Se Leonardo da Vinci fosse vivo estaria apaixonado pelo cinemaEntrevistaMartin Kemp

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As ciências e as artes plásticas partem de uma mesma particularidade biológica: a insaciável necessidade que o cérebro humano tem de dar coerência ao mundo

Martin Kemp foi professor de História da Arte na Universidade de Oxford, no Reino Unido, e talvez seja actualmente, a nível mundial, o especialista que melhor conhece Leonardo da Vinci - o homem e a obra. Formado em Ciências Naturais, dedicou a sua vida ao estudo dos processos de representação visual ao longo dos últimos 500 anos de História. Falou com o P2 há uns dias, quando passou por Lisboa para proferir a primeira de uma série de conferências, organizadas pela Fundação Gulbenkian, em torno da imagem na arte e na ciência.

Uma boa imagem vale realmente mais do que mil palavras?

Se quisermos descrever algo dando ao espectador uma enorme quantidade de coisas para as quais olhar, uma boa imagem vale mais do que mil palavras. Mas se a mensagem verbal estiver bem feita, 50 palavras podem valer mais do que uma imagem. Porém, a questão complica-se com a Internet, onde coexistem imagens e textos e se colocam problemas de contexto e de confiança.

Acha que a imaginação visual é essencial ao progresso da ciência?

Depende da ciência, mas não existe quase nenhuma onde a imaginação visual não tenha tido um papel a dada altura. E obviamente, nas ciências naturais, precisamos da imaginação para representar o real.

Pintores como Leonardo ou Durer foram os primeiros naturalistas?

O problema é que sabemos muito pouco sobre a ilustração naturalista na Antiguidade clássica. Temos representações relativamente simples de animais e plantas, mas perdemos o acesso a uma visão mais ampla, nomeadamente na pintura, daquela época. Mas é um facto que, na Renascença, os artistas desenvolveram ferramentas para representar animais e plantas. Não o fizeram com objectivos científicos como os que temos hoje, mas como elas tinham uma enorme funcionalidade, foram adoptadas pela ciência.

Darwin teria conseguido formular a sua Teoria da Evolução sem desenhos meticulosos? Vermeer teria conseguido pintar os seus maravilhosos quadros sem a sua câmara escura?

Nas artes desse período, da Renascença até meados do século XIX, existia uma relação simbiótica entre a representação visual na arte e a representação visual na ciência. A meu ver, Vermeer estava simplesmente a utilizar o último grito da tecnologia. Quanto a Darwin, os seus livros têm poucas ilustrações.

Darwin não queria fazer livros de imagens, mas foi muito influenciado pela visão da Natureza em acção transmitida pelos pintores dos séculos XVIII e XIX. A ideia de que a Natureza era dinâmica, de que os animais competiam entre si, surgia em muitas ilustrações e quadros naturalistas.

O advento da fotografia no século XIX alterou a relação entre arte e ciência?

Quando surge, a fotografia é vista como um registo fiel da realidade (claro que nós sabemos até que ponto pode ser enganadora). E surge também a ideia de que usar a fotografia na arte é fazer batota. Isso é obviamente absurdo, mas existia o sentimento de que a arte devia fazer coisas diferentes.

Como se desenrola, ao longo da História, a evolução da relação entre arte e ciência?

Não é fácil responder a essa pergunta, porque as diversas ciências têm os seus "momentos visuais" em épocas diferentes. A história é muito tortuosa. Mas uma das continuidades que me interessam situa-se num plano perceptual e cognitivo mais amplo, ao nível daquilo que eu chamo "intuições estruturais" - isto é, da nossa propensão natural para procurar sentido nas formas, nos padrões, para conferir coerência ao mundo.

Muitos artistas e cientistas exploram esta propensão cognitiva com a qual nascemos.

Acho que, frequentemente, tanto os artistas como os cientistas partem dessas intuições.

Começam por olhar para uma coisa e acham-na interessante, pensam que há lá algo mais do que está à vista. O que me interessa não é tanto a maneira como a arte influi sobre a ciência (o que de facto faz) nem como a ciência influi sobre a arte (o que acontece ainda mais). Gosto de ir mais fundo, de ver quais são as intuições que os artistas e os cientistas partilham. Não se trata de uma explicação universal de toda a arte e a ciência, mas funciona particularmente bem para certas artes e certas ciências.

Pode dar um exemplo?

Imaginemos os movimentos à superfície da água. Quando um artista como David Hockney cria nos seus quadros de piscinas espantosos padrões geométricos de luz, em forma de "s" entrelaçados, ele está a olhar debaixo da superfície, por assim dizer [ri-se], a tentar perceber qual é o sistema, a organização subjacente. Por seu lado, um engenheiro em hidrodinâmica também precisa de perceber esses movimentos (o que, no caso da água, é incrivelmente difícil, porque se trata de um fenómeno caótico).

