No mundo fantástico de Pancho

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Rui Gaudêncio

São peças de arte africana que influenciaram a própria arte do arquitecto e pintor português Pancho Guedes. Reunidas ao longo de uma vida, entre Moçambique e a África do Sul, podem ser vistas numa exposição em Lisboa

"Tudo são sonhos". Ou melhor dito: "Tudo vem dos sonhos". Eles substituem a inspiração. Da mesma forma que a confusão toma o lugar da criatividade.

Bem-vindos ao mundo sem clichés de Pancho Guedes. É ele o dono dos sonhos e dessa confusão benéfica. E é ele quem fala deles e se revela enquanto conversa numa das salas da sua casa na Eugaria em Sintra, onde partilha o tempo com um prédio que tem em Alfama.

A casa seria espaçosa não fosse o espaço estar cheio de obras da sua colecção de arte africana - será delas feito o ar que a casa respira?

Não estão à vista todas as 500 peças da exposição "As Áfricas de Pancho Guedes - Colecção Dori e Amâncio Guedes", comissariada por Alexandre Pomar e o antropólogo Rui Mateus Pereira, organizada pela Câmara Municipal de Lisboa, e que pode ser vista no Mercado de Santa Clara, em Lisboa, a partir de dia 17 e até 8 de Março de 2011.

Mas cada uma conta uma história. E, todas juntas, contam parte da história da vida de Pancho Guedes, nascido em Lisboa em 1925 e que cedo foi para São Tomé e Príncipe, onde o pai foi colocado como médico, antes de o ser em Moçambique, onde Pancho se fixaria mais tarde, passando também pela África do Sul.

O artista deixou-se moldar por essas obras, ele que moldou, com os 25 estilos arquitectónicos que catalogou, a imagem da cidade onde habitou: Maputo, quando era Lourenço Marques. Desde as curvas e os olhos metálicos da "Parede Convulsiva" que projectou em 1954 para uma sala tranquila do Hotel Polana, ou o bar, entretanto demolido, do mesmo hotel, e para o qual pintou um mural influenciado por um quadro de Paul Klee, à casa de plataformas e chaminés tubulares e em forma de chapéus de bruxa, a que deu o nome de "Casa Avião" (1951), passando pelo edifício "Prometheus" (1951), baseado nos desenhos de Picasso, ou ainda a "Padaria Saipal" (1952), curvilínea, que os trabalhadores interpretaram como sendo em forma de pão saloio de Portugal - "Eles diziam que eu tinha feito um pão português. Eu já não sei", conta.

Entre os mais emblemáticos, elege o edifício de apartamentos "Leão que Ri" em que imaginou um corpo de leão sobre dez pequenas bases e que identifica assim: "Como sendo a minha casa, o meu túmulo, como sendo eu mesmo". Foi isso que escreveu no catálogo da exposição que juntou, no ano passado, as suas obras numa retrospectiva "Pancho Guedes: Vitruvius Mozambicanus", no Museu Colecção Berardo em Lisboa, a primeira em Portugal.

Arquitecto, pintor, escultor, patrono de outros artistas quando a Arte Moderna Africana procurava um caminho nos anos de euforia das independências africanas e ainda não se sabia se o fim da arte tradicional daria lugar à modernidade no continente. Além de artista multifacetado, teve um papel social com as creches e escolas que construiu nos caniços (bairros mais pobres em volta da cidade) e, mais tarde, com a primeira escola multirracial que fez na Suazilândia mas que servia a África do Sul. Foi professor e director na escola onde se formou, a Faculdade de Arquitectura da Universidade de Witwatersrand, África do Sul, país para onde se mudou, depois da independência de Moçambique em 1975.

Casal de coleccionadores

E, desde o princípio, foi coleccionador, com a mulher, Dorothy Ann Phillips, falecida, mas sempre presente nas conversas. Por vezes gostavam de coisas diferentes mas coleccionavam sempre em conjunto. E foram enchendo apartamentos e ateliers em Lourenço Marques com os objectos de arte popular (encontrada nos bairros da capital moçambicana), artesanato, objectos tradicionais e artes plásticas, que mais tarde encheram dois camiões na viagem de Moçambique para Joanesburgo.

Foi Dori quem trouxe de uma visita ao Gana os pesos de ouro, em bronze. Foi Pancho quem trouxe da Nigéria, onde trabalhou, peças de arte Yoruba. Nesta exposição, também as saias das mulheres Ndebele da África do Sul; as máscaras Lomué, de Moçambique, feitas pelos meninos para a cerimónia ritual de passagem à idade adulta; a arte funerária Mbali de Angola; o busto de Salazar feito "por um maconde qualquer", as máscaras e estatuetas de arte maconde que inspiraram outras depois feitas por Pancho. E, num lugar especial, os quadros "surpreendentes" que um dos seus quatro filhos, Pedro Guedes, pintou quando tinha "nove anos e quatro meses".

