A imensa sombra de Lenine, o imenso "obrigado" a Gorbatchov

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A utopia comunista é um sonho antigo, a sua concretização traduziu-se num pesadelo cruel. Por erros? Não - o mal estava, está, na ideologia. Archie Brown explica-nos porquê, e como, nas mais de 700 páginas de "Ascensão e Queda do Comunismo", um livro que já é uma referência historiográfica

É uma longa viagem pela mão de um guia sabedor. Uma viagem que começa na Sala de Leitura do Museu Britânico, em Londres, onde Marx passou grande parte do seu tempo, e nos leva a percorrer os caminhos da Rússia antes e depois de Lenine, antes e depois de Gorbatchov, e que por ora termina algures na China pós-Deng, ainda formalmente comunista. Pelo caminho passamos por todos os continentes e ao longo de um arco de tempo que cobre todo o século XX. É assim que Archie Brown, um académico de Oxford que dedicou a sua vida ao estudo do comunismo, nos conta a história da ascensão e queda de um sistema que, mesmo continuando a gerar ilusões, é na sua essência anti-democrático e opressivo.

Em muitos aspectos, esta é uma história feita de surpresas e improváveis reviravoltas, uma história que, como poucas, desmente o "determinismo histórico" elaborado por Marx. De resto, se o filho de um homem de negócios judeu que um dia, com o seu amigo Engels, escreveu que o "espectro do comunismo" pairava sobre a Europa regressasse hoje à Sala de Leitura do Museu Britânico dificilmente se reconheceria nos modelos protagonizados pelos cinco Estados comunistas que, neste início do século XXI, ainda sobrevivem: China, Vietname, Laos, Coreia do Norte e Cuba. Até pela sua distribuição geográfica. Nem sequer é certo que se identificasse com as seis características fundamentais que Archie Brown identificou como podendo caracterizar um sistema comunista: 1) o monopólio do poder pelo Partido Comunista; 2) a prática do "centralismo democrático"; 3) a posse não-capitalista dos meios de produção; 4) o predomínio de uma economia de planeamento central; 5) prosseguir o objectivo explícito de edificar o comunismo como meta derradeira e legitimadora; 6) a existência de, e a sensação de pertença a, um movimento comunista internacional. Porém, quando olhamos para a história e para experiência trágica do "socialismo científico", facilmente subscrevemos esta síntese de Archie Brown.

Como se chegou aqui a partir do utopismo ainda presente em Marx, para não falar de todos os que antes dele namoraram a ideia da igualdade absoluta que o comunismo um dia proporcionaria? A resposta passa por Lenine e pelo triunfo do seu partido na Revolução Russa de Outubro de 1917. Até porque, até ao final da década de 1980 e ao fim da URSS, tudo girou sempre em redor de Moscovo, ou com referência a Moscovo. De resto, se os comunistas se auto-intitularam "marxistas-leninistas" isso não foi por acaso: a sua doutrina que não era - não é - apenas uma variante do marxismo, antes forma um corpo indissociável quer da figura, quer dos escritos, quer da experiência, quer da influência duradoura de Vladimir Ilich Ulyanov, o nome verdadeiro de Lenine.

A culpa foi mesmo das ideias

O retrato que Archie Brown nos faz de Lenine é ao mesmo tempo seco e implacável. É o de um revolucionário que, mesmo entre companheiros, era tão autoritário como sagaz politicamente. A leitura, primeiro aos 14 anos, depois aos 19, após a morte do irmão, executado por envolvimento numa conspiração contra o czar, do romance "O Que Fazer?" (não confundir com "O Que Fazer?" do próprio Lenine) de Nikolay Chernyshevsky "inspirou-o para a vida", como o próprio reconheceu. "Grotesco" enquanto obra de arte, como o classificaria Isaiah Berlin, "O Que Fazer?" conta a história de um "homem novo" absolutamente empenhado na causa revolucionária e consegue fazer a distinção entre "nós" e "eles", uma distinção que Lenine acentuaria sempre. Mais: para Lenine os fins sempre justificaram os meios, isto é, os objectivos da Revolução não deviam ser prejudicados por considerações sobre o terrorismo (usado contra o Czar, por exemplo) ou sobre a repressão (mesmo que atingindo outros revolucionários, como sucedeu em Kronstadt aquando da revolta dos marinheiros).

