Ana Bela Baltazar Os ouvintes não param pa? ra pensar nos surdos

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O Dicionário de Língua Gestual Portuguesa, da Porto Editora, tem 5200 entradas em português e 15 mil fotografias que as ilustram. O objectivo da intérprete de língua gestual Ana Bela Baltazar foi aproximar surdos e ouvintes.

O Dicionário de Língua Gestual Portuguesa, lançado há dois meses, tem sido muito bem recebido. Ficou surpreendida?

O dicionário acaba por ir ao encontro de populações e necessidades diferentes. É para quem está a aprender ou quer aprender língua gestual e, por outro lado, é para a própria comunidade surda, uma vez que a comunidade tem grandes dificuldades de interpretação de português. A maior parte dos surdos não consulta um dicionário de português, porque esbarra na explicação. Neste dicionário, está tudo explicado [em língua gestual] ao máximo de pormenor possível. E como é uma língua que exige movimento e expressões traz, em complemento, um DVD.

Este dicionário faz uma ponte entre surdos e ouvintes. Acha que há poucas iniciativas neste sentido?

A pessoa surda pode passar por nós na rua durante anos e, se não tivermos necessidade de falar com ela, nunca vamos saber que é surda. Não é como um invisual ou um deficiente motor, não é tão visível. Nós, ouvintes, nem sequer paramos para pensar como será o dia-a-dia dos surdos. Como é que comunicam? Eu faço inúmeros serviços para o Ministério da Justiça e não é a primeira nem a segunda nem a terceira vez que em fase de julgamento o juiz se vira para mim e diz: mas pergunte-lhe lá quais foram as palavras insultuosas que ele ouviu. Os surdos não têm um problema de acessibilidade arquitectónica, mas têm de acessibilidade de comunicação e informação.

Uma pessoa com surdez necessita de um elo - normalmente, um intérprete. Acontece que por vezes as pessoas nem sequer vêem a necessidade de chamar um intérprete, pensam: eu escrevo, ele lê e responde. Isso não funciona em 95 por cento dos casos. Na justiça, se há um interveniente surdo, o tribunal chama um intérprete. Mas um surdo vai ao hospital e ou leva alguém de família ou tem de custear o intérprete. Por vezes, nos hospitais, nem querem deixar entrar o intérprete, não há sequer sensibilidade para isso. Actualmente, há cada vez mais ouvintes a querer aprender língua gestual. Estou ligada à Associação de Surdos do Porto, onde se promovem cursos, e vamos às escolas sensibilizar os jovens para o que é a surdez e o que é comunicar em língua gestual.

Como é que evoluiu a língua gestual portuguesa?

A língua gestual portuguesa é idêntica à sueca, porque houve partilha entre as comunidades de surdos dos dois países. Os surdos - nas faixas etárias a partir dos 50 anos - aprenderam em dois grandes colégios internos: o dos rapazes, em Lisboa, e o das meninas, no Porto. Nos dormitórios, comunicavam à noite e às escondidas, porque era proibido mexer uma mão. No entanto, a língua gestual foi proliferando, passando de geração em geração, e evoluindo. Neste momento, estamos a ter muitas influências de outros países, o que me está a preocupar - porque a língua tem a ver com a comunidade e a cultura do próprio país. Por isso não existe uma língua gestual universal.

Há alguns anos, fui convidada para participar num projecto em Angola, porque Angola não tinha uma língua gestual, e pensaram que, porque nós falamos português e temos uma língua gestual portuguesa, só tínhamos de a disseminar. Errado. Deixe-me dar-lhe um exemplo: para dizer "Janeiro", fazemos assim [faz o gesto de limpar um vidro embaciado]. Isto não faz sentido em Angola. A língua gestual sofre influências da língua oral, mas também da cultura.

Como é que a Ana Bela se interessou por esta área?

Tinha uma amiga que estava na Associação de Surdos [do Porto] e eu, que nunca tinha falado com um surdo, fui um dia com ela, e, até hoje, nunca mais de lá saí. Dá-me imenso prazer comunicar em língua gestual. Não é só o gesto, é a expressão, o movimento, o ritmo. A coisa mais deliciosa que pode haver é cantar uma música em língua gestual. a

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