"É uma colecção plural e diversificada, uma colecção de colecções, mas em especial um acervo singular e

idiossincrático, associado à própria actividade criadora de um grande arquitecto", lê-se no texto do comissário Alexandre Pomar no catálogo. 

É o próprio Pancho Guedes que evoca o "diálogo incessante com muitos passados" quando fala de como brotam as ideias para a sua criação.

Na descoberta de objectos de arte  que extravasou as fronteiras de Moçambique, terá também confirmado a ideia, também por ele expressa, de que todas as pessoas são criativas, e de que "o criador é sempre um mágico". Na sua colecção, estão pintores conhecidos mas muitos desconhecidos, e até anónimos, cujas estátuas, desenhos ou quadros também o influenciaram. "As inspirações são assim, de sonho, vagas, baralhadas. Tudo é muito importante." Como tudo o que se verá nesta exposição. "Todos nós fabricamos as nossas coisas de muitas outras coisas. Tal e qual como escrevemos tudo o que antes lemos", acrescenta. Também a arte africana está por trás da sua arquitectura, como está a arquitectura de Le Corbusier, Gaudí, Frank Lloyd Wright e outros, que o influenciaram nos tempos de estudante.

Artistas nos tempos livres

Abdias Muchlanga era bate-chapa e pintava carros com spray, mas pintava também quadros que fascinaram Pancho, como aquele que mostra o ataque de um hipopótamo sobre uma canoa no Rio Limpopo.

Filipe esculpia pratos de madeira que as mulheres usavam no mercado de Inhambane, nunca mais vistos, desde que "a revolução industrial chegou a Moçambique depois da II Guerra Mundial e cuspiu sacos de plástico coloridos".

Alberto Mati era empregado num dos apartamentos do "Leão que Ri" mas começou a fazer desenhos "absolutamente extraordinários", diz o arquitecto que depois mandou bordar alguns e dos quais fez variações.

Numa cidade virada para as artes, conheceu também um empregado do bar do Clube de Lourenço Marques, que já pintava no Núcleo de Artes, por onde passaram outros artistas moçambicanos e portugueses, e que se tornou num dos mais procurados: Malangatana.

Dezassete quadros dos três primeiros anos de Malangatana Valente Ngwenya (1959-1961) como pintor constituem um dos principais núcleos desta mostra e aquele que melhor ilustra o papel de Pancho como impulsionador da arte contemporânea africana dos anos 60.

Haverá o friso que conta a história de uma senhora e do seu amante que comunicavam através de uma carta no chapéu do marido daquela. E o primeiro quadro que o arquitecto comprou a Malangatana: autobiográfico, porque representa as duas mulheres do pai do pintor, uma delas sua mãe. "Gostei imenso da maneira como ele tinha imaginado o quadro, de uma forma extremamente sofisticada. Ele que era um miúdo com muito pouca instrução, andava a fazer a quarta classe nas missões, andava na escola comercial à noite, era apanha-bolas [do ténis], empregado e cozinheiro."

Nesta exposição, ao lado de Malangatana, de cuja obra Pancho Guedes organizou exposições em vários países nos anos 60, serão mostrados outros artistas que o arquitecto levou ao Congresso Internacional da Cultura Africana em 1962, em Harare, e que com ele desenharam e trabalharam: Abdias Muhlanga, Augusto Naftal, Mitine Macie, Alberto Mati estarão assim de novo reunidos, pela primeira vez desde 1962.

Também haverá os bordados dos magalas africanos, anónimos, que bordavam o que viam nas sessões ao ar livre de "westerns" organizados pelos militares portugueses do quartel frente à casa onde vivia Pancho e Dori. E quadros de pintores, moçambicanos e portugueses: José Júlio, Álvaro Passos, Rosa Passos, pintora naïve, e o filho, Álvaro Passos, pintor surrealista - foi ele quem deu à mãe a primeira caixa de tintas com que ela começou a pintar aos 65 anos.

As histórias que Pancho Guedes inventa e conta a si próprio, no processo criativo, são para o divertir, não para o inspirar. Nesse mundo, várias histórias podem desembocar num mesmo desenho ou numa escultura de formas arredondadas. Tudo isso surge, como que por encantamento, do que sonha ou vê o artista. O nome "Pancho" vem dos cruzamentos portugueses e espanhóis na família. Se o irmão era Pepe, por que não escolheria ele ser Pancho?

Foi-o desde criança mesmo se o nome de registo deste "tipo extraordinário que acontece ser português", como o descreveu o arquitecto britânico Peter Cook, é: Amâncio Alpoim Miranda Guedes. Entre estes quatro nomes, usa várias combinações.

"São todos personalidades diferentes. Existe esta ideia de que somos só um, mas somos uma multiplicidade de pessoas", diz antes de lançar uma discreta gargalhada. "A confusão é rica." E não é para a criatividade. "A confusão é rica para a confusão."

Mas prefere Pancho. É nome mais alegre e assenta bem ao arquitecto de sorriso fácil e olhar de constante encantamento perante o que o rodeia. Como quem olha tudo pela primeira vez e descobre, antes de transformar com fantasia e liberdade.

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