A linguagem secreta dos figurinos de Vera Castro

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F teatro aberto

Discreta, recatada, humilde e com uma paixão enorme pelo que fazia. Era assim Vera Castro, figurinista, cenógrafa, pintora. A singularidade do seu trabalho assinou das melhores páginas da história dos figurinos para teatro e dança em Portugal. É isso que se sente em Segunda Pele, livro-testamento e testemunho.

Nasce-se, vive-se e morre-se e, no intervalo, faz-se qualquer coisa", escreveu Francis Bacon. Vera Castro morreu de cancro, em Fevereiro, aos 64 anos e, no intervalo, fez figurinos.

No livro que deixou, Segunda Pele, editado pela Athena e lançado no São Luiz -Teatro Municipal, em Lisboa, a 20 de Setembro passado (do qual foram retiradas as fotografias que acompanham estas páginas), Vera Castro recorda que quando começou, vinda de Belas-Artes, com o curso de Pintura, "o que sabia de tecidos devia-se ao facto de pertencer a uma geração onde o pronto-a-vestir era quase inexistente e, por conseguinte, fazia-se a roupa em casa ou numa costureira".

"Quando ia com a minha mãe escolher e comprar tecidos, ouvia-a falar de nomes como organdi, cambraia, tafetá ou tweed", conta, "perguntavam-me depois se queria a saia em viés, com pregas ou com machos. Tudo terminologias que estava longe de suspeitar virem a ser-me úteis no que mais tarde seria uma das minhas vertentes profissionais."

Vera Castro acreditava ser o figurino "capaz de nos informar sobre o estado de alma, o carácter, o nível social, o lugar, a época, ou se uma personagem opera a nível simbólico, os valores que transporta, como alegoria ou metáfora".

O livro reúne um conjunto de entrevistas a encenadores, coreógrafos, cenógrafos, figurinistas, actores, bailarinos, críticos e outras profissões ligadas aos figurinos, como as mestras e zeladoras de guarda-roupa. Nele, num gesto de apagamento que lhe reconhecem como característico - "já viste o que era se guardasse tudo", dizia à sua amiga Eugénia Vasques -, dá voz aos que trabalham com e a partir do que ela fazia, mostrando a disponibilidade e a curiosidade que todos lhe apontam como características.

"Fazer figurinos não é sempre a mesma coisa, muda com o tipo de espectáculo e com propósitos de quem o dirige. Em teatro, se o texto for realista, o figurinista tem de acreditar na personagem e, para isso, precisa de investigar e perceber em que sentido vai o registo do actor - na dança, às vezes, contam mais coisas, como a música ou o corpo dos bailarinos. Mas o processo também pode funcionar ao contrário: os figurinos são feitos e o intérprete tem de se lhes adaptar." Assim definiu Vera Castro o seu trabalho numa reportagem publicada em 2002 no Diário de Notícias.

O legado que deixa, nas memórias de quem com ela trabalhou, nos quadros, figurinos e cenários que criou, nos alunos cujos percursos ajudou a definir e no público que aprendeu a ver um figurino não como uma roupa vestida por um intérprete mas como uma personagem por direito próprio sabe que o intervalo de Vera Castro foi imenso.

"Era uma artesã", diz Eugénia Vasques, que foi sua colega na Escola Superior de Teatro e Cinema e crítica de teatro no Expresso. "Há os figurinistas que são ilustradores e, depois, há a Vera Castro. Tinha uma relação muito forte com os encenadores com quem trabalhava. Um olhar singular. Compreendia-os e servia-os, mas ser uma artista fazia toda a diferença."

"Era uma pessoa muito interessada na contemporaneidade, no que era novo", diz José Wallenstein, que com ela esteve casado 18 anos e sobre quem diz "ter aprendido tudo".

Foi na pintura que começou, ela que pertenceu à geração do Eduardo Batarda. Era uma pintura "com uma grande preocupação formal, com uma luz crepuscular, feita de grandes espaços urbanos vazios", descreve o actor e encenador, indo ao encontro da "elegância arquitectónica", descrição usada para descrever as suas cenografias por Ricardo Pais, com quem Vera Castro trabalhou em 1990.

Eugénia Vasques sublinha que "foi muito importante que a pintora não se perdesse no trabalho plástico da figurinista". No corredor da sua casa em Lisboa, a teatróloga guarda um quadro pintado nos anos 1960, da Vera pintora. "Foi ela que o colocou ali, não ouso mexer-lhe", diz. É um retrato da avó de Vera, onde Eugénia diz reconhecer-se. "É um quadro extraordinário que ela tinha guardado no sótão. É fantasmático, como muitas das suas pinturas eram. Cada quadro era um figurino sem gente, e cada figurino uma personagem. Quem não compreende isto não compreende nada. Eram fantasmas", sublinha.

