Comentário: A quem serve a "transparência"?

Já foi dito em todos os tons. As "revelações" publicadas ontem a partir dos documentos fornecidos pela WikiLeaks a um grupo de jornais ocidentais não desvendam nenhum segredo que contrarie aquilo que já se sabia sobre a política externa norte-americana. Ontem as capitais europeias cujos líderes foram visados por avaliações menos simpáticas mostraram fair-play. A prática é comum mesmo que seja embaraçosa. Valeu, então, a pena aceitar as regras do jogo estabelecidas pela WikiLeaks?

Pode aceitar-se, como escrevia ontem Simon Jenkins no Guardian (um dos jornais contemplados), que a função da imprensa não é evitar o embaraço dos governos. Não é. Embora também não seja embaraçá-los, a não ser que isso seja indispensável para tornar a sua acção compreensível aos olhos da opinião pública que os julga. Em termos de utilidade, as revelações de Assange inscreveram-se até agora mais na rubrica do voyeurismo do que na da compreensão dos factos. Aprende-se mais num livro do jornalista Bob Woodward sobre as decisões de Obama no Afeganistão ou nas confissões do antigo embaixador britânico em Washington Christopher Meyer sobre as decisões de Bush e de Blair no Iraque do que nos 250 mil telegramas pirateados na Internet.

Pode defender-se, como escrevia o El País, que as revelações de Assange também servem para combater a perniciosa tendência dos governos para a opacidade. Servirão? Ou terão o efeito contrário?

"Na política externa (...) o secretismo é, ao mesmo tempo, necessário e perigoso", escrevia ontem Peter Beinart, professor de Jornalismo, no Daily Beast. Não é preciso um tratado para explicar porquê.

O jornalismo gere esta tensão, tentando impedir que os governos tracem a linha vermelha entre o que deve ser público e o que deve ser reservado sem outro critério que não a sua conveniência. Há factos a que os jornalistas podem ter acesso para explicar os acontecimentos mas que não podem revelar.

A grande questão é como se exerce esta função, sujeita a regras éticas e profissionais, numa época em que tudo corre célere e em tempo real pela Internet - o verdadeiro e o falso; o que resulta da infracção à lei e o que não resulta; o que corresponde a motivações políticas ou a simples voyeurismo e má- fé.

Assange diz que age em nome da "transparência". Quer "revolucionar" o jornalismo. Não há transparência aceitável fora da lei. Não há jornalismo sem regras. Tem, em contrapartida, uma obsessão evidente: enfraquecer a América. Há aqui também uma escolha a que a imprensa não pode ser indiferente.

Estamos perante uma realidade nova que coloca problemas muito sérios às democracias. E que coloca problemas igualmente muito sérios à imprensa livre das democracias.

Sugerir correcção
Comentar