A companheira ausente de um Fürhrer "magrizela"

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Eva Braun com Hitler em Junho de 1942, na Áustria german federal archive

Simone Bernard-Dupré imaginou a história "possível" de Eva Braun, partindo de factos e desenhando uma personagem assombrada pelo fascínio por Hitler mas também questionando-se sobre essa sua fixação

Diários Secretos de Eva Braun é um livro sobre o fascínio. Mas visto a partir de uma personagem que encarna talvez o expoente máximo e mais intrigante de um fascínio - Eva Braun, a mulher que viveu uma relação com Adolf Hitler e que acabou por escolher suicidar-se junto a ele, no bunker de Berlim onde tinham acabado de se casar quando a aproximação das tropas soviéticas tornou a derrota completamente evidente.

É um diário ficcionado em que Eva Braun aparece, por vezes, como uma encarnação do povo alemão, espelhando a sua adoração ao novo líder, que pretendeu salvar o país da humilhação da I Guerra Mundial, da crise, do desemprego.

Mas a narradora dos Diários Secretos de Eva Braun também questiona repetidamente o seu modo de ser, o modo de ser alemão, nota contradições e incoerências entre as ideias de Hitler, a exaltação da raça ariana, e ele próprio, um homem moreno, com um físico "magrizela", desrespeitando a exigência de "quádrupla ascendência ariana".

Fala de cenas já conhecidas de outras fontes, como os últimos dias no bunker em Berlim, retratados no filme A Queda (2004), baseado no livro da secretária de Hitler, Traudl Junge - o momento em que a lealdade de Eva é finalmente compensada e ela se casa com Hitler, morrendo como Frau Hitler. Antes, Eva tinha sido uma companheira sempre ausente, já que o Fürhrer projectava a imagem de líder solitário e uma mulher ao seu lado mostraria fragilidade.

Através dos olhos de Eva Braun vê-se o amor de Hitler à arte, especialmente a Wagner e a tudo o que é sumptuoso como uma ópera deste compositor, o seu fascínio com a guerra, os seus desequilíbrios de humor, o seu anti-semitismo. O motivo do ódio de Hitler aos judeus é também neste livro questionado por Eva Braun, que tenta encontrar-lhe a origem.

Descobre que Hitler foi acompanhado de um judeu quando decidiu sair da Áustria para a Alemanha; já em relação ao médico, judeu, que tratou a mãe quando esta morreu de cancro nota-se uma duplicidade: por um lado Hitler estava agradecido (e tê-lo-á poupado), por outro não evitaria pensar se o médico não poderia ter feito mais para a salvar.

No livro, Eva-contada-por-Bernard-Dupré especula ainda que um dos membros da academia de arte que rejeitou Hitler (o momento em que este decide virar-se para a política) poderia ser judeu.

Simone Bernard-Dupré quase não fala das vítimas do Holocausto. Estas aparecem em comentários de Eva Braun: uma vez constata que os doentes dos asilos mentais "foram todos gaseados"; outra vez pronuncia-se sobre o grau de conhecimento dos alemães sobre os campos de concentração: eles sabiam da sua existência, "tinham de saber".

Racional versus irracional

A voz do início do livro é a de uma jovem desinteressada da política, a investir no exercício físico para moldar um corpo atlético, e que se apaixona por Hitler aos 17 anos enquanto trabalhava num laboratório de fotografia em Munique e que se casa com ele aos 33.

Primeiro descreve o fascínio pelos olhos azuis do estranho de bigode, para depois se deixar levar pela voz que arrasta multidões - ela própria lembra os ensinamentos que Hitler tirou de Carl Jung sobre a psicologia das mulheres e das multidões - e finalmente para questionar, mais tarde, toda a encenação e o por vezes tom histriónico dos discursos de Hitler, chegando mesmo a ridicularizá-lo.

Diários Secretos de Eva Braun é ainda um livro sobre o contraste entre um modo de ser mais racional e outro mais irracional, Eva mais racional e Hitler mais irracional ("Eu sigo as vias da razão, ele evolui no delírio e no irracional", diz, depois de o ver em transe com uma obra de Wagner). E também entre os judeus que encarnam este lado racional por oposição à faceta "mágica" da cultura alemã - Hitler confiava num vidente, nota Simone Bernard-Dupré.

Diários Secretos de Eva Braun é o quarto livro de Simone Bernard-Dupré, advogada do Tribunal de Relação de Paris, com pesquisa de François Renuit, que trabalha na comunicação da Comissão Europeia.

É editado pela Arcádia e custa 21 euros.

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