A queda de um velho preconceito

Embora o Vaticano venha relativizar as declarações do Papa sobre o preservativo, a verdade é que algo mudou

Até anteontem, a posição do Vaticano sobre o uso do preservativo era aparentemente inflexível. Nenhum Papa admitira sequer como excepcional o recurso a esta forma de protecção, nem mesmo nos países onde a morte por contaminação se banalizou de forma assustadora. As muitas críticas, de dentro e fora da Igreja Católica, acabaram, no entanto, por surtir efeito. Bento XVI, num livro denominado Luz do Mundo, que amanhã será posto à venda, afirma ao jornalista alemão Peter Seewald que, apesar de não considerar o preservativo "uma solução verdadeira e moral", admite que "num ou noutro caso, embora seja utilizado para diminuir o risco de contágio, o preservativo pode ser o primeiro passo na direcção de uma sexualidade vivida de outro modo, mais humana." Tal frase teve o efeito de uma bomba: caíra uma barreira num velho preconceito religioso. Uma das vozes que conhecem bem o preço dessa negação traduzida em mortes, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, disse ontem ao PÚBLICO que "as declarações do Papa são bastante pragmáticas e realistas e são bem-vindas". E declarou-se satisfeito.

Como era de se esperar, o Vaticano não suportou tamanha exultação. Ontem veio a público explicar que as declarações do Papa não são "revolucionárias" e que Bento XVI apenas quis reiterar que o problema da sida "não pode ser resolvido através da distribuição de preservativos". Isto apesar de Frederico Lombardi, porta-voz do Vaticano, ver nas palavras de Bento XVI um contributo "corajoso e original" para um debate sobre a sexualidade responsável. O Vaticano prefere ver o copo meio vazio onde outros o viram meio cheio. O que importa é que um livro chamado Luz do Mundo traga, numa curta mas não ambígua frase, luz suficiente para amenizar antigas trevas.

O vergonhoso espectro da fome

As promessas de erradicação da pobreza são cíclicas. Já nos anos 70 do século passado os países ricos prometiam erradicá-la até ao ano 2000. Nessa altura tratava-se do futuro, faltavam ainda três décadas, mas hoje já passaram dez anos de tal meta e os resultados são, no mínimo assustadores. Em Portugal, o sempre atento Banco Alimentar Contra a Fome calcula que existam 66.500 famílias a beneficiar de apoio alimentar e, pior do que isso, que quase cinco mil famílias estão em lista de espera. Por mais que, ao longo deste ano, o combate à pobreza tenha mobilizado o gesto e o verbo dos portugueses, a situação vai-se tornando aflitiva para muitos, com a cada vez mais elevada taxa de desemprego (são sobretudo os desempregados que se socorrem do Banco Alimentar) e com o aumento daqueles que são obrigados a viver, até famílias numerosas, com 250 euros ou menos por mês. Uns declaram que não lhes chega a comida para o mês, outros que passam um dia inteiro sem comer. Soluções? Há quem proponha, até por abaixo-assinado, tornar a fome ilegal. Mas se tal acontecesse, mais depressa haviam de prender os pobres do que se lançariam a arrancar as raízes da sua miséria.

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