O marionetista e a marioneta

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É um objecto avassalador "Autobiografia de Nicolae Ceaucescu", de Andrei Ujica. Imagens de arquivo pesquisadas nos acervos da televisão e do serviço cinematográfico estatal romenos desenham a ascensão e queda do líder comunista. Um grande filme sobre a manipulação, está em competição no Estoril Film Festival. Passa ainda dia 12

O único privilégio de assistir ao funeral de alguém é talvez o de podermos imaginar como vai ser o nosso. As primeiras imagens da "Autobiografia de Nicolae Ceausescu", de Andrei Ujica (sábado, dia 6, 12h, Centro de Congressos do Estoril; dia 12, 18h, Casino Estoril - filme em competição no Estoril Film Festival) são do Natal de 1989, pouco antes de o casal Nicolae e Elena Ceausescu ser condenado à morte por um tribunal militar improvisado em Târgoviste (a que chegaram de helicóptero, fugindo de uma multidão em cólera que se juntara na Piatza Palatului, Bucareste).

As imagens seguintes são de 1965, uma multidão em correria, até se estabilizar numa ordenada fila que serpenteia pelas ruas e se interna no edifício onde o corpo de Gheorge Ghiorghiu-Dej, então o líder comunista romeno, está em câmara ardente. Entalado entre soldados, um jovem de olhar humilde, belos cabelos ondulados e porte elegante, carrega o caixão de Gheorghiu por entre a multidão, à saída para a Piatza Palatului - a porta que acabou de franquear será a da sua residência nos 25 anos seguintes.

Mais à frente, num funeral típico de aldeia, vê-lo-emos, Nicolae, a carregar o caixão da mãe. Os cabelos agora prateados, o olhar ainda humilde e o porte elegante.
Mas na hora da sua própria morte o camarada Ceausescu (ler "tcheauchescu") não teve direito a honras de Estado nem a uma cerimónia familiar. Para ele não houve multidão nem grandiosidade, nem regresso às origens camponesas. Vinte e um anos depois da sua despachada execução, aquilo que vemos no documentário "Autobiografia de Nicolae Ceaucescu" não é nem a banalidade do mal nem o julgamento final. Essas imagens de 1989, em que o casal Elena e Nicolae não sabe como reagir aos seus julgadores, se com o paternalismo que usa para com um filho problemático à beira de cometer um acto irreflectido, se com a firmeza para com um jovem insubmisso e que já ultrapassou os limites, essas imagens de patrões reféns na sua própria casa cabem antes num outro filme de Ujica, realizado em colaboração com Harun Farocki, "Videogramas de uma revolução", de 1982 [dia 13, 18h30, Museu Paula Rego]. O que vemos em "Autobiografia de Nicolae Ceausescu", com o beneplácito cooperante do Ocidente desenvolvido, é, antes, como uma nação inteira participou activamente no delírio de um homem que durante quase 25 anos transformou um país numa brincadeira infantil. Walt Disney fez os seus filmes e criou a Disneyland, mas Nicolae Ceauscescu montou o seu parque de diversões privado numa área de 238.391 quilómetros quadrados com 20 milhões de figurantes.

Uma fábula

Podemos chamar ao documento coligido por Andrei Ujica uma autobiografia assistida que dura três horas hipnóticas: Nicolae Ceausescu filmado como ele queria, nas circunstâncias por ele escolhidas. Ujica dá-nos a ver uma fábula, um conto de fadas em que realidade e ilusão são os dois fios que tecem uma só malha: as crianças agradecem pela sua felicidade, o 1º de Maio cobre-se de flores, dança-se no ano novo, festejam-se as colheitas de 1966, uma multidão compacta contorna o desenho dos carrosséis, os representantes das nações comunistas são recebidos no Muzeul Satului (museu a céu aberto, no Parque Herastrau, onde figuram casas em tamanho real representando as diversas regiões da Roménia), Charles de Gaulle aterra em Bañeasa (onde actualmente se fazem voos low-cost), Alexander Dubcek agradece "a amizade e as flores", sucedem-se as recepções, os banhos de multidão, os discursos, os aplausos.

Moscovo destrói a Primavera de Praga e o amigo Dubcek é saneado. Ceausescu, na varanda da sua residência, dá uma manifestação de força para o exterior. A multidão reunida na Piatza Palatului em apoio à Checoslováquia é um gesto de dissidência política.
Orquestra-se o mito, para exportação. Durante a década seguinte Nixon visita Bucareste e quando Ceaucescu visita os EUA Jimmy Carter faz o seguinte elogio: "O povo dos EUA sente-se honrado por ter convidado um grande líder de um grande país. É um grande privilégio para mim ter a oportunidade de aconselhar-me com um líder nacional e internacional como o nosso convidado. A sua influência enquanto líder romeno e através do mundo internacional [sic] é excepcional." Washington também lhe oferece um banho de multidão (versão descontraída). Tal como a China, acompanhado por Mao (versão eufórica). Tal como Inglaterra, onde a carruagem que carrega o Querido "Conducator" e a Rainha passa em frente a uma sala de cinema que exibe "Garganta Funda" (versão agradável).

