O baile da Rocinha

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Uma semana após a tomada do Bairro do Alemão, não há tensão na Rocinha

Sábado, vista geral com obras. Domingo, programão: missa, mercado, praia, final de campeonato e baile funk. Só faltava chover, e choveu. Um fim-de-semana com William da Rocinha e amigos, na maior favela do Rio de Janeiro. A polícia está pronta para a tomar. Só não se sabe quando.

Às 13h, na passarela da Rocinha", disse William.

São 13h. A passarela da Rocinha é uma novidade na paisagem do Rio de Janeiro. Quem vem de Ipanema e entra no túnel que fura o morro a caminho da Barra vê logo à saída este arco de betão, com vários braços em espiral.

Oscar Niemeyer? Claro. Oscar Niemeyer 2010.

Os cariocas automobilizados passam velozes por baixo, e por cima um carreirinho de gente, entre a favela e o novo complexo desportivo que tem o nome da favela.

Para completar a renovada, tinta fresca nas barracas de tijolo, azul-bebé, amarelo, lilás.

O céu está branco, com neblina por cima do morro. São poderosos, os morros do Rio, massas negras com uma parte de verde e uma parte de barracas. No caso da Rocinha, uma grande parte de barracas.

13h30. ""Tou chegando"", diz William ao telefone.

E está, sorriso maior que a cara, blusa e calção branco, barriguinha, chinelo. O amigo que nos pôs em contacto nem lembrava mais o apelido dele. William (de Oliveira) é "o" William da Rocinha. Querem ver?

"William!"

"Oi William!"

"E aí, William?"

"William, abençoado!"

Polegares para cima, punho com punho, abraços: isto é William a entrar na amálgama da Rocinha.

"Aqui sou nascido e criado", diz, sem parar de erguer o braço, cumprimentando. "Minha avó era uma gaúcha que chegou aqui com dez anos, morreu com 89, e criou uma grande família. Chamava-se Eunice Resende Campos. Foi uma das pessoas que me criaram. Minha avó, minha madrinha e minha mãe-de-leite. A minha família tem cinco gerações aqui. [E subindo a voz para mais um cumprimento:] E AÍ? BELEZA?"

Tanta gente como cabos eléctricos emaranhados. Mas o piso foi refeito e a tinta fresca continua: laranja, vermelho, índigo. William quer mostrar a mudança.

"Quando minha avó chegou, era tudo mato... [Voz alta:] E AÍ MEU AMIGO? [Voz normal:] Eu sou mais conhecido que nota de um real."

Não existem notas de um real. William ri como criança.

Muito tronco nu, muito frango cru, muita TV encavalitada em tralha, muito velho sentado. Mas rapazes de macaco azul e capacete empurrando carrinhos de cimento entre as fachadas recém-coloridas. Obras que, tal como a passarela e o complexo desportivo, estão integradas no PAC, Programa Acelerado do Crescimento, um dos orgulhos do Governo.

"O nosso sonho é que seja tudo subterrâneo", diz William apontando mais um feixe caótico de cabos. "Apesar de que os turistas ficam apaixonados com isto..."

Os turistas são importantes para a Rocinha, que oferece circuitos com guia. Não hoje, sábado, 4 de Dezembro de 2010, porque estamos no rescaldo da maior conquista militar de que há memória recente no Rio, e o turismo ainda não se refez.

A operação das forças armadas começou a 26 de Novembro na favela da Vila Cruzeiro, Complexo da Penha, e avançou depois para as favelas do Complexo do Alemão. Tudo isso é quase subúrbio, lá na Zona Norte, bem longe dos cartões-postais do Rio.

A Rocinha faz parte do cartão-postal alternativo da Zona Sul: do outro lado do morro está Leblon-Ipanema, e mesmo aqui em frente estão os prédios de São Conrado, onde moram estrelas da Globo, e heróis nacionais como Gilberto Gil.

Mas esta continua a ser a maior favela do Rio e dentro dela o tráfico ainda domina. Aqui não há UPP"s, as célebres Unidades de Polícia Pacificadora que já ocuparam 13 favelas. O Alemão também vai ter UPP, sendo que até lá as forças armadas deverão garantir o controle do território.

Então na Rocinha a pergunta não é se isso vai acontecer aqui, mas quando e como. Militares e polícia vão entrar por estas ruas com blindados, como fizeram na Penha e no Alemão? O tráfico vai responder?

Até à chegada dos militares, Penha e Alemão eram territórios do Comando Vermelho (CV), grupo de traficantes com origem nas prisões em que se misturavam delito comum e político, nos anos 70. Na Rocinha, quem manda é um grupo dissidente do CV: Amigos dos Amigos (ADA).

Mas a imprensa vai noticiando que alguns traficantes do Alemão fugiram para aqui. Até se falou em unidade de facções.

Que pensa o observador William, subindo a ladeira, entre fachadas cor-de-rosa, azuis e amarelas? "Não há unidade. Nem unidade nem guerra. Eu posso ser seu inimigo sem querer tirar seu território. O que há entre eles é um acordo, entre aspas, de não-avanço do território."

E entretanto, aparentemente, sumiram todos. Se os do Alemão estão escondidos algures, os da Rocinha estarão escondidos por trás destas vielas e janelas. Nem uma arma à vista.

Censo em falta

Seguindo a rua das obras do PAC, morro acima, uma esquina parece acumular todo o lixo das redondezas, sacos rebentados, derramando folhas de alface e cascas. "Isto vai acabar", diz William. "Agora dia 21 inaugura esta parte da obra." Até aqui, as fachadas estavam só pintadas, mas as casas por dentro continuavam velhas. A partir daqui a rua abre muito e lá em cima há casas novas.

