, em Fevereiro de 1982, com 86 anos. Curiosamente, no mesmo hospital e no mesmo ano em que viria a nascer a filha mais nova dos duques de Cadaval. Mas no Verão anterior à sua morte passou uma temporada na quinta e no Verão seguinte a viúva voltou a Portugal e reabriu a casa.

Foi já no final dessa década que Béatrice Patiño decidiu vender a propriedade ao grupo Espírito Santo, reservando para si uma parcela de dois hectares, onde construiu uma casa menor que o palácio original, mas igualmente inspirada na arquitectura portuguesa oitocentista. "Ela dizia: "Não quero outro país!" e foi então que decidiu construir uma segunda casa", para onde continuou a vir com as filhas e netos todos os Verões, até morrer, em Abril de 2009, conta Claudine de Cadaval. É essa propriedade pensada por Béatrice que está agora à venda.

O rei do estanho

A história que trouxe um dia o "rei do estanho" a Portugal começou a escrever-se nos últimos anos do século XIX, nas montanhas ao redor de Cochabamba. Diz-se que Símon Patiño (mestiço de origens espanhola e índia), que era empregado de escritório de um comerciante alemão, ficou com a licença de exploração de uma mina na montanha de Juan del Valle como pagamento de uma dívida de um prospector português. O patrão não gostou, mas a licença de exploração acabou por ficar com Patiño. E terá sido por influência da mulher, Albina, que toda a família montou em mulas para subir a montanha onde, durante anos a fio, Símon escavou em busca de minério.

Até ao dia em que encontrou um filão de estanho e começou a construir um império. Em 1910, Símon já era milionário e quando, na década de 20, se radicou na Europa, consolidou a sua fortuna com o investimento em fundições, minas na Malásia que produziam mais que as suas minas na Bolívia, propriedades e imóveis na Europa, Estados Unidos e América Latina e jóias e peças de arte, iniciando uma colecção que o filho viria depois a alargar.

Símon Patiño era uma figura controversa que, a partir da Europa, exercia uma enorme influência sobre a política e a economia do seu país (fortemente dependente da exportação de estanho).

O boliviano tudo fez para dar à sua fortuna a chancela do sangue azul e, por isso, além de fazer com que as filhas se casassem com aristocratas, arranjou o casamento do primogénito, Antenor, com a espanhola Maria Cristina de Borbón y Bosch-Labrus, prima do rei Afonso XIII de Espanha.

A união, da qual nasceram duas filhas (Cristina e Maria Isabel), não foi de todo feliz. Cristina, futura duquesa de Durcal e mulher de temperamento forte que, em 1940, foi considerada a mais elegante do mundo, separou-se do marido em 1944, com um acordo de quase meio milhão de dólares. Pouco depois, viria a arrancar em tribunal uma quantia semelhante quando deu como provada uma "escorregadela" do marido com uma modelo. Antenor tentou, em vão, obter o divórcio e anular os acordos e o processo litigioso entre ambos - que durante quase 15 anos se arrastou pelos tribunais espanhóis, franceses, norte-americanos, bolivianos e mexicanos - foi muitas vezes motivo de notícia nos jornais.

Amores polémicos

Em 1952 (já Símon tinha morrido e Antenor herdado uma fortuna avaliada em 200 milhões de dólares), os dois "rivais" empenharam-se na tarefa de encontrar noivos adequados para as filhas. Nessa época, Antenor vivia já com Béatrice de Rivera y Digeon (seriam as filhas desta, Isabella e Maria Elena, a acompanhar o casal nas férias no Estoril), com quem se casara em Londres, em 1960.

E se Cristina, que fugiu de Paris para Madrid para viver com um norte-americano, acabou por ceder quando o pai a foi a buscar e acabou casada com o príncipe francês Marc de Beauvau-Craon, já Isabel, que se tomou de amores pelo jovem herdeiro dos hotéis Savoy e Claridge"s de Londres e Scribe de Paris, James Goldsmith (milionário que fez carreira na alta finança e na política) enfrentou o pai e foi bem-sucedida, acabando por casar-se em Edimburgo no início de 1954.

Consta que Antenor chamou um dia Goldsmith ao seu escritório para lhe ordenar que deixasse de ver a filha. "Jovem, na nossa família não temos o costume de casar com judeus", terá dito Antenor. Ao que Goldsmith terá respondido: "Na nossa família, também não temos o hábito de casar com índios".

O namoro continuou e fez correr rios de tinta quando Isabel engravidou e o casal fugiu. Mais uma vez, o nome de Antenor Patiño voltava a ser tema de notícia, mas desta vez para relatar as peripécias dos dois apaixonados, que fugiram de Casablanca para Londres e daqui para a Escócia, onde era autorizado o casamento a maiores de 18 anos (que Isabel tinha acabado de completar). E de nada valeram os detectives e advogados pagos a peso de ouro pelo boliviano, que acabou por dar o braço a torcer.

Mas Isabel e James Goldsmith não viveram felizes para sempre. Poucos meses depois de estar casada, Isabel viria a morrer na sequência de uma hemorragia cerebral, dando entretanto à luz (por cesariana) uma menina. Em 19 de Maio de 1954, o correspondente da agência espanhola EFE escrevia no jornal ABC que os 189 operários que trabalhavam na construção do "apeadero" de Verão de Antenor Patiño (orçado em seis milhões de pesetas) tinham cumprido um dia de luto devido à morte de Isabel.

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