Cresce a aura do "filho de camponeses", como ele se define, e soa a liturgia o coro que entoa "Multsi ani, traiasca" por ocasião dos seus 55 anos. Sucedem-se novos títulos e cargos, Ceausescu transcende o seu papel, a sua visão é a de um país em vias de desenvolvimento que ele também quer ver transcendido. Brejnev, ternurento, faz-lhe uma festa no rosto, depois senta-se a seu lado num sofá, e, enquanto fuma um cigarro, debruça-se sobre o camarada romeno em íntima cavaqueira, que o som não capta.

Palavras do realizador, Ujica, à revista "Cinemascope": "Não há propaganda que consiga fazer uma encenação completa a partir da realidade. Atrás ou ao lado das imagens descobrem-se fragmentos da vida real (...), as imagens e cenas de propaganda também são vivas. Simplificamos as coisas, mas estas cenas são parte da vida não apenas de Ceausescu mas de toda esta gente - quando perdiam horas a fio para irem a uma parada, isto era uma parte importante das suas vidas."
As paradas são uma parte integrante do modo de vida romeno durante o comunismo. Os regimes comunistas, ou tão somente ditatoriais, realizam-se naquilo que de mais profundo têm para dar numa parada. A simetria, a multidão enquanto um só corpo articulado e ordenado, com uma direcção clara e inequívoca, a desenhar formas, caminhos, é algo que inspira reverência e êxtase. Nos anos 60, têm ainda uma estética militar, acrescentada de demonstrações atléticas risíveis. Mas na década seguinte Ceausescu viaja até ao Extremo-Oriente e na Coreia do Norte assiste a paradas que atingem níveis de elaboração causadores de estados de comoção. As ruas tornam-se espaços coreografados: manchas coloridas onde se adivinham corpos humanos fazem e desfazem formas geométricas, efeitos ópticos; as bancadas de um estádio são ocupadas não por espectadores, mas por um ecrã humano que gera imagens animadas através da manipulação de bandeirinhas, cartões e lenços. Ceausescu assiste à narração ilustrada da história do seu próprio país. E desenha na sua imaginação influenciável, de criança tímida mas competitiva e finalmente temerária, o passo seguinte: também ele quer cerimónias abrilhantadas por impressionantes ecrãs humanos. Milhares de pessoas, durante meses, são deslocadas dos empregos durante metade do dia para ensaiarem estas imagens animadas em que um ser humano corresponde a um "pixel".

1977 é o ano do terramoto. A providência dá a mão ao "conducator". A visão de uma cidade moderna, futurista, sem a incómoda sombra da herança burguesa, que testemunhou em Pyongyang... mas não! Falso alarme! Bucareste fica parcialmente destruída (guarda desde então o aspecto de uma cidade desengonçada, os seus edifícios parece que foram abanados - e foram). Boa parte dos edifícios destruídos, no entanto, já haviam sido erguidos pelo comunismo. As casas com quintais mantêm-se teimosamente.

Cerca de 30 mil habitações serão removidas para implementar a mastodôntica Casa da República. Com o fim do regime é rebaptizada Palácio do Parlamento, mas a população de Bucareste no que respeita aos nomes oficiais é parecida com a lisboeta e toda a gente conhece o edifício como Casa Poporului (casa do povo).
Há uma cena em "Autobiografia de Nicolae Ceaucescu" que parece concebida numa parceria de Jacques Tati com Stanley Kubrick: Ceausescu visita a maqueta com os projectos de modernização da cidade. Apesar da escala, as dimensões são colossais e é instalada uma plataforma que desliza por cima da maqueta. Anos depois, as fundações da sua futura casa (nunca chegará a habitá-la) impressionam: "É muito maior do que na maqueta!"

Ceausescu não se ficou pela sua casa. Toda a área foi redimensionada e construída de raiz. Impera o Boulevard Unirii, com as suas fontes a perder de vista para lá da Piatza Unirii, uma série de edifícios oficiais que ficaram inacabados, fachadas grandiosas num pomposo estilo sem estilo. Fachadas: basta contornar as grandes avenidas e eis que é revelada a encenação: não passam de prédios, banais blocos de betão construídos à pressa e que tapam a visão dos bairros limítrofes a Sul que foram poupados.