"Isto era um beco de 80 centímetros com o maior índice de tuberculose, o sol nem batia, e agora é uma rua. Os moradores podem subir com o mototáxi e o carro pode trazê-los na porta de casa. Vai ter saneamento básico, cabo subterrâneo. Foram derrubadas umas 200 casas para abrir isto, e os novos apartamentos vão ser entregues na inauguração. Olha as árvores aí..."

Jovens árvores no passeio. Um passeio de cada lado. Tudo isto são novidades. Quando é para fazer crítica, William também faz, mas neste caso é todo orgulho. "O governo Lula e o governador Sérgio Cabral assumiram esse desafio. Ninguém acreditava que a gente podia transformar e a gente transformou."

Décadas de barracas apertadas, como as que se vêem aqui à volta. A obra parece uma gota de água no todo da Rocinha, mas abriu um acesso decisivo no morro.

William, 39 anos acabados de fazer, lembra-se de tudo aqui ser mato. "A gente comia goiaba branca, goiaba rosa, manga, cajá-mirim, jaca, jamelão, tinha tudo isso." Agora a Rocinha vai de São Conrado à Gávea, ondulando pelas encostas.

"Se eu parasse hoje o planeta, nós íamos levar 20 anos a alcançar o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] de São Conrado", resume. E o Censo não ajuda. "O último diz que tem 68 mil pessoas aqui. A gente faz uma nota de repúdio a este mau trabalho. O Estado reconhece 108 mil e o Censo 68 mil? É uma covardia, uma equipe viciada, que precisa se renovar, bater de porta em porta."

Mas como sabe ele que a conta não está certa? "Em 1989, os líderes comunitários da Rocinha fizeram um Censo e naquela época já tinha 90 mil pessoas aqui. Só contadores, a Light [Companhia da Luz] contabiliza 40 mil. Se multiplicar por quatro em cada casa, dá 120 mil. Então não dá para o Censo dizer que são 68 mil pessoas. Vamos pedir uma recontagem. Temos de falar isso com o presidente Lula. Fazendo esse tipo de coisa o Censo não deixa o país avançar, porque o Governo faz programa para aquela quantidade de gente que o Censo diz. Assim não vai melhorar o IDH."

O reino das motos

Na Rocinha pode acontecer isto, de repente voltamos a cabeça e William está a rir com um macaco nos braços. Andava por aí.

Por cima deles há outro sorriso, o da mulata Suelen, à janela de casa. Não é bem uma janela, nem é bem uma casa. Agora ficou com a rua nova à porta, mas quando entramos, por uma escada em caracol, é um buraco, fogão e frigorífico à direita, sala em frente com sofá, uma televisão desfocada, um velho colchão ao fundo com miúdos nus a saltar. O marido de Suelen é confeiteiro, ganha o equivalente a 270 euros, dos quais 90 vão para a renda.

Ao pé disto, os novos apartamentos mais acima, cheios de cor e de varandas, fazem sensação. Alguns até têm mosaico com palmeira e sambista.

"Ei, abençoado!", grita um homem para William. "Ei, abençoado!", responde William. "William, tudo bem, amor?", pergunta uma avó, beijando-o

Estamos no fim da rua nova. Acabaram as obras. A partir daqui é a Estrada da Gávea, que serpenteia ao longo de toda a Rocinha, e isto quer dizer um "rally" contínuo.

O grande transporte da favela é o mototáxi. Porque é a subir, porque é estreito, porque é barato. Mães com bebés sentam-se na garupa da moto e desaparecem por aí acima, como pesos-pluma, uma mão a segurar no banco atrás, bebé entalado ao meio.

Cada viagem são dois reais, 90 cêntimos. O mesmo preço que se paga numa das "vans" que também sobem e descem continuamente, mas não entram em todas as ruas.

Isto significa que o grande som da favela é o das motos. Tem samba, tem funk, tem pregão de vendedor, tem carro, mas sobretudo tem moto, em geral com duas pessoas, às vezes com três, quase sempre sem capacete e a toda a velocidade.

William pára na conversa com o seu amigo Ailton Macarrão, "presidente do Fórum do Turismo, um filho de Paraíba". É o que há mais na Rocinha, nordestinos pobres, vindos do Ceará e da Paraíba, como os pais de Ailton.

"Eu já sou nascido e criado aqui, há 45 anos", diz ele. "E sou avô já. Criei uma consultadoria: AM Consultadoria." As suas iniciais, claro. Estamos à porta de uma mercearia-tasca, e Ailton vai lá dentro desencantar uma revista meio amarrotada. "Desculpa, é a última, para a semana que vem já tem a edição nova. E a gente tem um site de TV Web."

A Net é rastilho na favela, nos cibercafés, que aqui se chamam LAN Houses. "O que tem mais aqui é LAN House, igreja e bar!" E moto? "Ah, moto tem mais que gente! São duas motos para cada habitante, e se não tiver cuidado te atropelam e ainda te xingam!"

Quem o vê a rir não vê tensão. Aliás, não vê tensão em parte alguma. A Rocinha está ou não preocupada?

Ailton desfaz o sorriso. Tacteia o assunto. "Aqui todo o mundo tem a consciência aberta. O momento é de pisar ovos. A operação vai vir mas de uma maneira pacífica, articulada, de respeito. A gente espera que seja com negociação, com conversa."

