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Há algo de muito especial quando se ouve alguém como Márcia Santos. Tudo bem, até sabemos que canta com o Real Combo Lisbonense, mas aqui, depois de deixado cair o apelido nesses bailes dos anos 50, chega até nós quando ainda temos os ouvidos impolutos, a cabeça vazia de ideia pré-concebidas sobre o que é ou deve ser a sua música, ainda uma folha em branco para preencher com o que temos à mão.

E à mão apetece ter pouca coisa. Apenas aquilo que, fazendo jus a estas 12 canções, consiga conter num mesmo traço uma fragilidade de desabafos adolescentes à guitarra acústica e uma beleza madura de quem bebeu abundantemente as águas inspiradoras servidas pela música de Will Oldham, Bill Callahan ou Stina Nordenstam, e percebeu que as suas propriedades não eram diuréticas. Reter tudo, reter sempre, reter cada vez melhor. Márcia parte da fórmula mais estafada que existe na música: uma voz e uma guitarra. Qualquer um junta estas duas e faz uma canção, certo? Nem por isso. Porque uma canção não merece reclamar esse estatuto até que um terceiro a cante. E as de Márcia pedem vozes por cima do canto dela. Não para a abafar, mas para que ressoem devidamente em cada ouvinte. O complicado quando alguém se propõe acrescentar mais um disco de uma estirpe tão sobrepovoada quanto a Índia é conseguir que as canções nos convençam que são essenciais à nossa existência, ao mesmo tempo que são bem-sucedidas no ziguezaguear dos clichés entre o patético e o pretensioso, a lamechice pura e a intelectualidade de pacotilha. Márcia sobrevive sem nódoas à travessia desse pântano de armadilhas, tendo do seu lado uma arma poderosa: a voz equilibrada naquele limbo em que uma entrega mais desabrida seria coisa para concursos de televisão e uma contenção mais firme reduziria as suas palavras a uma sucessão de sussurros. Mas se é, acima de tudo, a sua voz que faz com que "Dá" dê vontade de ouvir repetidamente, é também graças às suas boas alianças musicais que o disco se vai redescobrindo sem perder o brilho inicial. João Paulo Feliciano, Sérgio Costa e Tomás Pimentel (que a conhecem do Real Combo Lisbonense também andam aqui), assim como B Fachada, Tó Trips ou Mariana Ricardo dão uma preciosa ajuda, mas sem tropeçarem naquele que é o maior bem deste disco: a forma como cada palavra saída de Márcia parece cair lenta e delicadamente em cima da cama musical que a espera.

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