João Onofre claro escuro

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Canções, homens cegos e quedas ao som de "Good Vibrations". No Centro de Artes Visuais, em Coimbra, "Lighten Up" reanima a relação do público com a obra inquieta de João Onofre

Um campeão de queda livre tenta alcançar em pleno salto o equilíbrio perfeito. Uma tela negra deixa entrever um estranho conjunto de palavras. Vários coveiros sem farda e de óculos escuros posam sorridentes para a objectiva fotográfica. Um extraterrestre fala da sua carreira cinematográfica. Sejam bem-vindos a "Lighten Up", a nova exposição de João Onofre (Lisboa, 1976), que reúne desenhos, dois filmes e uma série fotográfica já a partir de amanhã, no Centro de Artes Visuais (CAV) de Coimbra. A maior parte dos trabalhos, realizados entre 2006 e 2010, só agora é apresentada no circuito nacional, com curadoria de Marc-Olivier Whaler, director do Palais Tokyo de Paris.

É um balanço que actualiza a relação do púbico português com o trabalho do artista. "Desde 2007 que não mostrava numa individual, mas continuei a trabalhar e a participar em exposições colectivas, tanto no estrangeiro como em Portugal. Há todo um conjunto de trabalhos que se foi acumulando e que agora decidi apresentar". A perspectiva oferecida por "Lighten Up" é, sublinhe-se, parcelar, por isso existe um livro que documenta e revela outros momentos da produção de João Onofre, nomeadamente os relacionados com a linguagem e a desmaterialização do objecto artístico trazido pela arte conceptual: as séries "Five Words in a Line" (2006), as frases publicadas nas secções de anúncio de jornais (2004), ou as fotocópias das fotocópias das primeiras páginas dos jornais "The Guardian" e "La Repubblica" (os factos jornalísticos reduzidas a manchas escuras e violentas em "The Grey Guardian" e "La Repubblica Griggia"). Numa frase, tautologias transformadas em desenhos ou desenhos que dão origem a tautologias. (E ainda sobre o livro, uma curta nota: para além dos textos do curador, de Carlos Vidal e de Giorgio Agamben, inclui uma compilação de temas musicais inspirada pelas obras de João Onofre e realizada pelo músico alemão Joakim, mentor da editora Tigersushi).

Noites sem fim

Voltamos à exposição. Também aqui encontramos um interesse pela linguagem, com a série "Black Drawings" (2008). Um olhar distraído discrimina simples monocromos negros. Olhamos de novo. A titulação faz referência a versos e coros e certas zonas de luz revelam palavras, frases: "acangh't you see I'm red-a well hell you know I'm red-a" ou "nomorwoarandnomorwoarandohhohoohh (nothing)". Arriscamos: canções? "Vocalizações, [de David Bowie, Michael Jackson, Kylie Minogue e do vocalista dos Cannibal Corpse]", corrige João Onofre. "Escolhi-as porque os vocalistas quebram a linguagem para melhorar a sua interpretação e estas, em especial, porque usam as palavras 'nothing' ou 'see'. Quando nos relacionamos com os desenhos isso torna-se muito claro. Conseguimos ver as letras, mas com dificuldade, e a linguagem volta a ser destruída". Com efeito, não vale a pena tentar descodificar. Restam o jogo com a linguagem e o acto de ver ou imaginar.