Não está nada à vontade. Prefere falar do Alemão, que já passou. "Foi mais tranquilo do que se imaginava." E de resto, "quem está no comando é Deus". Que Deus é o de Ailton? "Sou católico e espírita." Pausa. Ailton hesita no que quer dizer. "A gente que é povo não tem nada a ver nem com a polícia nem com bandido. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come."

William despede-se e começamos a descer, entre o inferninho de mototáxis, e mais centenas de cumprimentos.

"E aí, William?"

"E aí, bonitão?"

"Cadê o vídeo para botar na Internet?"

Todo o mundo está ligado. William, por exemplo, não larga o seu telefone. Tem 700 seguidores no Twitter. Vai alimentando a coisa, Rocinha abaixo.

Mas de repente pára e volta atrás, ao tal cara que lhe vai passar o vídeo, e que continua pendurado num varandão, a olhar para nós.

"Esse aí é o Fernandinho, DJ. [E gritando para cima:] Ó CARA, QUER DAR UMA ENTREVISTA?"

Nuzinho na Playboy

O cara quer. Subimos.

Chão de casa-de-banho, bola de espelho, bola de luzes, uma moldura com a pintura bucólica de um barquinho entre as ervas, algures no século XIX. O varandão chama-se mesmo O Varandão. Ponto de bailes funk, noite e matiné de domingo.

"Também temos pagode, hip hop, um pouco de house", diz Fernandinho. "Mas o pessoal aqui está voltado mesmo é para o funk."

Não confundir com o funk americano. Funk de favela é hard core, do refrão ao bumbum. A propósito, os amigos de Fernandinho já vão revelando: "Ele posou nu com a Valeska Polpozuda." Valeska Polpozuda? "Aquela cantora que pôs o bumbum no seguro", esclarece William. "Ela sentou na garupa da moto dele nuazinha!" E ele idem. "Não foi, cara?"

O cara acena que sim, num orgulho modesto. Calção, chinelo, bíceps, tatuagem. "Esse G é de Gabrieli, a minha actual mulher. E essa pena colorida é porque sou descendente de índios."

Aqui, Fernandinho tem três DJ"s a trabalhar, e em média 700 pessoas a dançar. "Até determinada hora as damas são de graça e depois pagam."

E a hipótese de o exército rebentar por aí acima, não o inquieta? "Olha, preocupação vai existir sempre. Todo o mundo sabe que na Rocinha tem traficantes, tal como sabe que tem o Bin Laden..." O que é que Fernandinho achou da tomada no Alemão? "Ah, contra a força não há resistência. Agora, o tráfico não vai acabar nunca. As pessoas entram no tráfico por falta de opção."

Entretanto, o pessoal do Varandão vai descendo caixas de som. William está com saudades. "Eu também fui DJ. Ele é o número um [aponta para Fernandinho] e eu o número dois."

De calça bem azul, entra Cacau, que está na Associação de Moradores da Rocinha, já liderada por William. "Depois do que aconteceu no Alemão, as coisas aqui acalmaram", diz. "Manda quem pode. A Rocinha quer paz, não quer conflito com ninguém. É a única favela que é pacificada sem ter UPP, tranquila de se viver. O índice de roubo aqui é zero. Deve ter uns cinco anos que você não vê ninguém matar ninguém."

E o que é que foi aquela invasão do hotel Intercontinental, em São Conrado, mesmo aqui ao lado, que fez notícia em todo o mundo há meses? Era pessoal da Rocinha.

"Foi uma situação isolada", ressalva Cacau. "Eles estavam bêbados."

Saímos de volta à Estrada da Gávea.

Descendo, os paredões são todo um mural de anúncios: "Jeito Moleque: sáb. 11 Dez, 22h." "Furacão 2000, sexta 10/17 Dez." "Caldeirão da Roça, sáb. 4 Dez." "Festa do Espião, dom. 5 Dez." "Jesus Luz do Mundo."

Garotas de alcinha e calção, garotos de mochila, uma creche do lado direito, depois um gigantesco centro de comunicação e cultura, em fase de finalização. Carimbo do PAC.

Cheira a pão fresco.

"William!" Mais uma avó que se abraça a ele. "Esperem por mim na feirinha...", propõe ele.

A feirinha são vendedores ambulantes colados ao paredão, a venderem óculos escuros ao preço de uma sanduíche na Zona Sul, por exemplo.

William reaparece, e com ele mais avós. "A luta continua!", diz ele, abraçando uma mulata, feirante de todo o sábado. A "luta" é a entrada de William na política. "Fui candidato a deputado estadual", explica ele. "Não entrei, mas tive oito mil votos." Um deles certamente desta mulata: "Melhor que esse não existe."

Amanhã, o dia dele vai começar na igreja.

Dentro da IURD

Domingo amanhece azul. Às 7h45 o templo da Igreja Universal do Reino de Deus está bem composto, talvez a dois terços.

As igrejas evangélicas representam já 20 por cento da população no Brasil, e a IURD é uma das maiores. Na Rocinha tem este templo grande cá em baixo, e um mais pequeno lá em cima.

William vem todos os domingos assistir à celebração. Costuma chegar às sete, disse-nos que ia chegar às sete, estará algures no meio da plateia que neste momento canta.

À entrada há homens com copinhos de sumo de uva, a ungirem quem chega. Lá ao fundo, o pastor, bradando ao microfone, num cenário de montanhas rochosas (um dos homens à entrada explica à repórter que se trata de uma representação do Monte Sinai): "Livre a minha casa de todos os meus inimigos físicos e espirituais!!! Que sejam amarrados agora!!! Diga sim a Deus! Eu quero que esse sal venha trazer para casa os benefícios da fé. Diga agora que todo o mal seja destruído, amarrado!!! Sai de lá!!! Sai!!!"

