Eu sou um Fellini

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"Federico Fellini: o circo das ilusões" é "o pretexto ideal para falar da segunda metade do séc. XX", diz Sam Stourdzé, comissário da exposição apresentada no CaixaForum de Madrid. Retrato de uma obra que nos revela como existimos enquanto espectadores

Ao contrário de autores que chegaram ao cinema pela sua cinefilia, por um interesse académico ou um vincado desejo profissional, Federico Fellini surge como um autodidacta que seguiu um gosto popular pelas imagens. Assim, a exposição "O circo das ilusões", apresentada no CaixaForum de Madrid, mostra-nos, por um percurso de fotografias e testemunhos de Fellini e colaboradores, que o interesse do italiano ultrapassava um mero gosto pessoal, mostrando, pelo seu toque único, a forma como o homem criou uma plataforma para fantasiar os seus heróis e reviver os seus desejos na projecção das imagens.

"As várias temáticas do séc. XX estão presentes no cinema de Fellini", diz-nos Sam Stourdzé, comissário da exposição sobre o realizador italiano, "a questão mediática, a imprensa e televisão, a representação. Para ele, a cultura popular é uma fonte de inspiração, algo que vai das novelas gráficas ao rock'n'roll, passando pelos jantares de rua, os desfiles e as paradas de circo", afirma. "Fellini alimenta-se dessa realidade e, através do seu processo criativo muito particular, transforma-a e coloca-a em cena nos seus filmes."

Na exposição, os inícios de Fellini são mostrados por uma série de caricaturas feitas para jornais: as diferenças entre sexos e as suas formas exageradas, o tom cómico da postura das estrelas do entretenimento contra o dia-a-dia do homem comum. Na verdade, são os primeiros resultados criativos da observação de Fellini sobre o que alimenta o olhar do homem, através do seu interesse pelo formato da BD (e o seu herói Mandrake). O realizador diria desses tempos: "Aprendi a essência da comédia com a banda desenhada."

A realidade e as suas ilusões

Mas é na escrita que Fellini viria a desenvolver uma vertente mais incisiva da sua observação de personagens e costumes. Ao mudar-se da sua Rimini natal para Roma (a fuga de um desperdício de vida retratada em "Os Inúteis", de 1953), irá passar do desenho para funções editoriais em publicações, algo que abrirá as portas da escrita romana e permitir chegar, mais tarde, à escrita para cinema. É aí que conhece Roberto Rossellini, seu mestre e protector, de quem será co-argumentista em "Roma, Cidade Aberta" (1945), "Libertação" ("Paisà", 1946) - obras-primas do neo-realismo italiano -, e também actor em "Il Miracolo" (1948) com Anna Magnani. Com Rossellini, afirmará ter encontrado o seu meio de expressão no cinema, a plataforma ideal para criar a sua projecção da realidade.

Dentro dessa matriz, cria, durante a década de 50, filmes cujos contextos sociais não estarão longe dos da dura realidade italiana, em que a sua tocante capacidade de esperança e revalidação espiritual perante as dificuldades aproximam-no de uma vertente católica do movimento. Contudo, será ainda neles que Fellini começará a ser contestado como um dissidente e acusado, nas palavras do argumentista e teórico Cesare Zavattini (num testemunho presente na exposição), de destruir o neo-realismo ao abdicar de qualquer análise política em "A Estrada" (1954), obra-prima que revela o enorme talento cómico da sua mulher, Giuletta Masina, num filme focado nas desventuras de uma vertente pobre e rude do espectáculo de rua. "Existe toda uma ambiguidade no cinema de Fellini", diz-nos Sam Stourdzé, "alguém formado na escola do neo-realismo e que trabalhará durante dez anos com todas as suas figuras. Mas por fim, acabará por guardar uma relação ambígua com a realidade."

O interesse de Fellini, mais do que num mero retrato de uma vivência ligada a um contexto histórico e político, estará no fascínio do olhar humano pelas formas de celebração do prazer e do entretenimento, tanto nos seus espectáculos como na recriação mediática de imagens para o olhar público - algo logo anunciado em "O Sheik Branco" (1952), o seu primeiro filme (a história de uma jovem perdida em Roma que decide conhecer a realidade por trás da sua estrela preferida), e que atinge o seu ponto alto em "A Doce Vida" (1960).

Para Stourdzé, Fellini surge nesse filme como "o observador privilegiado do período da vida romana entre 1950 e 1960, em que as maiores vedetas mundiais de cinema vivem em Roma e os fotógrafos vêm fotografá-las num ambiente de deboche e festa permanente." Através da imprensa da época apresentada na exposição, vemos que vários episódios do filme são retirados da realidade romana: o passeio de Jesus-Cristo de helicóptero sobre a cidade, uma sessão fotográfica de Anita Ekberg na Fonte de Trevi, o polémico striptease de uma actriz no bar "Rugantino", ou os casos de aparições milagrosas nos arredores da cidade. Numa das cenas mais marcantes, Fellini reproduz a cobertura televisiva de um desses falsos milagres, o retrato da agitação e do circo mediático de uma imagem que se comprova inexistente. O realizador marca, então, o absurdo do fascínio humano por ilusões fictícias, validadas por uma plataforma mediática que define, no seu vazio, a nossa percepção da realidade.

Para Stourdzé, "Fellini alimenta-se directamente da realidade para criar as suas personagens e as cenas dos filmes, sendo que a sua criação acaba por ultrapassar a realidade para depois alimentá-la de novo."

