Os tudólogos

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Os tudólogos não são os especialistas nos Tudor, que os há também; são os especialistas em tudo. O vocábulo vai entrando na língua. Dos dois lados do Atlântico, há na Internet centenas de ocorrências da palavra "tudólogo". No Brasil, aplica-se em especial ao que se arma em bom e "fala sobre tudo". No resumo da telenovela Alta Estação, em 2007, lia-se: "Marcos vai ao banheiro e Flávia tem uma ideia para se livrarem do "Tudólogo". (...) João Pedro e Flávia gargalham imaginando o que o Tudólogo deve estar falando para Clara."

Numa caixa de comentários, o internético The Rock escreve a sua experiência de vida com um tudólogo com quem trabalhara: "Não importa o que você falasse: ou ele já tinha feito ou conhecia alguém que fez." Noutra caixa, Carlos F. escreveu: "Já trabalhei com um cara que era "tudólogo" também, às vezes chega a ser engraçado, mas tem hora que enche o saco..."

Cacu Reis, do blogue Centro de Estudos Tudológicos de Aracaju, define com rigor: "Tudologia é a ciência de dar pitaco em tudo, independentemente de ter ou não qualquer fundamentação. O tudólogo é a personificação da máxima de que o "sábio fala porque tem algo a dizer, o tolo porque tem que dizer algo"." Chamar tudólogo pode ser um insulto, como se lia num post de Roberto num blogue sobre bola: "Você me mandou estudar e disse que eu estava falando merda, que era "tudólogo"; então eu te chamei de "imbecil"."

O tudólogo pode ser bom. Eis como se descreve na Internet um herói de banda desenhada criado em Itália em 1982: "Martin Mystère é um verdadeiro "tudólogo": é laureado em Antropologia, fez diversas especializações (...), adora deixar seus interlocutores espantados com sua sabedoria", mas "está longe de ser um pedante ou vaidoso académico." Do lado de cá do Atlântico encontrei uma única acepção positiva de tudólogo. Escrevendo com saudade de Eduardo Prado Coelho, a autora Patrícia Reis disse em 2008 no seu blogue: "Eras o meu tudólogo."

Em Portugal, o conceito é usado quase em exclusivo sobre pessoas que aparecem nos media. Li num bloque que o tudólogo é um "sabichão" que está "principalmente na TV". Embora os autores dos bloques a usem menos, a palavra surge com frequência nas caixas de comentários. Um anónimo escreveu: os "tudólogos falam sobre tudo, mas sem perceberem de nada". No blogue Arrastão alguém escreveu: "É certo que o homem não é economista, é tudólogo, mas pelo menos esse não se pode queixar - passa a vida na televisão." Noutra caixa, Daniel Sobreiro refere-se aos que passam "as noites na TV a asnear, a fingir que se tem sempre razão e a fazer figuras tristes de tudólogo". Os "formados em generalidades" constituem uma "estirpe muito em voga", escreveu Plasticman noutra caixa de comentários. Embora menos, também se lhes chama "palpitólogos" e "achistas", os que "acham" isto e aquilo.

Julgo que quase só na Internet encontramos referências aos tudólogos porque os media "legítimos", sendo o lugar de eleição dos próprios tudólogos, não querem legitimar o conceito; mas também por haver um certo ressabiamento de quem, nos blogues, gostaria de aceder aos velhos media, como já aconteceu a alguns dos actuais tudólogos e até deputados, que começaram por debitar o seu "achismo" na Internet.

Em França, onde as realidades vernáculas se elevam facilmente ao estatuto da grandeur cartesiana, chama-se aos tudólogos os "editocratas", comunicadores que "falam de (quase) tudo dizendo (realmente) o que quer que seja", como escrevem os quatro autores do livro Les Éditocrates, de 2009. Enquanto o conceito de tudólogo refere ironicamente um suposto conhecimento universal, o de editocrata coloca a questão onde deve estar: a detenção do poder de editorializar a realidade, de a pôr na agenda mediática.