E alguns homens saem mesmo, rodeando a repórter.

"Ela escreveu o que o pastor está dizendo", diz um.

"Por que a senhora escreveu?", pergunta outro.

A repórter explica que somos amigos de William.

"Como a senhora pode provar isso?"

Um deles diz que não viu William. Outro telefona a William. William diz que teve um problema e só vai chegar às 9h30. Está provada a relação com William, mas o pastor gostaria de falar connosco, diz um dos homens. Contornamos o templo para entrar pelas traseiras. Nas traseiras afinal não há nenhum pastor. O único pastor presente é o que está a pregar. Pedem-nos para voltar mais tarde. Uma meia hora.

Vamos ao quiosque comprar o jornal. Manchete do Globo a toda a largura: "Polícia e marinha têm tudo pronto para tomar Rocinha." Bem. Será já hoje?

O dono do quiosque, João, 41 anos, quatro filhos, nem tinha reparado na notícia, mas já que a gente fala no assunto: "Como está não dá para ficar, tá muito violento. Aqui mesmo, não tem problema, mas já que está fazendo UPP, tem que ser em todo o bairro."

De volta à IURD, a celebração prossegue e o clima na porta amainou. Um dos ungidores, André montador de automóveis, até fala da manchete do dia: "Tomara que venham para diminuir a bagunça. O pessoal está apreensivo. Fica nesse "vai vir-não vai"."

O seu colega Alan, que está de camisa branca e gravata com corações vermelhas e andorinhas brancas da IURD, concorda. "A UPP tem de ser feita, se não isto não vai acabar nunca."

Telefonamos a William. Pede-nos para não esperarmos na igreja, mas sim na passarela, de novo. "9h30"

Na passarela há gente a descer de roupão e chinelo, vinda da piscina, do outro lado da via rápida. Sendo domingo, está tudo aberto, botecos e lojecas. Um rapaz de barba e jeans chega e pára ao nosso lado, mirando o horizonte.

Já passa das 10h. Esperamos nós e espera ele. Até que, iluminado por uma ideia súbita, se vira para nós e, com inequívoco sotaque, pergunta ao fotógrafo: "Vucê qui é o William?"

Atrás da câmara

Televisão francesa. William combinara com eles há dias, antes de saber que o iríamos seguir hoje. O rapaz de barba, que evidentemente se chama François, acena para um rapaz num carro, que inesperadamente se chama Romeo e, sendo também francês, é camaraman em Bogotá.

Já somos quatro à espera de William, todos o queremos seguir, e eles têm uma câmara de filmar. As previsões para as próximas horas parecem nubladas.

William chega a caminho das 10h30, abatido por problemas conjugais. "Mediar conflito na rua é mole", desabafa ele. "Em casa é que é difícil."

Vamos lá.

Domingo é dia de mercadão. Em menos de um minuto estamos metidos entre rins, costelas, tripas, peixes, espetadinhas no churrasco, pilhas gloriosas de laranjas, cestinhos de legumes muito verdes com picos e bicos que a repórter nunca viu, talhadas de melancia e de abóbora, papagaios pousados em ombros e, junto ao boteco Toquinho e Alzenir, velhos improvisadores, cada um com sua viola.

Mal vêem William, começa um: "Eu vi William aqui chegar / William é o camarada / Na favela da Rocinha / é o melhor que tem."

A Pública fica a falar com os improvisadores. Quando volta a apanhar William e a televisão francesa, está ele a dizer para a câmara: "... temos três agências bancárias, aqui é um lugar bom de se morar, tráfico existe em qualquer lugar."

A sorridente Elita, 51 anos com voz de menina, concorda: "Eu me encantei com a Rocinha." Quem é ela? Uma feirante do Alemão que por causa da tomada militar na Zona Norte resolveu vir para a Rocinha vender no domingo passado, e hoje repete. Está a vender cocada, tapioca, bolo da maçacuba, biscoito, farinhas.

William e a TV já vão lá ao fundo. "E aí? Estamos juntos!", diz ele para o homem que vende frangos crus. Falam sobre as eleições. "A luta continua, o Lula tentou cinco vezes. Hoje eu tenho oito mil votos." Ajeitando asas e pescoços, o homem responde: "Tu merece, tu merece."

Um cartaz anuncia "Celular: 2 minutos, 1 real." Um homem apregoa: "Rapadura do Ceará! Vai acabar! Vai acabar!" Mas tem a banca cheia.

De moto até ao céu

Quando o mercado acaba, estamos naquele ponto em que os mototáxis se concentram para apanhar clientes e subir o morro. William senta-se numa das motos e cada um dos repórteres faz o mesmo.

Então arrancamos como um gangue, a toda a velocidade, inclinação bem de lado em cada curva, inclinação geral a pique, morro acima, "slalon" às motos que vêm de cima para baixo, nem dá tempo de ter medo. Rocinha a 80 à hora.

Só paramos bem lá no cimo. William abre uma porta, subimos à vez uma escada íngreme, depois outra ainda mais íngreme, com dois corrimões a ajudar. E quando enfim levantamos a cabeça é de cortar a respiração.

Toda a Rocinha está aos nossos pés. Milhares de barracas descendo o morro. E ao fundo os prédios de São Conrado, e depois a praia, e depois o Morro Dois Irmãos, cartão-postal do Rio de Janeiro.

Esta é a lage do mulato Carlinhos, por isso chamado Carlinhos da Lage. Lage é terraço, varanda, um ponto ao ar livre. Não haverá mais nenhuma como esta na Rocinha. E enquanto a TV filma com William, Carlinhos vai contando de si.