"Lenine desprezava as ideias liberais que influenciaram a democracia social do Ocidente", disse-nos Archie Brown numa entrevista por email. "A sua doutrina, ideologicamente focada na tomada revolucionária do poder e na construção do socialismo, não admitia princípios como a divisão de poderes, pesos e contrapesos, um pluralismo político genuíno ou a responsabilização política".

Não surpreende, por isso, que, até pelo facto de o primeiro estado comunista ter sido criado na Rússia, um país de antiga tradição autocrática, o regime legado por Lenine fosse "altamente autoritário, mesmo totalitário entre 1930 e a morte de Estaline".

Ou seja, para Archie Brown "a culpa foi mesmo das ideias": "não se tratou de um caso em que boas ideias foram mal aplicadas - as ideias originais eram incompatíveis com uma democracia genuína". Por isso mesmo "nenhum Estado governado por um Partido Comunista se tornou numa democracia - até a própria União Soviética só se democratizou quando Gorbachev começou a abandonar o leninismo e a aceitar, entre outras coisas, o pluralismo político e a transferência do poder supremo dos órgãos do partido para os órgãos do Estado".

"Ascensão e Quedo do Comunismo" conta-nos, por isso, antes de tudo o mais, a história de como o movimento comunista não só tomou realmente forma na Rússia de Lenine, como quase toda a sua história está ligada à história quase paralela da ascensão e queda da União Soviética. Com enorme erudição e uma grande mestria na escolha dos detalhes que melhor ilustram o seu imenso painel sobre a história do comunismo, Archie Brown conta-nos como o leninismo se afirma como doutrina autónoma nas esquerdas socialistas e, depois, como o triunfo dos bolcheviques deu aos comunistas não só um exemplo a seguir ou uma retaguarda para se refugiarem, mas também lhe deu, ou impôs, uma liderança universalista. Entre as duas guerras a história do comunismo é a história de como Estaline sucedeu a Lenine e impôs a sua vontade quer na URSS, usando e abusando do "terror", quer ao movimento comunista internacional, forçado a uma obediência incondicional. A vitória na II Guerra - que Estaline crismou de "Grande Guerra Patriótica" - possibilitou a ascensão ao poder de mais partidos comunistas, primeiro no Leste europeu e na zona de influência de Moscovo. É interessante a forma como nesta obra se descreve a forma como os diferentes partidos comunistas chegaram ao poder "aos ombros" do Exército Vermelho e como, nos dois únicos países onde isso não sucedeu - na Jugoslávia e na Albânia os comunistas locais dirigiram lutas de libertação vitoriosas - isso possibilitou um grau de autonomia que, em poucos anos, levaria à ruptura com Moscovo. O mesmo sucederia, poucos anos depois, na China, onde a revolução encabeçada por Mao Tse-Tung também triunfaria longe da influência directa dos soviéticos, não tardando muito um divórcio que se transformaria no maior cisma da história do movimento comunista, pois as suas ondas de choque reflectiram-se em dezenas de outros partidos por todo o mundo.

O comunismo asiático (com a improvável companhia do comunismo cubano) revelar-se-ia contudo mais resiliente do que o comunismo centro-europeu. Quatro dos cinco estados onde o poder continua nas mãos de um Partido Comunista ficam na Ásia, o que Archie Brown pensa dever-se, antes do mais, ao facto de "o anti-colonialismo e o nacionalismo ter reforçado os movimentos comunistas asiáticos, exactamente o contrário do que sucedeu na Europa Central, sobretudo nos países que só se tornaram comunistas por força da presença do Exército Vermelho".