A intimidade da arte com a cultura pop sempre caracterizou o trabalho de João Onofre e em "Lighten Up" reencontramo-la noutras obras. No desenho "Untitled (The worst is coming Light sapphire version), 2007", que subverte um aforismo do artista italiano Alighiero Boetti, nome fundamental da Arte Povera, negando não só o seu optimismo, como o seu suporte material (em vez de tecidas em bordado, as palavras são desenhadas com o cristal Swarovski, habitualmente usado por celebridades e estrela da música pop). No filme "Untitled (Levelling a spirit level in free fall feat. Dorit Chrysler's" (2009), musicado com a melodia de "Good Vibrations", reduzida ao som do theremin e de um "downtempo". Ou em "Untitled (La nuit n'en finit plus)", uma performance da canção homónima de Petula Clark que decorrerá amanhã nas calabouços do Pátio da Inquisição (onde fica situado o CAV). "É uma versão de 'Needles and Pins' dos The Searchers, que chegou a passar pelos Ramones. A Petula Clark manteve a melodia, mas alterou a letra. Sozinha, enquanto os outros andam de mãos dadas, ela canta que a noite nunca acaba. Trata-se de um sentimento estranho à sua condição [quando Petula Clark escreveu a letra, já não era uma adolescente] e gostei desse contraste. Daí ter escolhido a Beatriz Mateus, uma jovem, para cantar o tema 'a cappela'".

Coveiros e extraterrestres

Ao uso da cultura pop como simples matéria-prima ("que já está dentro de ti", diz-nos o artista) sucede-se o interesse pela documentação da performance. Em "Untitled (Levelling a spirit level in free fall feat. Dorit Chrysler's" (2009), um campeão de queda livre executa cinco saltos e enquanto cai tenta equilibrar a queda com um nível de bolha (instrumento concebido para o efeito). A situação física (e o seu esforço inglório) traz à memória a performance de "Box sized DIE featuring Sacred Sin" (2007), em que João Onofre encerrou uma banda de death-metal num cubo de aço pedindo-lhe para tocar o máximo de tempo possível. "É uma analogia interessante. Mas, para serem boas, as performances às vezes não precisam de ser heróicas. Talvez isto seja um comentário às intervenções de artistas como o Vito Acconci, Chris Buden ou Marina Abramovic. Julgo que o sentido do herói sempre esteve nelas. Para o meu trabalho prefiro apenas pessoas, a fazerem as coisas que fazem diariamente, como o coro de 'Instrumental Version' (2001) [que canta o tema " The Robots" dos Kraftwerk]". Daí a escolha da melodia dos Beach Boys, com a ajuda preciosa da Dorit Chrysler [reconhecida instrumentista austríaca]: "Retira essa carga heróica, acompanha muito bem as quedas, traz uma cadência à imagem. E a evocação do theremin interessou-me. É um instrumento que se toca com as mãos colocadas para a frente, no ar, sem contacto físico. Como se estivéssemos a tocar numa imagem.".

Em "Every Gravedigger in Lisbon" (2006) há uma imagem que não se toca, nem se vê: a da morte. O artista fotografou todos os coveiros municipais de Lisboa nos respectivos cemitérios. Posam descontraídos e em grupos, em fundos de cores neutras e escuras. O pendor documental das imagens parece assegurado, não fosse um pormenor: todos os retratados usam óculos escuros. É a representação da morte que João Onofre interroga. Ou a representação da sua banalização. Como se, lidando quotidianamente com a morte, os coveiros se tornassem cegos perante ela; ou a própria morte deixasse de produzir imagens (espectros, fantasmas, corpos).

Com "Thomas Dekker, an Interview" (2007), chegamos ao extraterrestre que fala da sua carreira cinematográfica. Num vídeo de 16 minutos, produzido em Los Angeles, João Onofre entrevista o jovem actor americano Thomas Dekker, que em 1995 desempenhou um papel em "A Cidade dos Malditos", de John Carpenter. Era a única criança alienígena que sentia afectos pelos humanos e que, no fim, sobrevivia. Ora o que faz o artista? Deixa um espaço ambíguo para produção de sentido: interroga o actor como se este ainda fosse um "alien", e aquele vai discorrendo sobre a sua vida. O real e a ficção confundem-se, e a criança-actor pode ser a criança-alien.

Em suma, a obra de João Onofre continua delicadamente violenta, perturbadora e indiscernível. A provocar a ansiedade do espectador, nos limiares da visibilidade, da significação, do real. Da luz e da escuridão.

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