"Estou com 60 anos. Vivo aqui nesta parte de cima, e a minha mulher em baixo. Estamos separados. Eu nasci na divisa de Minas com a Baía, em Carinhanha." Terra dos sertões de João Guimarães Rosa. "O rio São Francisco passa por lá."

E chegado na Rocinha, aos poucos foi arrumando isto, limpíssimo, arejado, com uns quartinhos ao lado do terraço.

"E aqui temos vista do Cristo Corcovado", mostra ele, entrando por um dos quartos, na direcção oposta ao mar. Lá está, de facto, o Cristo de costas. E um cartaz na fachada mostra o candidato William, que continua em carne e osso a dar entrevista aos rapazes franceses, virado para o mar.

"Recebo 2000 turistas por mês", diz Carlinhos. "Pagam três reais para ver e tirar foto." Trazidos pelos guias. Mas agora não. "Nunca vi isto assim. É a primeira vez que não tem turistas." Por causa do que aconteceu no Alemão.

Está preocupado, o Carlinhos da Lage?

"O pessoal está sabendo que UPP vai ter em todas as favelas", responde, cauteloso.

Mas nem todo o pessoal está gostando. Carlinhos não fala disso, mas pessoas que pedem para não dar nome falam de como o chefe do tráfico na Rocinha, conhecido como Nem da Rocinha, tirou todo o pessoal armado da rua. E se as pessoas não querem dar nome é por acharem que os traficantes as mandam buscar, e matam.

No terraço, William está animado a soltar pipa, ou seja, um papagaio de papel. "Me amarro! Solto pipa até hoje!" Mas quando os franceses lhe perguntam pela possível resposta dos traficantes à possível tomada militar, volta à responsabilidade dos seus 7813 votos como William da Rocinha. "A gente espera que eles entendam que o melhor é recuar. Porque no final de tudo a bala perdida sempre acha alguém. E a gente não quer sangue de pessoas inocentes. Agora, o traficante tem de ser preso. O cidadão tem de ser preso para pagar os seus crimes, e não ser assassinado." Isto, para responder a algum clamor popular que acharia bem o Governo entrar matando sem mais. "A segurança pública vai reocupar o solo e a gente espera que eles tenham consciência e não guerreiem."

Enquanto os franceses filmam uma panorâmica, William lê o Globo. Depois tira uma fotografia a si próprio, sorrindo com a Rocinha por trás das costas e fica a teclar no telemóvel. "Vou pôr essa foto no twitter." Já está a ficar atrasado, aliás. "Tenho de ir na praia, se não apanho."

A mulher está à espera dele.

Descemos à rua, dominada pelo som de um carro aberto, em volta do qual há uns rapagões. A TV francesa vai fazer um último plano de William com o seu cartaz de campanha. De caminho ele ainda recebe os beijos da sua fã Ana, 30 anos de Rocinha, e destemidos.

Porque quando a repórter da Pública fica para trás na conversa com ela, Ana não está com rodeios. "Estou muito preocupada, sim, acho que muitos vão pagar sem dever." Quer UPP aqui? Ela arregala os olhos: "Com certeza! Ó meu Deus. Só assim você pode ficar tranquila. Aqui não cabia mais homem armado. Acho que vieram de todas as favelas, eu estava agoniada. E desde que aconteceu aquilo no Alemão sumiram. Andavam por aqui com tudo armado, cada um pior que o outro."

É costureira, Ana, faz ajuste de roupas no centro comercial Fashion Mall, ali em baixo, em São Conrado, tem 57 anos, dois filhos e já netos. "Aqui, 99 por cento das pessoas são trabalhadores. Você vê todo o mundo lutando pela vida."

Ana já vai indo, e os rapazes já vêm descendo. Junto ao carro que bombava música, um dos caras tinha cruz ao pescoço e garota ao lado, talvez um chefão do poder paralelo, talvez não. Certo é que William quer entrar numa van para descer o morro o mais rápido possível.

Este fim-de-semana pós-tomada do Alemão não é a melhor altura para tentar meter o nariz entre o poder paralelo. Eles não estão a querer e William muito menos.

Já lhe chega de prisão, como Ellen vai contar.

Super-Ellen na praia

A TV francesa foi à sua vida. Nós apanhamos uma van para a praia.

É programa de domingão mesmo, na Rocinha: missa, mercado, praia. A van leva dez minutos até ao areal de São Conrado. Do lado direito, o Intercontinental que em Agosto foi tomado por gente da favela, incluindo o próprio chefão Nem, segundo as notícias. Ao fundo, o morro, formidável, com uma cintura de neblina.

Para bem dos caras-pálidos chegados do Inverno, o céu ficou encoberto, e mesmo assim vai dar escaldão.

Na praia, o paredão está todo grafitado e toda a gente parece vinda da favela. Pele escura, roupa barata, rodas de gente com lancheira. Nada de patricinhas de Ipanema, cabelo liso, um certo enjoo. Nada de surfista de olho azul.

William pára num guarda-sol, cumprimenta. Uma rapariga volta a cabeça para o olhar, mas nem um sorriso, implacável.

"Ellen, a minha mulher", apresenta William, cabisbaixo.

Ela levanta-se para nos receber, ignorando-o. "E essa é a rainha", diz William. Seis anos, caracóis pelas costas, biquíni-tigreza. "Cumprimenta, Laura", diz a mãe.

São lindas, mãe e filha.

