"A justiça universal está em retrocesso"

Baltasar Garzón, o superjuiz que levou a outra dimensão o conceito de justiça universal, admite que este está em retrocesso. A consciência das sociedades é cada vez maior. A resistência do poder é por isso também maior.Por Paulo Moura (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia)

O juiz Baltasar Garzón já não está activo em Espanha. Durante mais de uma década, sempre sob forte crítica e ameaças, acusou o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, investigou os crimes da ETA e também do Estado espanhol contra a ETA, abriu um processo contra a Al-Qaeda e outro contra os americanos em Guantánamo. Mas, quando começou a investigar os desaparecimentos em Espanha durante o franquismo, foi suspenso das suas actividades. Trabalha agora para o Tribunal Penal Internacional (TPI).

Este fim-de-semana, foi homenageado no Estoril Film Festival, que exibiu dois documentários de Vicente Romero com a participação do juiz sobre as ditaduras argentina e chilena e a luta contra o terrorismo. Falámos com ele antes da sua masterclass sobre a importância das imagens na formação da memória colectiva.

Telavive pediu a Londres para alterar a lei sobre jurisdição universal, para que os políticos israelitas possam viajar livremente pelo mundo, sem correrem o risco de serem detidos por crimes contra a humanidade. A Espanha também alterou a lei. O conceito de justiça universal está a regredir?

Vivemos um momento complexo. Nos anos 90, houve uma grande projecção da jurisdição universal.

Principalmente por sua causa.

Sim. Mas nestes últimos dez anos, e mais ainda nos últimos três, assistimos a uma inversão dessa tendência, no sentido de colocar limites. A justiça universal está em retrocesso. Eu não digo que isso é mau, nem bom. Porque a justiça universal é um caminho que se está a fazer, e ninguém tem a varinha mágica para dizer por onde se deve ir. O que é preciso é aceitar isso, e que é um caminho que temos de fazer todos juntos. Trata-se de um último reduto contra a impunidade. É esse o âmbito da justiça universal.

Mas parece que ela só funciona desde que não afecte interesses poderosos.

Isso vai ser sempre assim. Os interesses políticos, diplomáticos, económicos estão sempre presentes, quando se trata de justiça universal. Porque normalmente os casos têm uma grande transcendência subjectiva nos países respectivos. Quando se trata de países de segunda ordem, isso não importa. Mas quando são de primeira ordem, começam os problemas. Mas eu acho inaceitável que haja pressão política de um país sobre outro, para alterar uma lei.

Londres parece que vai ceder.

A interpretação que está a ser dada pelos poderes legislativo e executivo à justiça universal está claramente em retrocesso.

Mas depende sempre muito também da interpretação que lhe é dada pelo juiz.

Sim, como acontece em todas as leis, embora nenhum juiz leve as suas convicções pessoais ao ponto de influenciar uma decisão judicial, sem se apoiar nas normas.

Mas estas são normas muito vagas, que permitem mais latitude de interpretação.

Obviamente. Depende se o juiz está mais comprometido com a linha dos direitos humanos, ou se interpreta a lei num contexto estritamente local. Essas são as duas posturas actualmente em confronto. Uma que advoga que se deve interpretar a lei num sentido mais universalista, porque os crimes e as vítimas são universais, outra segundo a qual o que importa exclusivamente é o território e a soberania.

É essa a postura que prevalece na lei espanhola desde Novembro do ano passado.

Sim, mas é sempre possível uma interpretação que pode permitir prosseguir as investigações, sem que se tenha necessariamente produzido a circunstância de haver vítimas espanholas no momento inicial. Temos é de...

Encontrar uma vítima espanhola...

Não. Mas nunca é dito que tem de haver envolvimento espanhol desde o princípio. Pode acontecer durante o procedimento... Enfim, há mecanismos de interpretação...

As suas interpretações foram muito diferentes das de outros juízes, a partir da mesma lei.

Eu fiz as interpretações que se depreendiam das normas que havia.

Eram as normas que o impunham, ou agiu de acordo com um imperativo moral pessoal, fazendo uso de uma interpretação sui generis da lei...

Era a minha obrigação fazer o que fiz. Não ter investigado e actuado é que teria implicado uma responsabilização penal, como juiz. É exactamente o contrário do que me acusam.

É mais fácil agir no TPI, para o qual trabalha, desde que foi suspenso em Espanha?

O princípio de aplicação da justiça universal é diferente. É para os casos em que não se pode aplicar o Estatuto de Roma [o tratado que instituiu o TPI, em 1998], porque, por exemplo, o país em questão não o assinou. Quando o caso se refere a factos cometidos em países signatários, o TPI tem preferência. Por exemplo, se a Espanha está a investigar um facto que diz respeito ao Chile, que assinou o Estatuto de Roma, então é o TPI que tem de actuar. Se não o fizer, compete à Espanha fazê-lo. Se é um país que não está no Estatuto, pode aplicar-se o princípio de justiça universal por qualquer outro país cuja legislação o permita.

Serão possíveis acções como a que lançou contra Pinochet?

Podem sempre fazer-se julgamentos dessa índole. Actualmente, em França, vão julgar-se casos contra a ditadura argentina. Também aconteceu em Itália. Existe sempre a possibilidade, porque o princípio da justiça universal é o último reduto contra a impunidade.