"Havia uma grande sensibilidade e melancolia figurativas, próximo de um realismo poético", acrescenta Wallenstein, mesmo que Vera Castro não pintasse com regularidade.

É isso mesmo que se nota em E no Intervalo Faz-se Qualquer Coisa, peça que estreou a 20 de Março de 1998 e "inteiramente uma ideia dela". "A Vera fez um levantamento exaustíssimo de textos "na sua maioria de autores portugueses, e em referência pictóricas, que funcionam como matéria textual ou ponto de partida para situações cénicas", escreveu Wallenstein no texto de apresentação da peça, que co-encenou.

"A peça mostrava esse seu desejo de explicar a coerência entre o cenário, os figurinos e o texto, construído de raiz", relembra Wallenstein. O espectáculo procurava "abordar esse processo tão artesanal quanto enigmático, gerador através dos tempos, de lendas e mitos" e que, para Eugénia Vasques, define o que Vera Castro era: "Uma artesã."

"Camarada solidária"

"Tímida e um tanto fechada, Vera Castro era uma mulher muito corajosa e determinada", diz Vasques. "Desadequada, artisticamente, num curso [Realização Plástica do Espectáculo] marcado, durante décadas, por um fechamento à contemporaneidade, Vera Castro impunha-se a alunos e colegas pela sua obstinação e determinação de carácter. Não se calava perante as injustiças e ataques e nunca fugia a cumprir os seus deveres de camarada solidária", escreveu num depoimento para a revista Politecnia, do Instituto Politécnico de Lisboa, cuja edição de Maio lhe prestou uma homenagem. "Por isso", diz-nos agora ao telefone, "quem a compreendia amava-a".

"De uma enorme delicadeza e sensibilidade à flor da pele", segundo Wallenstein, "discreta", diz Ricardo Pais, e "recatada", diz Olga Roriz, Vera Castro construiu um percurso amplo e diverso, onde, à diversidade de registos dos encenadores e coreógrafos com quem trabalhou, respondeu com uma consciência do papel contributivo do figurino, recusando uma hierarquização e, ao mesmo tempo, "criando uma coerência mais evidente quando fazia os cenários e os figurinos", acrescenta.

Dividindo o seu trabalho pelo teatro, dança e ópera, trabalhou com João Lourenço, Nuno Carinhas, Ana Tamen, Paulo Ribeiro, Rui Lopes Graça, Olga Roriz, Rogério de Carvalho ou Né Barros. "De trabalho em trabalho, como se pode ao fim de tantos anos manter o mesmo gosto, para que cada um não se torne apenas em mais um, mas ainda, mais uma vez, aquele desafio único e especial", perguntava em Segunda Pele. "Para mim, trata-se de me alimentar do que os outros fazem, de me surpreender numa exposição. De me extasiar num museu, de me espantar pelo que vejo na rua, enfim, de me deliciar na fruição da vida", acrescentou.

"Tinha um prazer imenso no que fazia", salienta Ricardo Pais, que se recorda das horas que passaram nos ensaios e nas provas de figurinos para Minetti. José Wallenstein diz que essa "curiosidade" vinha de "um grande amor pelo espectáculo". "Era uma espectadora atentíssima", vinca.

Cenografia em movimento

Wallenstein conheceu-a em 1982 quando Vera Castro foi desafiada por Alberto Lopes para fazer a cenografia e os figurinos de Rei Ramiro. "Logo nesse primeiro trabalho percebi que, não fora eu ter alguns conhecimentos desses termos técnicos e saber um pouco de costura, os meus desenhos não teriam sido interpretados pela costureira convenientemente", escreveu Vera. "Primeira lição: ou eu sabia o que queria e como se fazia e me fazia entender, ou então teria grandes dissabores no futuro."

"Ela andava sempre à procura", recorda José Wallenstein, e, ao longo dos anos, vai ser essa determinação que lhe permitirá dialogar com as visões dos encenadores e coreógrafos com quem vai trabalhar. "O talento é como um prego no fundo de um saco: sacode-se e tem de sair alguma coisa", dizia Vera aos seus alunos como metáfora para insistir no trabalho permanente.

E depois houve Isolda, onde aos corpos das 13 bailarinas orquestrados por Olga Roriz se juntou "um dos mais belos conjuntos de vestidos feitos" para uma coreografia, escreveu António Pinto Ribeiro em 1990 no Expresso.

"Foi um encontro que nos marcou", recorda Olga Roriz a propósito dessa peça feita para o Ballet Gulbenkian. "Eu procurava um lado mais teatral, mais operático e cheio de pormenores e a Vera tinha uma visão muito aberta, muito à procura. Abriu-se um mundo novo para as duas."