Ellen não quer ser fotografada de forma alguma, mas não se importa de falar. Parece exactamente aquilo que vai parecer depois de muita conversa: uma super mulher de 24 anos, que sabe exactamente o que quer e não quer. Não quer baile funk, não quer sujeira, não quer má-educação, não quer nem ouvir falar em tráfico, não quer a Rocinha de jeito nenhum.

Também não quer sentar na areia, por isso agarramos em duas cadeiras de plástico e levamos para a beira-mar, um olho sempre em Laura, que a maré puxa.

"Eu conheci o William quando tinha 13 anos. Ele tinha 28. A gente se conheceu num curso de inglês na própria Rocinha. Namorámos escondido uns meses, mas depois o meu pai descobriu." William não só era muito mais velho como já tinha um filho.

Laura corre do mar com um copo de plástico, para mostrar à mãe os girinos que apanhou. Doce mas firme, a mãe diz: "Tem de pedir licença para interromper a conversa, entendeu?" Ela acena que sim. É uma rainha muito bem-educada. E volta correndo para o mar.

"Eu sempre deixei claro para o William que eu não gostava da Rocinha, do tráfico, da falta de higiene, do estilo de vida. Apesar de eu ter sido criada na Rocinha, meus pais nunca me mostraram a realidade lá fora. Eu não era uma garota que andava solta. Sempre fui educada da escola para casa." A realidade da rua chegou com William. "Ele conhecia muitas pessoas que partiram para o outro mundo, amigos criados com ele que estão na vida do tráfico. A gente ficou junto e ele começou a ingressar na vida política, a se candidatar à associação de moradores." Para crescente temor de Ellen. "Sempre alertei ele dos perigos, do próprio tráfico se envolver."

Laura vem pedir à mãe para pedir ao pai que tome banho com ela. Ellen chama William, que está de pé, a falar com amigos: "Já tomou banho com sua filha?" E ele vai mansinho, de mão dada com a filha.

Ellen semicerra os olhos, fica a observá-los. "Ele começou a chamar o poder público para dentro da comunidade, pedindo melhor qualidade de vida para os moradores. Aos 16 eu engravidei da Laura, ainda estava estudando. Ele ganhou novamente a eleição para a associação de moradores. Quando tinha operação policial, ele denunciava os maus policiais que faziam busca em casa das pessoas. Com isso, recebia muita ameaça de morte, o que colocava em risco a vida dele e da família. Muita ameaça de morte, telefonema, cartas."

O governador do Rio era então Anthony Garotinho, recentemente processado por lavagem de dinheiro e corrupção.

"William pediu ao Garotinho para que não deixasse o caveirão [blindado da polícia] entrar, atirando. E para que quando a polícia viesse, viessem também os direitos humanos para ajudar famílias inocentes. Com isso tudo, o Garotinho não gostou, tiveram uma discussão e ele ameaçou o William de que podia acabar preso por desacatar autoridade. Aí, tinha escutas telefónicas, e um ex-presidente da associação de moradores acusou William de ter relação com o tráfico. Então o William foi preso em Fevereiro de 2005. E eu com a minha filha, que não tinha completado um ano. Ficou nove meses preso."

Andou de uma prisão para outra, até Niterói, do outro lado da baía de Guanabara. "Só foi julgado e inocentado depois de muitos "habeas corpus". Era uma prisão política, porque ele atrapalhava os planos desse governador. Até os polícias que o prenderam sabiam que ele era inocente."

E dos mais experientes repórteres de crime à vereadora do PSDB Andrêa Gouvêa Vieira, com quem hoje William colabora, o que mais se pode ouvir é: "Se você está com o William, está bem." Várias pessoas, separadamente, disseram o mesmo à Pública.

Lá está ele na água, a chapinhar com Laura. Mas a testa de Ellen continua franzida. "Eu peço todos os dias para a gente ir embora. Durmo e acordo triste. Tenho medo. Não só eu, a minha filha. Todo o dia a gente vê homem armado. Para mim, UPP ou não tanto faz, o que me importa é sair daqui. Não quero que a minha filha veja alguém sendo morto, ou que não possa sair de casa porque tem tiros."

Mas foi na Rocinha que William lhe montou um salão de beleza. "Faltam-me dois anos para terminar a escola. Tranquei um ano a matrícula para ficar com a minha filha quando ela nasceu, e quando ia retomar o William foi preso. Depois ele ajudou a montar o salão. Faço cabelo, depilação com linha egípcia, sou designer de sobrancelha..."

William e Laura vêm pingando, Ellen manda um subir o calção e a outra compor o biquini, antes de explicar os mistérios da depilação com linha, que não queima a pele e arranca pela raiz. "A semana passada fui atender a minha cliente principal, a Preta Gil, e também faço a sobrancelha do pai, o Gilberto Gil. Toda a semana ele faz comigo."

São quase vizinhos.

Num mês bom, Ellen tira 1500 reais (670 euros), que se juntam ao que William ganha como assessor da vereadora. "Eu amo ela, pagou os advogados quando o William estava preso. Ela não é classe média pobre, tem tudo para não se preocupar com os pobres, mas é uma pessoa humilde, carinhosa, com que você pode realmente contar. Uma pessoa muito verdadeira. Ela se tornou um exemplo para mim."

O primeiro lugar onde Ellen foi sozinha na vida, foi à prisão, para visitar o seu William. E quando saiu, ele não baixou os braços. "Ajudou muita gente quando era presidente da associação, ficou muito conhecido por ajudar as pessoas e por ter conseguido a obra da PAC."

