Uma TAC à ditadura

Foto
Pedro Cunha

Os filmes de Andrei Ujica são lições de História e de cinema. Traduzindo: são lições sobre a arte de manipular. O romeno, autor de "Autobiografia de Nicolae Ceausescu", que esteve em competição no Estoril Film Festival, explica o porquê dos grande ditadores comunistas serem realizadores, encenadores, coreógrafos...

Andrei Ujica nasceu em 1951 em Timishoara, a cidade romena onde se deram os conflitos que originaram a revolução que, em 1989, depôs Nicolae Ceausescu e a ditadura comunista. Em 1981 exilou-se na Alemanha. Professor de Literatura e Teoria dos Media na Academia de teatro e cinema de Karlsruhe, é o director do Instituto ZKM (centro de Arte e Tecnologia dos Media, em Karlsruhe). Em 18 anos realizou três filmes: três lições de cinema, três lições de História, três lições sobre a arte de manipular o real.

Para Ujica, a fabricação de imagens para cinema e TV e a sua preservação gerou fontes suficientes para que a História a partir do século XX possa recorrer apenas à imagem. Mas se aceitarmos que o grande debate ético e estético dos últimos 20 anos no cinema tem sido em redor da linha que separa o documentário da ficção, então Ujica apagou essa linha. "Autobiografia de Nicolae Ceausescu", que esteve a concurso no Estoril Film Festival (estreia comercial em 2011), é uma ficção sem material ficcional; e é um documentário que revela uma encenação totalmente fantasista.

O paradoxo tem uma explicação: apesar de ter morrido há 21 anos, executado por soldados a mando de um tribunal ad hoc, o ditador é mesmo autobiografado neste filme, já que foi ele a encenar e a "oficializar" as imagens que o constituem. Como é que se transforma a derrocada de um país - na economia, na cultura, na política, na barriga e na moral dos cidadãos - numa etérea fantasia coreográfica? "Autobiografia de Nicolae Ceausescu" é uma TAC à mentira.

"Videogramas de uma revolução", que Ujica realizou em 1992 com Harun Farocki, já era sobre o último episódio da história da Roménia comunista, em que se assistia à queda do regime, mas também ao desabar do culto de personalidade que Ceausescu vinha encenando. "Autobiografia..." não exibe apenas a construção do mito, é sobre o acto de manipular a realidade e a História. Os romenos pensam que é um filme só para eles - quem mais poderia entender um filme de três horas sem voz "off" a contextualizar as imagens que descrevem em registo de digressão a passagem de Ceausescu nos comandos de um país? Mas "Autobiografia..." não precisa de ver todas as suas sequências descodificadas em acontecimentos da sociedade romena entre 1965 e 1989. As imagens reproduzem o fascínio e o tédio, o carisma e a banalidade de uma ditadura em que a ideologia ficou reduzida à voz e ao rosto de um só homem. 

Ceausescu foi um dos expoentes do "monoteísmo ateu" em que se transformaram os regimes comunistas. Quando falou pela última vez da varanda da sua residência oficial, para convencer o povo de que as manifestações em Timishoara eram uma conspiração estrangeira, a meio do discurso surgiu um rumor vindo da Calea Victoria, que entrou como uma onda na Piatza Palatului até transformar-se num irrefutável acto de protesto da multidão. Vemos o rosto do ditador a transformar-se: ele queria convencer o povo uma última vez da mentira e o seu povo disse-lhe pela primeira vez a verdade: não acreditava nele. A imagem que captou o acontecimento, e que Ujica incluiu em "Videogramas de uma revolução", é comovente: Ceausescu não encenou aquele momento, como os outros todos. O mito desabou e deu lugar a um ser humano vulnerável...

Ceausescu foi marioneta ou marionetista?

Ele era um crente, e acreditava neste "monoteísmo ateu" que era a ideologia do Estado marxista (ou a ideologia marxista em geral), como a definiu [o filósofo] Peter Sloterdijck. O problema do ditador ideológico é o de acumular funções. Ele é o chefe ideológico, que deve pôr a doutrina em prática e para fazer isso deve anular qualquer instância crítica. Ele é o chefe inquisidor e chefe executivo numa só pessoa.

Uma das possíveis explicações do porquê da ideologia de Estado estar condenada a tornar-se ditadura deve-se ao facto do ditador ideológico ser ao mesmo tempo uma marioneta da sua ideologia e um marionetista dos outros. Ceausescu tem uma qualidade importante para esta posição: as pessoas que o rodeavam caracterizavam-no como um mestre de intimidação. Deram-se vários casos de pessoas em posições de liderança que quase tiveram à beira de um ataque cardíaco, depois de terem uma discussão com ele.

Durante o julgamento de Tîrgoviste comportou-se de acordo com o sentido de heroísmo dos comunistas nos tempos da resistência: não colaborar com o inimigo.

Ele tornou-se tão fundamentalista porque a sua doutrinação surgiu numa era muito perigosa. Ele tinha quinze anos quando foi preso pela primeira vez. Era uma criança que tinha prestado serviços para os poucos comunistas que existiam então na Roménia. É entre os dez e os quinze anos que se pode fazer uma doutrinação forte, como Hitler, com a Juventude Hitleriana, e Estaline, com os Pioneiros, fizeram. É por isso que a sua crença era tão forte e sem compromissos, completamente atípica para a psicologia dos romenos. No fim, ele teve certamente memórias dos primeiros tribunais por que passou, quando foi preso na adolescência e tomou a mesma decisão: não falar com o inimigo.

Durante o funeral de de Gheorghiu-Dej [líder que antecedeu Ceausescu no poder], Ceausescu começa por ser um figurante, depois carrega o caixão; plano a plano, vai-se tornando cada vez mais importante, até assumir o protagonismo.