Mas ambos querem ir para além de uma descrição do aspecto da água, querem extrair dali uma ordem subjacente. Os seus objectivos são diferentes: o cientista quer produzir uma descrição teórica, o artista está a tentar fazer-nos sentir o quão maravilhoso é aquilo que vemos. O produto final é muito diferente, mas o ponto de partida poderá ter sido o fascínio pelo mesmo fenómeno.

O ponto de partida dessas intuições é visual?

Acho que é pré-visual e pré-verbal. É olhar para uma coisa e sentir: "Ah!" Há uma belíssima carta de Einstein a Jacques Hadamard, o filósofo francês, que descreve exactamente isso. Diz que existe uma intuição, um sentimento do fenómeno que acontece antes de qualquer formalização matemática, antes de se ter realmente visto alguma coisa. É algo de muito primitivo. A carta é fantástica, descreve perfeitamente um nível cognitivo incrivelmente rápido e que não é literalmente nem visual, nem verbal. É o ponto de partida para muitas coisas. Depois é preciso canalizar esse sentimento de alguma forma.

A astronomia também é uma ciência visual, mas as imagens que produz nem sempre são realistas - têm cores falsas, por exemplo. Isso não coloca um problema em termos de precisão científica?

Mesmo quando olhamos para as árvores pela janela, estamos a operar altos níveis de codificação, estamos sempre a traduzir e a representar o mundo em tempo real. E quando olhamos para um planeta como Vénus, precisamos de imagens cujo registo seja parecido com o que costumamos ver à nossa volta. Para mais, a atmosfera de Vénus é tão densa que, se lá estivéssemos, não veríamos nada! Portanto, pegamos nos resultados de altimetria radar - que, no fundo, não são informação visual em primeira instância, mas apenas um conjunto de dados - e traduzimo-los.

A ideia de que é possível ver vastos panoramas naquele planeta é uma extensão da noção do sublime na arte romântica. Transformamos Vénus numa paisagem à maneira de um Turner ou de um Caspar David Friedrich. Isto é importante para comunicar com os leigos. E também é importante do ponto de vista social e político, porque se um Governo está a gastar rios de dinheiro para enviar sondas para Vénus, precisa de envolver o público nessa grande e cara aventura. E fazer o público maravilhar-se - algo que sempre fez parte da ciência e da arte (Vesalius fê-lo com o corpo humano no século XVI) é profundamente funcional em termos do lugar dos cientistas na sociedade (e, dito mais cruamente, da sua necessidade de apoio público para obter financiamento).

A química, apesar de ser muito geométrica, parece difícil de tornar interessante para os leigos.

A química já atravessou fases muito visuais. Por exemplo, a tabela periódica de Mendeleiev é algo de muito visual. Têm havido muitas variações sobre esse tema, em círculo, em espiral, etc. E Mendeleiev teve para mais a coragem de fazer uma tabela com casas vazias e de dizer que a teoria previa que ali entrassem elementos químicos ainda desconhecidos (o que acabou por acontecer).

Mais recentemente, com os progressos da microscopia, a química tornou-se bastante visual.

No caso do carbono 60, ou buckminsterfulereno, Harry Kroto [um dos descobridores desta molécula] percebeu que a forma das bolas de futebol, com as suas faces pentagonais e hexagonais, permitia dispor 60 átomos de carbono - algo de muito visual. E também se inspirou na obra de Buckminster Fuller, o arquitecto norte-americano high-tech que construía cúpulas geodésicas.

A molécula de ADN também é, em última análise, uma estrutura química e é um dos ícones da ciência. Se há uma imagem que representa a ciência natural moderna - e mesmo a ciência toda - é a do ADN, a da dupla hélice.

Acho que a química moderna pode ser muito visual, porque é possível introduzir os dados num computador para obter aquelas imagens fantásticas que podem ser rodadas em todas as direcções. As proteínas parecem grandes estações espaciais a flutuar no espaço.

Eu diria que não há nenhuma ciência que não tenha tido os seus momentos visuais, com a excepção de certas áreas da teoria dos números. Até na física, e=mc2 é um ícone (estou neste momento a escrever um livro sobre imagens icónicas e esta fórmula é uma delas). Não é uma imagem no sentido literal, mas tornou-se uma imagem. Vemo-la reproduzida em T-shirts, em canecas, por baixo das fotografias de Einstein. Até uma fórmula pode transformar-se numa imagem.

Os computadores e a Internet, os filmes 3D, os jogos de vídeo interactivos, vão alterar mais uma vez a relação entre arte e ciência?

Estamos numa fase semelhante à da invenção da imprensa e das imagens impressas, quando de repente os livros começaram a ser difundidos e todos passaram a poder ver como era um elefante, por exemplo. Estamos a atravessar mudanças que são tão profundas como aquela, mas que, por enquanto, parecem sobretudo centradas na quantidade e na rapidez.