Aquela que ontem começou por nos mostrar, orgulhoso, mas sem clamar mérito próprio. "Foi ele que pediu a obra do PAC ao governador. O sonho dele era ver a melhoria da comunidade. O governador perguntou o que ele queria e ele falou: "Quero duas coisas, ampliar o projecto do PAC aqui e que se torne meu amigo." E aí, foi feito." Entretanto, continuam a morar na mesma casa da Rocinha, onde Laura não tem quarto. "A gente não vive miserável, mas está-se apertando."

É hora de ir. A mãe de Ellen torceu o pulso no mar. Ellen quer ir ajudá-la a tomar banho, e depois vai dar banho a Laura. Agarramos as cadeiras, voltamos à roda de gente. Ellen organiza tudo, põe creme no cabelo de Laura para desembaraçar a areia. Ela segura-se no pai e aguenta, fazendo caretas.

Anda numa escola da Gávea, na Zona Sul, e essa semana teve programa com dormida na escola. "Gostou do acantonamento, filha?", pergunta William, agarrando as mãozinhas dela. Ela acena que sim e sorri.

Ellen fala: "William, contei que o meu sonho é sair da Rocinha." Ele suspira. "Já teve um sonho William?", insiste ela. E soletra: "Vo-cê já te-ve um so-nho?" Ele diz que sim: "Meu sonho é ser Presidente da República. Não. Meu sonho é ser pessoa de bem."

Depois, como um miúdo, mostra-nos a música favorita no telemóvel, "Quando cheguei à Rocinha não tinha parabólica..." E canta: "Pááárabólica!" William, ex-DJ da Rocinha. "Em 1986 eu já estava em baile funk." Ellen ri: "Em 1986 eu estava nascendo...." Ele remata, imbatível, para nós: "Em 1986 eu já estava falando com o pai dela para ele fazer uma pessoa especial para mim." E canta, para ela: "Você nasceu para mim, eu nasci para você..." Ela não se desfaz: "Pára William."

Ele ri para nós.

Foi candidato pelo PRB do evangélico Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, fundador da IURD.

"Um dia vou ser o primeiro presidente negro do Brasil. Lula me chama pelo nome quando me vê. [Imita a voz rouca de Lula]: "Oi William, tudo bem?""

Ellen explica à filha que o girino precisa de água salgada. William olha para ela e depois mostra no telefone: "O dia mais importante da minha vida..." É uma foto do casamento com Ellen.

Também tem foto com Gilberto Gil e Lula.

Subimos a rampa. O morro recortado na neblina. Cada domingo na praia, uma catarse da pobreza. Como beleza ajuda a não explodir.

Churrasco e jogo

Vamos a pé, chinelando entre os condomínios fechados de São Conrado, porque Laura e o priminho estão com fome e Ellen quer passar pelo McDonald"s do Fashion Mall antes de ir para casa. Hoje tem final do Campeonato Brasileiro, e William ainda a tentou convencer a ir ver o jogo do Fluminense, provável campeão, na casa de um amigo onde até vai ter churrasco, mas ela não quer.

Programão de domingo na Rocinha: missa, mercado, praia e futebol.

No Fashion Mall, a burguesia tem cabelo liso, roupa cara, mala de marca. Tudo brilha e cheira, e está a 22 graus, ar condicionado.

Ellen e as crianças saem com saquinhos de batata frita, e vamos até à paragem da van que os deixará em casa. A nossa direcção é outra, a pé mesmo até à Rocinha, metendo por umas vielas cá em baixo, e depois por uma rua de botecos.

William empurra uma porta. Há um corredor e uma mulher de meia idade lavando o chão de um quarto. Trepamos umas escadas e lá em cima surge uma lage, ou seja, um terraço, meio-partido, cheio de tralha, cercado de cimento, zinco, cabos emaranhados, mas ao ar livre.

O anfitrião chama-se Marconi. É um branco, pálido e alto, com uniforme do Fluminense. Improvisou uma aparelhagem puxando fios lá de baixo, e mais um flat screen, empoleirado. Marvin Gaye canta Sexual Healing pelas colunas, e deve ouvir-se até São Conrado. Marconi está a tentar acertar a imagem com um seu amigo mulato, de boné e calção. Há bacias cheias de carne e asas de frango ao lado do churrasco. Há saladinha de feijão coberta, à espera. E toda uma arca de cerveja gelada.

De repente rebentam tiros. "São fogos", explica William. Os jogadores estão a entrar em campo e neste terraço da Rocinha a atmosfera vai aquecendo. Sobem raparigas, vizinhas, amigas, família. A bela Cristina, de alça e calção preto, com duas jarras de cachaça misturada com leite condensado e fruta. Quer que provemos, mas primeiro atira-se nos braços de William.

O cunhado dela, Adriano, segurança em Copacabana, senta-se num banquinho e lê a manchete do Globo: "Polícia e Marinha têm tudo pronto para tomar Rocinha." Comenta: "Tomar... Só se for do tráfico, que é quem domina tudo." E isso será bom?, pergunta a repórter. "Com certeza. Já deviam ter tomado."

Adriano é filho de nordestinos da Paraíba, está com 26 anos, todos vividos aqui. Casou com a bela Ângela, irmã da bela Cristina, têm um filhinho, compraram casinha própria na Rocinha. "A cada ano as casas estão-se valorizando, e com a saída do tráfico mais. Vai-se valorizar 50 por cento."

Mais um argumento em prol das UPP.

E cadê o tráfico, Adriano tem visto? "Não, parece que ele botou uma lei aí para não estarem se expondo muito." Ele, o Nem? "Isso, o chefe. Antes de acontecer isso no Complexo do Alemão, você via os caras com os fuzis."

A imagem da TV já estabilizou. Todo o mundo se senta a ver o jogo, menos quem está de serviço ao churrasco, no canto oposto.