Mas Marx não se surpreenderia apenas com a singular geografia do comunismo contemporâneo: também ficaria surpreendido com o papel que as mais diferentes figuras históricas tiveram no seu desenvolvimento, muitas vezes, senão sempre, contrariando os determinismos económicos e sociais. Pelo menos na visão de Archie Brown que, de forma consistente, explica ao longo das mais de 700 páginas deste volume o papel de Estaline no totalitarismo dos anos 30 e 40, o papel de Khrushchev na desestalinização dos anos 50, o papel de Mao nos desvarios do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural, o papel de Fidel na opção cubana pelo comunismo, o papel de Dubcek na Primavera de Praga, por fim o papel de Gorbatchov em todo o processo que, entre 1985 e 1989, levaria ao fim inesperado e abrupto da União Soviética e do comunismo na Europa.

Mesmo figuras aparentemente tão apagadas e "cinzentas" como Brejnev podem conseguir um sucesso relativo, sobretudo se pensarmos que o seu objectivo principal era a manutenção do "status quo" nos países onde os comunistas estavam no poder e um progressivo alargamento da esfera de influência de uma União Soviética alcandorada ao estatuto de super-potência. "O segredo desses anos" - explicou-nos Archie Brown - "foi que Brejnev, Suslov [Mikhail Andreyevich, ideólogo e membro do Politburo da era Brejnev] e companhia reconheceram que ter ideias era perigoso, e isso explica quer a estabilidade do regime, pois nunca ninguém assumia riscos, quer a sua rotina quase aborrecida, parada".

Gorbatchov e as chaves  das reformas

Só que, "sob a superfície plácida vida política, começaram a surgir, sobretudo nos institutos de investigação, intelectuais com visões menos ortodoxas que, depois, seriam desenvolvidas durante os anos de Gorbatchov". Um Gorbatchov que, para o historiador, foi mais do que um "facilitador" de mudanças inevitáveis, foi um reformista convicto que provocou essas mudanças porque acreditava nelas.

Para compreendermos o papel determinante do "jovem" secretário-geral do PCUS (em 1985 Gorbatchov contava apenas 54 anos num altura em que os septuagenários dominavam o Politburo) é necessário compreendermos também a visão de Archie Brown sobre as reais possibilidades de mudança "por dentro" em qualquer um dos países do antigo Pacto de Varsóvia. Que, na sua opinião, eram nenhumas. No livro explica-nos como, com excepção da Polónia, os grandes movimentos reformistas que abalaram o bloco soviético nasceram sempre na cúpula dos partidos comunistas no poder. Foi assim na Hungria em 1956, com Imre Nagy a primeiro-ministro, e na Checoslováquia em 1968, com a "Primavera de Praga" a ser fruto, antes de tudo o mais, da acção de Dubcek. Já na Polónia, onde em 1956 chegara a haver um arremedo de reformismo quando Gomulka regressou à liderança, a sociedade civil sempre teve sempre mais energia e, sobretudo, mais autonomia, o que ajuda a explicar o sucesso do Solidariedade em 1980, pouco depois do papa polaco, João Paulo II, ter chegado ao trono de Pedro, em Roma.