Um caso paradigmático do retorno do espectáculo felliniano sobre a vida é a adopção do termo "paparazzi". "No caso dos 'paparazzi', foi Fellini que os colocou no filme com esse nome e que depois se adoptou na realidade. É um mecanismo de vai-e-vem entre a realidade e a sua criação."

O interesse pela agressividade dos "paparazzi" como centro de uma indústria de ilusões revelou-se também no interesse pela sua estética. "Fellini tinha um fascínio pela criação da estética de fotografias roubadas que aparece então nos fotógrafos em Roma, uma verdadeira revolução que quebrou todos os códigos", diz o comissário.

A personagem felliniana

Desencantado com a sua realidade, à semelhança das suas personagens, Fellini vê-se perdido e desinspirado. A partir daí, inaugura o que Stourdzé apelida de "um cinema mais introspectivo, um mundo fantasista e imaginário que qualificamos de 'felliniano'". "8 1/2" (1963), o filme que vem da crise, acabou por ser a tábua de salvação pessoal do realizador, obra-prima onde irá expor as dúvidas sobre o seu papel na vida e no cinema, colocando sonho e realidade no mesmo plano. Mastroianni, o seu alter-ego, é o veículo de Fellini como estrela dos seus próprios filmes, rodeado das projecções que irão criar um cinema de visões fora de qualquer tempo.

Começa então o desfile das suas personagens, o espelho das fantasias do realizador e das suas idealizações dramáticas. Na exposição, testemunhamos as cartas e os rostos de milhares de pessoas chamadas por Fellini e que seriam mais tarde escolhidas para as participações nos seus filmes. O realizador recebe-as no seu estúdio, enquanto estas tentam comprovar o que dizem pela sua aparência: "eu sou um Fellini". Segundo Stourdzé, "sabemos que, nos filmes, existem uma série de personagens fellinianas, mas não sabíamos que as personagens existiam, a esse ponto, na realidade, e que iam ter espontaneamente com Fellini." Daí, o cineasta imporá a sua direcção: uma psicologia unicamente reflectida numa marcada caracterização e uma interpretação focada nas expressões faciais e corporais. É a montagem final do circo felliniano, vista nas experiências alucinogénias de "Julieta dos Espíritos" (1965), na recriação barroca de "Fellini - Satyricon" (1969), no desfile de "Roma" (1972) ou na recriação de memórias em "Amarcord" (1973) - Fellini buscando outra dimensão, visões que parecem vir da viagem de G. Mastorna, a história do homem que descobriu o além e que Fellini nunca conseguiu adaptar ao cinema num filme só.

Dentro desse universo, a exposição dá destaque a uma das obsessões do realizador: a mulher felliniana, uma alternância entre a mulher doce e um corpo animalesco. "'A Cidade das Mulheres' (1980) é um filme dele que passou despercebido", diz Stourdzé, "mas é onde vemos Fellini a mostrar-se muito, alguém cuja obsessão cinematográfica é refazer o mesmo filme, mas dando sempre à mulher um lugar essencial." As formas super-humanas das mulheres de Fellini (desenhadas nos esboços dos seus sonhos por sugestão do seu psicanalista) encontraram a sua personificação ideal em Anita Ekberg, actriz de "A Doce Vida", e mais tarde exploradas nas figuras de mulheres maternais, amantes ou prostitutas. Segundo Fellini: "A prostituta é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem outra." O seu papel masculino seria posteriormente confessado no rídiculo de "Casanova" (1976), um homem que não consegue amar as mulheres por amar, por sua vez, uma imagem que criou delas.

Fellini, hoje

O espectáculo das imagens de Fellini não marcou apenas as possibilidades da expressão cinematográfica, mas também um reconhecido público que sempre se alimentou da sua fantasia. Contudo, e por os seus filmes serem, como poucos, encenações pessoais de um desejo de vida, a sua influência noutros autores ainda se mostra difícil de clarificar. Um resultado trágico e fértil da adopção do seu universo revelou-se em "Nove" (2009) de Rob Marshall, recriação musical de "8 1/2". "Trata-se mais de uma recriação histórica que pega na comédia musical feita na Broadway", diz Stourdzé. "É sempre difícil fazer remakes, sobretudo filmes tão majestosos e complicados como '8 1/2', ou tentar transformá-lo num sucesso popular de 2010." Quanto à influência noutros realizadores: "Begnini cresceu com a presença de Fellini mas o seu cinema não é exactamente felliniano, tal como o lado barroco de Almodóvar é mais espanhol que italiano. Julgo que não encontraremos a herança de Fellini num só cineasta, mas sentimos que, em todos eles, houve um momento em que um filme de Fellini os marcou particularmente, como '8 1/2', 'A Doce Vida', 'Roma', ou filmes mais académicos como 'A Estrada'. São obras que marcaram a história do cinema."

Um dos realizadores mais interessantes da actualidade, o tailandês Apichatpong Weerasethakul, vencedor da Palma de Ouro deste ano, afirmou recentemente à revista britânica "Sight & Sound" a sua admiração por Fellini, cuja cassete de "8 1/2" viu repetidamente nos seus inícios. "É verdade que a sua relação com o onirismo encontra-se sempre ancorada numa certa realidade, tal como Fellini", afirma Stourdzé. "Os seus filmes surgem sempre na forma de uma fábula, remexendo-a entre o documentário e a ficção, de forma ténue, através do sonho." Uma fórmula que ainda se encontrará na base da arte que melhor encarna a expressão dos nossos sonhos, e à qual Fellini soube dar uma efusiva, sentida e tocante representação da vida.

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