Entretanto, o terraço encheu. Além das belas irmãs, uma grávida mulata de sardas, com um filho lindo, que vai jogando futebol no meio das pernas de quem vê o jogo. Rapazes de cara amarrada, negrões de anel. O filho de Marconi, que se chama Yago, e também está com o uniforme do Fluminense, e é um pré-adolescente quase ruivo, que parece saído daquela pintura de Manet com bolas de sabão. Quando o fotografam, olha a câmara firme e oblíquo, como se nunca tivesse feito outra coisa.

Ao intervalo, vem já som para dançar: "Coisa linda / muito prazer / hoje você vai ser minha mulher / esse corpo me pertence / eu vou pegar você." É só o começo, leitores. Aguardem.

A mãe de Marconi sobe às alturas, e já vem sambando: Helena, 62 anos, empregada doméstica de uma família portuguesa que vive no Leblon há décadas. Adora-os. "Já me aposentei e não tenho coragem de ir embora." Mas até lá passou muito. "Passei até fome por ele." Aponta o filho, que sofre a ver o jogo. "Essa é minha casa, paguei com muito esforço. O pai dele nunca deu um ovo para mim."

"Gooooooool!!!!!!" Do Fluminense, que não ganha o campeonato há 26 anos. Marconi chora, encostado ao cimento. Chora-se só de o ver chorar. Todo o terraço à volta pula e ele chora.

"Rio, rio, rio / rio para não chorar", escreveu Carlinhos Brown. Eles riem e choram, e pulam. O churrasco arde. Sai carne tostadinha. Sai cerveja gelada. Pertinho do céu, tão pertinho que olhem só: o céu está a desabar.

Então os homens correm a cobrir ecrã e aparelhagem com plásticos, as mulheres correm com os filhos para os degraus onde há um pedacito de telheiro, e a chuva bate no cimento espirrando para todo o lado.

Quando o jogo acaba, confirmando o Fluminense como campeão, William pega em Marconi ao colo e levanta-o no ar. Marconi berra e chora e ri. Abraça-se ao filho, à mãe, à mulher. Vai lá abaixo e volta com uma taça gigante.

O jogo é mesmo aqui. O centro do mundo, aliás. Favela da Rocinha, São Sebastião do Rio de Janeiro. E a partir de agora é funk à solta, como o diabo nos sertões.

As mulheres jogam a chinela fora e dançam na chuva, descalças, com as crianças no chão, com as crianças no colo, e pelo menos uma dentro da barriga. Apoiam as mãos nos joelhos, flectem as pernas e ficam num vaivém de bumbum, sacudindo o cabelo da cara, rindo para quem estiver atrás, colado, irmã, marido, cunhado, filho, vizinho.

"Tá difícil de controlar / tou doidinha para te dar / quero-te / quero-te / quero-te", diz o refrão. Marconi tira a camisa do Flu e veste-a à mulher. Refrão seguinte: "Você me quer? Então me chupa / me chupa / me chupa." Marconi beija a mulher, todo o mundo acelera na chuva.

Cai a noite. Acende-se uma luz. Baile de sombras na parede. A pele brilha, a água salta nos pés. A bela Cristina agarra todo o mundo para dançar: a mãe de Marconi, as crianças, os repórteres. É recepcionista num laboratório em Ipanema, de segunda a sexta, das 9h às 17h. Quem a conhece assim, lá? Aqui é a casa dela, esta "bagunça", esta música. Lá no Varandão, ela não vai. Acha que "bagunça" é aqui mesmo, com família e amigos, em casa. Está com 33 anos e dois filhos, um já adolescente, quem diria. Parece tão menina como a irmã, que tem só 21.

E se agora as duas irmãs descerem numa pausa, não vão falar com grande entusiasmo da vinda da polícia. "A gente fica preocupada por causa dos filhos", dizem.

Quanto a UPP, Ângela diz que quer, mas Cristina quer esperar para ver como fica no Alemão. "Será que com UPP a gente vai poder ficar até de madrugada fazendo essa bagunça?"

E o filho adolescente, Filipe, que tem pinta de muita rua: "E depois criança não vai poder andar de moto, nem ser carregada no mototáxi..."

"Festa em Lage até vai poder acontecer", diz Ângela. "Mas só até dez da noite. E o churrasco da gente começa às oito horas e às vezes de manhã a gente ainda está dançando." Cristina reforça: "Nas UPP"s tem lei do silêncio a partir das 22h, e a gente faz festa em dia de semana. Aqui, todo o mundo trabalha, mas todo o mundo curte. E sempre me senti livre, o tráfico nunca me cobrou nada."

Filipe está tão céptico quanto a mãe. "Não vamos mais poder brincar na rua..."

Cristina remata: "UPP não é um projecto ruim, mas para UPP dar certo tem de acabar com policial corrupto. Não pode entrar em casa da gente, ver computador e achar que a gente já é traficante."

Neste quartinho onde estamos apertadas, mora Marconi, a mulher e o filho. A mãe de Marconi mostra o quartinho ao lado, que é o seu. Um tudo-em-um, desde a geladeira à Nossa Senhora de Fátima que alguém lhe trouxe de Portugal.

Lá em cima, ao ar livre, dançam tudo o que aqui não tem espaço nem luz.

William foi levar o fotógrafo à lage do Carlinhos para uma foto nocturna. Volta de guarda-chuva na mão, com as suas chinelas de chuva. Num dos pés tem seis dedos. "Vou dar um ao Lula", costuma dizer. Porque Lula só tem quatro dedos numa mão. a

alexandra.lucas.coelho@publico.pt

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