No protocolo comunista da sucessão [de poder], deu-se esta estranha reaparição do mote medieval "o rei morreu, viva o rei!". No caso do protocolo comunista, o homem que faz o discurso das exéquias será o próximo líder; outro pormenor: aquele que carrega a parte da frente do caixão, do lado esquerdo, será ele o próximo. Uma das razões para este funeral tomar tanto tempo no filme... é como dizer: podes esperar um longo épico com ascensão e queda, como "O Padrinho II". Do ponto de vista histórico, o funeral de Ghiorghiu-Dej foi o último no bloco Leste a ter uma "mise-en-scène" igual ao funeral de Lenine, que foi a maior cerimónia protocolar do mundo comunista. É uma cerimónia que só aconteceu quatro, cinco vezes.

Depois das imagens com a visita à China de Mao e a Pyongyang, em "Autobiografia...", fica-se com a ideia de um ditador a dirigir o país como quem dirige um filme musical.

Todos os líderes comunistas tinham uma fixação com o papel da arte no aparelho de propaganda. A ideologia marxista em que acreditavam consideravam-na uma ciência, uma súmula do conhecimento da História e da Cultura da sociedade, uma ciência portanto com leis objectivas. Ceausescu estava convencido de que tudo o que acontecia era um acidente, e que leis objectivas, observadas por esta ciência da sociedade humana, seriam accionadas e todos esses acidentes seriam ultrapassados.

Na medida em que acreditava numa ideologia que punha em prática enquanto ciência, também acreditava que a arte mais não era do que um movimento para pôr em cena a crença na verdade última da sociedade humana. A um nível rudimentar, Ceausescu era teórico autodidacta do marxismo que pretendia pôr em prática. Um dos poucos erros políticos que cometeu foi o de ter ficado fascinado com a Revolução Cultural de Mao e com o aperfeiçoamento formalista de Kim Il Sung, na Coreia do Norte.

Acreditou que podia importar para a Europa essa forma aperfeiçoada da arte de propaganda. São sociedades com bases colectivistas e não individuais. Experiências como Revolução Cultural ou a arte de propaganda de Kim Il Sung funcionaram porque correspondiam a uma mentalidade, a uma educação, a um padrão cultural com uma tónica no colectivismo. Na história cultural da humanidade, Kim Il Sung ficará como o maior realizador e produtor de arte de propaganda do século XX.

Com Ceausescu no papel de seguidor... há dois anos, numa exposição de fotojornalismo com imagens inéditas do regime comunista, no Teatro Nacional de Bucareste, havia uma foto tirada num estádio, durante o ensaio de uma coreografia: ao fundo, uma multidão que enche o estádio cria imagens com cartões; em primeiro plano, um rapaz a ler, com um cartão por cima da cabeça.

Essa foi a grande diferença. Na Coreia do Norte, com todos os homens reduzidos à condição de pixel num ecrã colectivo, não ocorre um único erro durante o espectáculo. Mas aqui na Europa, quando são obrigadas a fazer o mesmo, as pessoas por baixos dos painéis comem uma sanduíche, lêem um livro, pensam noutra coisa qualquer. É aí que se dá a ruptura.

As imagens da recepção a Ceausescu em Pyongyang impressionam pela perfeição e  de desenhos criados em movimentos coreográficos. Mas o que mais impressiona é o espectáculo ser feito apenas para duas pessoas: Kim Il Sung e a sua visita. Onde encontrou as imagens?

É uma reunião de material de televisão e do arquivo nacional de cinema, a partir de duas visitas, em 1978 e em 1982. Era sempre o mesmo ritual, mas o aparato aumentava a cada visita. Kim Il Sung foi o principal responsável por este tipo de paradas. Ele [Ceausescu] ficava pálido de inveja com esta síntese entre a estética nazi (tal como a filmou Leni Riefenstahl), a cultura proletária estalinista, e os musicais de Busby Berkeley em Hollywood - de quem Kim Il Sung era fã.

A paisagem romena faz hoje lembrar os bastidores de um plateau ao abandono. Restam os vestígios do espectáculo de um país em desenvolvimento acelerado, entretanto interrompido. Vinte e um anos depois da Revolução é possível viver na Roménia?

Estou certo que é possível. Nos últimos dois anos trabalhei lá para este filme. Boa parte da "nova emigração romena", aquela que partiu do país na última década, teria provavelmente uma situação melhor na Roménia do que aquela que tem no estrangeiro, e isso também seria mais benéfico para o país. A situação não é tão histérica como os media fazem parecer.

As condições de diálogo são suficientes?

Politicamente é um desapontamento. Está a ser uma longa transição, a nova geração de políticos é feita de diletantes, não existe uma classe profissionalizada. O maior obstáculo ao desenvolvimento mais acelerado da Roménia para um Estado democrático moderno reside na inexistência de uma justiça independente.

Mas para além da classe política, como vê a cidadania?

A actual crise que se estende quer a Ocidente quer a Oriente da Europa é uma crise intelectual generalizada. É um facto que no fim do século XX a última ideologia utópica foi o marxismo e implodiu, e com ela a última construção intelectual vinda do iluminismo. O discurso intelectual ficou desacreditado. Os filósofos que desde Platão sonhavam em chegar ao poder conseguiram chegar ao poder no séc. XIX, mas as consequências disso no século XX foram catastróficas. A influência dos intelectuais actualmente é muito pequena e são incapazes de coordenar-se no que respeita aos conflitos entre esquerda e direita. Com a implosão do marxismo os problemas não podem mais resolver-se de acordo com este eixo [esquerda-direita].

Sugerir correcção
Comentar