Porém, salientou-nos Brown, "mesmo assim, os comunistas polacos acabaram por conseguir impor a lei marcial em Dezembro de 1981, reduzindo o Solidariedade a uma sombra do que tinha sido". O historiador lembra que o sindicato teve de passar à clandestinidade e "só voltou a ser uma verdadeira força política em 1988, três anos depois de se ter iniciado a Perestroika". Nessa altura já os tempos eram outros.  Ou seja, "as chaves para abrir as portas a quaisquer mudanças na Europa de Leste sempre estiveram em Moscovo". Durante décadas, onde quer que um movimento espontâneo ou uma vaga reformista ameaçasse a liderança dos soviéticos, estes nunca hesitaram em intervir - em Berlim em 1953, em Budapeste em 1956, em Praga em 1968, em Varsóvia em 1981. Até Gorbatchov. "Foi a sua chegada ao poder como secretário-geral do PCUS que permitiu libertar o caminho para a renúncia pacífica ao comunismo em toda a Europa de Leste", disse-nos Archie Brown. "As tropas russas foram mantidas nos quartéis mesmo quando os regimes caíam um atrás do outro em 1989, algo que antes era inimaginável. Antes os cidadãos de qualquer um desses países sabiam, até porque tinham aprendido à sua custa, que qualquer tentativa para derrubar mesmo os líderes comunistas mais impopulares nunca seria tolerada por Moscovo".

E como foi então que Gorbatchov permitiu uma abertura que acabaria por provocar o fim da própria União Soviética? A resposta de Archie Brown é taxativa: porque era um reformista, um reformista que evoluiu durante o próprio processo da Perestroika e que, ainda antes do fim da URSS, já nem sequer seria um comunista, antes um social-democrata.

Ou seja, o historiador desvaloriza todos os outros factores habitualmente associados ao fim da URSS.

Crise económica? "A URSS não estava em crise em 1985, e mesmo que estivesse sabemos como é fácil aos regimes autoritários manterem-se no poder mesmo quando os resultados económicos são péssimos, como em Cuba ou na Coreia do Norte".

A "guerra das estrelas"? "Gorbatchov sabia que a chamada 'Iniciativa Estratégica de Defesa' nunca estaria operacional antes de passadas duas décadas, não foi por isso que descongelou a 'guerra fria'".

A retórica de Reagan e o charme de Thatcher? "O líder soviético tinha uma boa relação com Thatcher, anterior mesmo à sua subida ao poder, mas tiveram sobretudo conversas cordiais. Quanto a Reagan, encontraram-se quatro vezes em quatro anos e penso que o mais importante foi ambos perceberem que o outro tinha um genuíno horror ao armamento nuclear. Penso que políticos como Felipe Gonzalez ou Willy Brandt tiveram mais influência na forma de Gorbatchov pensar", conclui Archie Brown.

Não foram, pois, "as massas" que fizeram a contra-revolução, como não tinham sido "as massas" a fazer a Revolução de Outubro, no essencial um "golpe de Estado" habilmente instrumentalizado por Lenine numa altura em que o seu partido bolchevique não representava senão uma pequena minoria da sociedade e nem sequer era maioritário nos sovietes. E também não foram os "factores económicos" que tornaram inelutável a desagregação do bloco comunista quando parecia no seu apogeu. Houve mudança porque houve Gorbatchov. Pelo menos na opinião avisada de Archie Brown:

"As reformas corresponderam a uma escolha política. Se outro líder que não Gorbatchov tivesse emergido à cabeça do PCUS em 1985 não se teria iniciado um processo de reformas, até porque a palavra 'reforma' fora tabu entre 1966 e 1986. Sem Gorbatchov é possível que o sistema comunista se tivesse mantido de pé até hoje. Mas Gorbatchov era, como disse um seu colega na Universidade, 'inteligente, aberto e anti-estalinista'. Foi por isso que ele pôde evoluir de comunista ortodoxo na juventude para comunista reformista e, por fim, um social-democrata".

Por isso tudo talvez Marx tivesse a maior dificuldade em ler "Ascensão e Queda do Comunismo" se porventura regressasse à Sala de Leitura do Museu Britânico. Afinal a sua "filosofia científica" só foi poder onde ele previu que isso não poderia acontecer e pela mão de alguém, Lenine, que se tornaria no verdadeiro fundador do movimento comunista tal como o conhecemos. Por fim tudo morreria, inopinadamente, às mãos de homem que se atreveu a testar ideias novas, um Gorbachev a que todos os leitores de Archie Brown terão vontade de voltar a repetir: "Obrigado!"

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