O resultado foi descrito assim por Pinto Ribeiro: "À semelhança do que fazia Loie Fuller com os seus véus e as suas asas feitas de tecido e, à semelhança das sedas do teatro japonês, os figurinos de Isolda evoluem no espaço e servem a coreografia de uma maneira brilhante. O peso dos vestidos contrastando com a leveza dos corpos e a compulsão dos movimentos, os pés descalços e os cabelos soltos, produzem uma teatralidade do trágico, mas onde estão também presentes a sensualidade e o desespero."

Sobre esses figurinos, para os quais Olga Roriz tinha pedido que se visse o esforço real das bailarinas, Vera Castro "pensou numa série de vestidos diferentes, conforme eram diferentes os corpos daquelas mulheres, e pensou nas diversas épocas que deveriam estar presentes na coreografia". "Quis jogar com os panos e a cor que logo ali apareceu foi o vermelho", disse.

Olga Roriz explica que "o figurino para dança é uma coisa muito específica, porque tem de dialogar não só com o corpo mas com tudo o que está à volta, o chão, as paredes, o parceiro, as luzes. E a Vera sabia fazê-lo muito bem porque tinha uma hipersensibilidade em relação aos materiais". António Pinto Ribeiro escreveu que o trabalho da figurinista era feito de "veludos martelados, tafetás, sedas e brocados" e a autora justificava-se com o desejo de que "toda essa sumptuosidade vibrasse à luz". "Nunca pensei que estivesse a vestir personagens como acontece no teatro, pensei sempre que eram corpos que vestia", explicou a figurinista. "Tudo aquilo era pensado ao pormenor", conta Olga Roriz, para quem Vera sabia tudo.

Esse conhecimento, revela José Wallenstein, vem do facto de "a Vera ter tido, a vida toda, o sonho de ser bailarina". E adianta: "[Ela] teve um problema na coluna no fim da adolescência e ficou sempre com essa frustração." Em 2003, quando a Experimenta Design a convidou para, juntamente com um grupo de cenógrafos, escolher um filme que os marcasse, Vera Castro escolheu Os Sapatos Vermelhos, de Michael Powell e Emeric Pressburger, precisamente sobre a vida de uma bailarina a quem é retirada a possibilidade de dançar. "Era uma instalação lindíssima, num armazém, com uma sapatilha de pontas gigante, de um vermelho-vivo, suspenso e a pingar sangue."

A importância do detalhe

Vermelho é uma cor que encontramos em muitos dos figurinos de Vera Castro. No mesmo ano de Isolda, para o Ballet Gulbenkian, ela recebe o convite de Ricardo Pais para fazer os figurinos para Minetti, no Teatro Nacional D. Maria II. "Recordo-me, em particular, de um vestido vermelho que fez a partir de uma memória que ela tinha de um vestido da mãe, nos anos 1960, em Angola, que ela usaria como modelo para o figurino de Lurdes Norberto, e depois da Catarina Avelar", contou Ricardo Pais. "Era um vestido de seda vermelho, uma mancha de cor que percorria a peça, criando uma referência que se desdobrava depois nas máscaras usadas pelos miúdos no Carnaval." "A maneira como se misturam essas peças de roupa é outra forma de criar", escreveu Vera Castro em Segunda Pele.

"Cada figurinista tem uma linguagem secreta (ele próprio não sabe muitas vezes definir qual é) que se torna completamente identificável - pode ser a maneira peculiar de tratar alguns detalhes ou de se despojar do supérfluo ou a maneira como combina as cores e as texturas", dizia Vera. Mas a sua "linguagem secreta" residia "no imenso sentido humano, na entrega às coisas, aos espectáculos e às pessoas", afirma Wallenstein. "Ela tinha uma noção clara das fragilidades humanas, e isso dava-lhe uma grande intensidade como ser humano."

Ricardo Pais fala de "um incansável investimento em tudo o que fazia" e Olga Roriz recorda o momento em que os figurinos de Isolda vieram com um metro de tecido a menos. "Foi um acidente e entrámos em pânico, mas ela, como todos os grandes figurinistas para quem um metro a mais ou a menos não é um problema, resolveu tudo muito rapidamente." "Tudo aquilo era pensado ao pormenor", refere Roriz, porque era alguém que entendia os figurinos como um processo em aberto.

"Todas as abordagens são possíveis dentro de um campo de manobra que pode ser amplo ou exíguo na estreita relação que [se] estabelece com quem dirige e com quem veste", escreveu Vera Castro em Segunda Pele. "É preciso estar à escuta da palavra, do olhar e do gesto do outro. Afinal, o espelho."

Se Vera Castro tivesse podido assistir à homenagem que os seus colegas e amigos lhe fizeram, aquando do lançamento de Segunda Pele, teria visto que o seu prego deixou o saco desfeito. a

tiago.costa@publico.pt

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