É mais difícil quando se investigam crimes cometidos no próprio país. No seu caso, os problemas sérios começaram, quando decidiu investigar os crimes do franquismo.

Sim. Fui suspenso. Mas achei que era necessário fazê-lo.

Uma exposição sobre Hitler, em Berlim, está a levantar uma discussão, na Alemanha, sobre a responsabilidade dos cidadãos nos crimes do regime nazi. Em Espanha ainda não se pode reflectir sobre a responsabilidade nos crimes do franquismo?

O que a exposição de Hitler está a provocar é uma reflexão sobre a indiferença. Mas pelo menos há uma discussão. Em Espanha não se discutiu nada. Houve uma transição, mas nunca se debateu a questão dos desaparecidos do franquismo. Há muita gente que não quer que se investigue isso, porque acha que estamos bem como estamos. Falam decerto da sua perspectiva, não na dos familiares da vítimas. Há milhares de vítimas e famílias que ainda não puderam dar uma sepultura aos seus entes queridos.

Houve receio de que algumas pessoas ainda pudessem ser incriminadas?

Não. Acho que foi por razões ideológicas. Acham que é preciso voltar a página. Mas para sarar uma ferida é preciso primeiro limpá-la.

A Espanha ainda não limpou as feridas do franquismo.

Não, não. Dizem que isso iria abrir fracturas na sociedade. Mas a Espanha é uma democracia consolidada. Em 1975 ou 76, poderia ser complicado. Hoje não.

O Conselho Geral do Poder Judicial considerou que os crimes do franquismo estão abrangidos pela amnistia.

Quando se ditaram as normas da amnistia, foi dito que em nenhum caso essa legislação se aplicaria a crimes atrozes. É lógico. Não pode haver amnistia para crimes contra a humanidade, genocídio. O Brasil, o Uruguai, a Argentina estão a debater a mesma questão. Em relação à Espanha, o Conselho de Direitos Humanos da ONU diz que se devem investigar os crimes da época do franquismo e o desaparecimento de 20 mil a 30 mil crianças, entre 1937 e 1951. Creio que no mundo inteiro, do ponto de vista dos tribunais internacionais, há um consenso de que as normas de impunidade têm de desaparecer.

Mas isso estará sempre dependente de decisões políticas.

Sim. Mas são os juízes que devem interpretar essas leis de amnistia, de acordo com o direito internacional. E essa interpretação deve ser independente, e não estar sujeita a coerção política.

Em Espanha, a opinião pública estava do seu lado?

Houve um problema de informação. Foi explicado que aquela investigação iria acordar os demónios da ditadura. Ora, não se tratava de acordar demónios, mas de apurar o que aconteceu a 152 mil pessoas, das quais não há notícias.

Quando a opinião pública está bem informada sobre as questões, o trabalho do juiz é mais fácil?

Sim. Fazer uma investigação num clima hostil é mais complicado. Quando os meios de comunicação explicam às pessoas o que está em causa, há mais compreensão e cooperação para investigações como as que eu fiz.

O trabalho dos artistas é também importante dessa perspectiva? Qual o papel de filmes como os exibidos neste festival?

O material recolhido para documentários pode ser usado pelos juízes. As imagens, os documentos cinematográficos, são determinantes em processos de recuperação de memória colectiva. Mas estas obras são também fundamentais para consciencializar as pessoas. Um filme sobre a ditadura argentina, ou Pinochet, ou o Iraque tem muito mais impacto junto das pessoas do que uma investigação judicial. E cria consciência, para que quando se iniciar uma investigação sobre esses factos os cidadãos estejam lá para exigir que ela se faça.

Quais são os limites da justiça universal? Poderá algum dia julgar-se, por exemplo, a discriminação da mulher em países muçulmanos?

A violência de género é algo que está cada vez mais a ser visto de forma específica. O tribunal para a ex-Jugoslávia percebeu claramente que a violência sexual, contra a mulher, deve ser objecto de uma atenção específica. O mesmo se está a passar quanto à Argentina, o Congo...

Mas trata-se de crimes em situações de guerra. E quanto às situações "normais", aceites pelos regimes e pela própria mentalidade dominante no país?

É o mesmo problema do que se passa nas ditaduras. No Sudão, por exemplo. Omar Al-Bashir continua no poder, apesar de ser objecto de um mandado de captura pelo TPI. Como se pode entender isto? Ou como se pode entender que haja tortura em Abu Graib ou Guantánamo? Ou...

A justiça universal é irrealista.

Eu responderia assim: o que se fez em 1998 no caso de Pinochet? Nada. O que se fez daí em diante? Muitas coisas. Abriu-se um caminho. E porque aconteceu aquilo naquele momento? A verdade é que aconteceu. Houve um juiz qualquer que ordenou aquela detenção. Poderia ter sido outro juiz? Sim.

Ou não.

Ou não. Mas aconteceu. Também poderia ter sido dada a ordem de detenção e a Inglaterra não a ter cumprido.

Há um caminho que está a ser feito.

Estamos a avançar. E nesse caminho a consciencialização das sociedades é cada vez maior. E isso que implica? Que as resistências do poder vão ser também maiores.

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