Os tudólogos franceses têm uma presença ainda mais alargada do que os portugueses, porventura porque o sistema mediático arrancou décadas antes: Alain Duhamel, um dos analisados no livro, começou a "editorializar" na imprensa em 1963, antes de passar para a rádio, a TV e os escaparates das livrarias. Leva mais uma década do que Marcelo Rebelo de Sousa. No seu conjunto, os editocratas franceses falam "o tempo todo, de manhã à noite, da noite à manhã, de segunda a domingo". E "nunca se calam". Quem "fizer a aposta um pouco louca de atravessar uma semana inteira sem tropeçar em Jacques Attali ou Bernand-Henri Lévy em todos os cantos dos media, saberá, pela amarga experiência do fracasso, que tal desafio é impossível de vencer".

Segundo os autores, esta "elite" por ninguém eleita formata o pensamento consoante a onda do momento e opina sobre tudo. Os editocratas "podem, com a mesma segurança, dissertar hoje sobre a crise financeira, amanhã sobre o desaparecimento de Michael Jackson ou a urgente necessidade de economizar água da torneira, e ainda, depois de amanhã, sobre a guerra do Afeganistão". Muito dados ao "ar do tempo", tendem a partilhar as mesmas "ideias", com pequenos matizes, embora se digam "destruidores de tabus".

Vai-se pelo mesmo caminho nos media portugueses. A televisão precisa de talking heads, por não ter para mostrar outras imagens, mais baratas, por não ter mais reportagens, notícias, documentários. Recorrem aos mesmos tudólogos a toda a hora, fazendo do comentário entretém e passatempo. Os canais de notícias como a SICN, a TVI24 e a RTPN abundam em "tudólogos encartados", como lhes chama um blogue, mas os generalistas também os utilizam para que, com os seus comentários, reorganizem ideologicamente o mundo caótico das notícias. Os tudólogos mais referidos pela blogosfera são Miguel Sousa Tavares, Marcelo Rebelo de Sousa, Clara Ferreira Alves, José Pacheco Pereira, Ricardo Costa, Moita Flores e Pedro Marques Lopes, este uma personagem que foi invadindo diversos media e a quem, de facto, nunca ouvi uma única ideia interessante. Segundo o leitor Q num blogue, ele "transformou-se em vedeta nacional de um dia para o outro, desde que foi recomendado por Fernanda Câncio, é mais um especialista em tudo, ou "tudólogo", a acrescentar à lista nacional". O destino cumpriu-se: juntou-se aos outros tudólogos de Eixo do Mal, o insuportável programa de má-língua política da SICN.

Alguns internéticos distinguem entre os tudólogos do género de Pedro M. Lopes e os especialistas que falam do que sabem ou que se preparam estudando as matérias e não alinhavam umas "bocas". Como escreveu Isabel, numa caixa de comentários: a opinião dum conhecedor como Rui Ramos "deveria valer a de cem mil tudólogos que falam e escrevem sem fundamentação, só porque sim e só porque lhes facultaram o poleiro de onde debitam". A praga do ruído tudólogo nos media acaba, assim, por prejudicar a atenção por quem realmente pode acrescentar o conhecimento e o raciocínio de leitores e espectadores. Os tudólogos parecem entreter, mas afinal contribuem para um generalizado cansaço noticioso das pessoas, uma irritação latente para com a vida colectiva.

Como Isabel, o internético Ricardo Valente fez uma sábia observação, referindo que os tudólogos são um sinal da liberdade de expressão: "Lê-se dia sim, dia sim pela Internet (...) a crítica ao "tudólogo". Dezenas e dezenas de vezes Marcelo Rebelo de Sousa é acusado por... "falar sobre tudo"", mas "quem pensa assim é que está muito mal. Alguém conhece alguma razão minimamente compatível com as ideias de democracia e liberdade que justifique que uma pessoa se dedique a um só assunto e que, de preferência, opine pouco, e fique caladinha?"

Os tudólogos são, digo eu, um preço a pagar pela liberdade e pela necessidade dos canais de TV de encher 24 horas por dia. Para beneficiarmos de um bom tudólogo ou especialista, que contribua com qualidade para a esfera pública, precisamos de passar por cima das manadas de tudólogos que poluem o "media ambiente".

Diderot, no século XVIII, estabeleceu o "achismo" e a crítica como criação de espaços de liberdade. Mas também disse que o aparecimento da crítica tinha tornado melhores os melhores, mais exigentes consigo, enquanto "as pessoas sem talento, pelo contrário, se tornaram atrevidas".

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