Crise económica, crise da democracia

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Conhecidas as causas da crise, não se percebe porque na UE continuam a aplicar os mesmos remédios que levaram a ela

Vivemos tempos de grandes dificuldades, embora naturalmente mais nuns países europeus do que noutros e com as periferias a norte (algumas) e a sul a serem mais fustigadas. Mas esta crise não é apenas económica, é também, e sobretudo, uma crise das democracias e do projecto europeu. Mais: evidencia o falhanço das soluções neoliberais que insistem em nos propor como panaceia.

Tudo começou com a forte liberalização dos mercados à escala mundial e com a ascensão das doutrinas neoliberais e dos actores que as concretizaram desde os anos 1980 para cá. Em termos de orientações para as políticas públicas, a ascensão do neoliberalismo teve no célebre "consenso de Washington" uma das suas traves mestras. Além disso, o FMI, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio desempenharam um papel chave na sua promoção à escala planetária. Há vários elementos que caracterizaram este período: a prioridade ao equilíbrio orçamental; o recuo do papel do Estado, sobretudo nas áreas sociais; o elogio do mercado como o melhor mecanismo para alocação de recursos; o recuo dos impostos sobre o capital, nalguns casos o fim da progressividade fiscal (flat tax); o aumento brutal das desigualdades (David Harvey, A Brief History of Neoliberalism, Oxford University Press, 2007). Na Europa, além do Reino Unido, aplicaram os axiomas deste modelo, e constituíram mesmo os modelos ideais que os neoliberais portugueses (e não só) amiúde nos propunham para emularmos, a Irlanda e os países bálticos. Estes últimos adoptaram entusiasticamente o neoliberalismo simultaneamente por motivos políticos (forte repulsa da opressão soviética) e económicos (necessidade de atrair investimento para uma economia fragilizada; reduzida solidariedade dos fundos europeus).

Mas depois, fruto da desregulação promovida activamente pelos defensores do neoliberalismo, veio a maior crise económica desde os anos 1930, na linha do subprime e da falência de vários bancos e seguradoras, e não só a Irlanda como os países bálticos estão todos na linha da frente dos mais prejudicados. A Irlanda tem sido muito falada: está a ser alvo de um plano de resgate do FMI e da UE, acompanhado por um brutal programa de austeridade. Mas na Letónia, por exemplo, a situação não é muito diferente. Este país, tal como os outros países bálticos, está (com Portugal) entre os campeões das desigualdades na Europa e está entre aqueles onde o desemprego tem as mais elevadas taxas (após a Espanha). A crise, que estalou logo em 2008, levou o país a pedir ajuda ao FMI, na linha da qual reduziu os salários dos funcionários (em cerca de 30 por cento) e as despesas do Estado (Visão, 25/11).

Esta crise mundial foi prontamente reconhecida como um resultado da forte liberalização da economia mundial e da desregulação associada. Mas a falência deste modelo é também evidenciada por atingir fortemente as suas jóias da coroa na Europa: Irlanda, Islândia, Reino Unido, países bálticos. Além disso, foi esta semana divulgado um estudo do FMI (!) que dava conta que as crises do subprime e dos sistemas bancários radicavam também no grande fosso entre ricos (a viver sem problemas) e pobres (a viver sobretudo do crédito) (jornal i, 27/11). Quando a bolha imobiliária rebentou, os bancos foram atrás... Embora o estudo se reporte aos EUA, é assumido que os resultados são transponíveis para a Europa.

Mas como disse, este crise é sobretudo uma crise dos regimes democráticos. Primeiro, porque, apesar de a crise radicar na desregulação dos mercados e dos investimentos ruinosos dos bancos, foram os cidadãos que foram chamados a socializar os prejuízos e, posteriormente, a pagar os custos nos défices orçamentais e nas dívidas públicas resultantes de tal socialização (bem como de outras medidas para aliviar os efeitos da crise) - ainda no sábado passado uma manifestação em Dublin reclamava disto mesmo; ver também Paul Krugman no Washington Post, 24/11, Eating the Irish. Segundo, porque os programas de austeridade têm sido muito assimétricos (na Irlanda, por exemplo, reduzem-se salários dos funcionários mas mantém-se na prática a baixíssima taxa de IRC; por cá, criam-se excepções para as empresas públicas, continua a despejar-se mais e mais dinheiro para a Defesa, mantêm-se valores chorudos para o financiamento dos partidos, apesar dos cortes, mas corta-se muito nos rendimentos dos funcionários mais qualificados e nos apoios sociais aos mais pobres). Terceiro, porque esta crise evidencia a tibieza do rumo que tem seguido o projecto europeu: fundamentalmente preocupada com o equilíbrio orçamental e pouco ou nada com o emprego e o crescimento económico, a UE passou de um potencial instrumento para domesticar a globalização para uma arena completamente ajoelhada perante os mercados de capitais. Quarto, porque vemos partidos socialistas, nos governos europeus, a aplicarem medidas totalmente contrárias ao seu código genético e ao que prometeram nas campanhas. Finalmente, porque, conhecidas que são as causas da crise, não se percebe porque é que os políticos na UE continuam a aplicar os mesmos remédios que levaram a ela. Por cá, é isso que propõe o novel PSD (se necessário governando com o FMI): uma liberalização dos despedimentos e um recuo significativo do Estado social. O cansaço dos eleitores com o Governo pode bem propiciar uma mudança de Governo já no próximo ano, não por adesão ao programa neoliberal do PSD mas para castigar o PS. Caso Cavaco seja eleito, poderemos ficar sem nenhum contrapeso na presidência capaz de sequer atenuar uma tal inflexão neoliberal. Pelo contrário, caso Alegre vença (pelos seus valores e pela independência que sempre manifestou, nomeadamente face ao seu partido), poderemos contar com um contrapeso na presidência que trave ou amorteça uma tal inflexão. Politólogo, ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt). Membro da Comissão Política da Candidatura de Manuel Alegre

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