Se formos ao cinema, constatamos que nenhum plano permanece no ecrã mais do que um segundo e meio. Estamos viciados nas imagens, temos uma necessidade insaciável de estimulação visual permanente e estamos a alimentar esse vício sem qualquer remorso. Saber se isso é bom é outra questão. Podemos acabar por não ter tempo para pensar no que estamos a ver nem para usar a imaginação, o que pode ser um problema.

Uma outra questão que se coloca actualmente é a da confiança visual. Temos uma tendência natural, uma necessidade profunda de acreditar em qualquer imagem que corresponda às nossas expectativas de coerência interna - onde tudo bate certo, o espaço, a luz, a cor. E a Internet pode produzir imagens completamente falsas mas que possuem um enorme poder de convicção. Acho que uma tarefa urgente da educação visual é ajudar os jovens a adquirir critérios que lhes permitam decidir se devem ou não confiar numa dada imagem. Ensiná-los a serem críticos e cépticos em relação às imagens, não a consumi-las e mais nada.

Este problema não é novo, mas o poder enganador de uma representação visual bem conseguida é milhares de milhões de vezes maior na Web. Por exemplo, há um site com imagens de unicórnios que podem ser espectacularmente convincentes. [ver http://www.theequinest.com/does-the-mythical-unicorn-exist-or-not/]

Quando falamos da relação entre arte e ciência, ficamo-nos quase sempre pelas artes plásticas. Mas quais são as relações entre as artes performativas e a ciência?

A pintura, desenho, impressão, fotografia e, em certa medida, a escultura estão no "negócio" de olhar para as coisas e tentar transpô-las para uma forma visual. Mas as artes com uma componente temporal têm uma narrativa interna diferente.

Está a ser feita muita investigação fascinante em neurociências na área da música. Acho que a música se dá muito melhor com algumas das ferramentas dos neurocientistas do que as artes visuais. Mas estas relações não têm tido a atenção que merecem.

Se Leonardo voltasse hoje, reconheceria alguns dos objectos que imaginou ou acharia o mundo totalmente confuso do ponto de vista visual?

Penso que até o próprio Leonardo, se aterrasse no nosso mundo, ficaria completamente ultrapassado. Mas acho que se Leonardo fosse vivo, estaria totalmente apaixonado pelo cinema. Quando olhamos para os seus desenhos, sentimos que ele está quase a pensar, "vá-la, mexe-te!" Desenhava figuras sequenciais quase como se de animações se tratasse e quando transpusemos algumas delas para animações, os resultados foram fantásticos. Leonardo nunca olhou para Natureza como algo de estático. Tinha de a representar de forma estática, mas via a luz em movimento, falava da luz como de algo que bate nos objectos com força física. Também via a água e o ar como tendo intrinsecamente uma componente de movimento. Portanto, acho que uma vez ultrapassado o choque inicial, Leonardo teria ficado profundamente encantado com a capacidade de os media actuais capturarem o espaço, a forma, o tempo em termos de movimento.

Com a publicação do best-seller de Dan Brown O Código da Vinci, passou a receber muitas cartas sobre alegados "segredos" de Leonardo?

Antes, costumava receber um "Leonardo" por ano, normalmente coisas totalmente absurdas. Na altura do Dan Brown, os "Leonardos" passaram a ter uma periodicidade mensal. E desde que publiquei um livro sobre uma nova imagem que penso ser de Leonardo, tenho recebido Leonardos todas as semanas. De facto, há um grupo de pessoas, que eu chamo "Leonardoloonies" [maluquinhos do Leonardo] e do qual fazem também parte aqueles que insistem em desenhar complicadas figuras geométricas por cima da Mona Lisa e que acham que essa "geometria cósmica" é a chave secreta do quadro.

O que eu respondo é que já fizemos muitas análises científicas dos desenhos e dos quadros, com raios X, com infravermelhos, que já olhámos para todos os seus desenhos e que eu olhei pessoalmente para os desenhos geométricos subjacentes, frequentemente feitos com um estilete e que não passam de marcas no papel. E que nunca encontrámos qualquer indício de qualquer código secreto.

Ou seja, não há código da Vinci.

Leonardo não estava interessado nos códigos. Estava interessado nas alegorias e nas camadas de significados. Um código exige que o que se vê à superfície seja tão enganador quanto possível em relação ao que se encontra por baixo. Senão, não é um código. Leonardo, na Última Ceia, está muito interessado na simbologia tradicional. Temos a traição, mas também há o pão e há o vinho, que são os símbolos da eucaristia. São Pedro está a segurar numa faca, com a qual sabemos que irá cortar a orelha de um soldado. São coisas que podem ser lidas, são alegorias. Não é um código.

Dante explica muito bem o que é uma alegoria quando diz que é um significado escondido como que por um véu. Inicialmente, o véu torna mais pálido o que está velado, mas o que se vê é o que está por baixo. E, se tirarmos o véu, vemos a verdade. Era isso que os artistas da Renascença faziam. Não faziam códigos; introduziam uma camada de teologia simbólica.

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