As tristonhas avenidas cinzento-acastanhadas que se sucedem pelo resto da cidade, como um pesadelo aborrecido, servem também de biombo a uma Bucareste alternativa em que se vive uma atmosfera de aldeia, fazendo lembrar que por trás da aparência urbana boa parte da população vem do campo. Os mercados que ainda sobrevivem são disso um exemplo, com os camponeses a venderem legumes e fruta da época e os queijeiros de bata branca e chapéus ovais de feltro, de faca empunhada com uma prova de queijo na ponta. A cena em que Ceausescu prova um pedaço de "brânza proaspata" é um ritual comum a todos os clientes ainda hoje: só levar depois de provar.

Entre Pyongyang e Hollywood

Em rigor, Ceausescu não é muito diferente da figura paternalista de um cacique de província. A diferença está na escala, e nos meios à sua disposição. A ele foi-lhe permitido sonhar e executar a visão do sonho. A Roménia dos anos 70 poderia ser - e foi - o "missing link" entre Pyongyang e Hollywood. O episódio do XII Congresso do Partido Comunista Romeno (PCR), em que em que Constantin Parvulescu, membro fundador do PCR, o acusa de ter convocado o congresso para forçar a sua reeleição no comité central, pondo os interesses pessoais à frente dos do partido e do país, dava a entender o que vinha acontecendo. O culto da personalidade gerara uma figura insubstancial, logo intocável. Tão perfeita como uma parada, a audiência na Sala Palatului levanta-se num só movimento e entoa "Ceausescu shi poporul", num loop que se repete até afundar de regresso à insignificância o gesto individual de Parvulescu.

Com o esfriar das relações externas e uma dívida apavorante (dez mil milhões de dólares aos EUA), os anos 80 são os do isolamento da Roménia e de um projecto que de tão louco resultou: saldar a dívida numa década (Ceausescu foi morto antes de acabar a sua nova casa, mas depois de a Roménia pagar a totalidade da dívida). São os anos em que a produção interna se destina à exportação. Ceausescu supervisiona o país com a energia de um capataz: observa os efeitos de destruição das cheias, intima os escritores a escreverem poesia social e revolucionária, e não apenas abstracções e poemas de amor; repara nas espigas ainda com grãos depois de serem debulhadas e questiona o construtor da debulhadora nova se não é possível construir uma máquina que evite o desperdício; entra numa padaria, confere o peso do pão e chama à atenção para o facto de a qualidade do pão ser melhor no campo. Seria divertido se as lojas não fossem decoradas com produtos alimentares apenas para que o "conducator" pudesse entrar nelas e filmar a sua cena.
Mas há um mistério que "Autobiografia" não revela. Ceausescu foi o encenador e intérprete principal desta farsa, ou, à semelhança de Salazar, passou os últimos anos da vida com a ilusão de governar um país, quando já não passava de um mero símbolo de poder? Marionetista ou marioneta?

Faz parte da aura de um ditador mandar construir e ver em seu redor um novo país a erguer-se. A Roménia foi a casa em obras de Ceausescu, mas o que acontece quando a casa, o lar, é destruído?
Um fantasma da realidade
Se "Autobiografia..." nos mostra um ditador a encenar o seu país como quem dirige e protagoniza um filme, "Aurora", de Christi Puiu (dia 9, 21h30, Casino; dia 10, 15h, Centro de Congressos - também em competição) mostra-nos um ditador no contexto familiar, perante os destroços do seu casamento.
Nascido em 1967, Christi Puiu é um filho da Época de Oiro. Nasceu na sequência do projecto de explosão da taxa de natalidade que em 1966 proibiu o aborto, com o objectivo de criar uma geração nascida do comunismo, liberta da memória do passado. Cinco anos depois do multi-premiado "A Morte do Sr. Lazarescu", para o seu novo filme Puiu fez audições durante três meses e acabou por escolher-se a si mesmo para a personagem principal. Ele é Viorel Ghenghea, o ditador destroçado por um casamento resolvido em tribunal, engenheiro metalúrgico que perde o lar e a família e vegeta pelas ruas e pela casa em obras sem outro poder que não seja o de matar-se ou vingar-se.

O filme resulta num exercício sobre o poder de dirigir, com Puiu a dirigir o espectador no interior do plano: basta seguir-lhe o corpo, o olhar. Ele começa por ser um fantasma da realidade, em casa da amante a espiar uma vida doméstica que lhe não pertence e na rua onde mora a ex-mulher a espiar os filhos numa vida de que já não faz parte. O seu corpo está tolhido, descentrado da realidade, há um "delay" entre os olhos que vêem e o corpo que segue o olhar. E o seu corpo segue o que os olhos vêem, como se já não tivesse vida própria. O que parece uma depressão profunda a preparar um suicídio revela-se uma depressão profunda a encenar uma vingança. "Aurora" é um filme em que não se comunica: os diálogos são recriminações, chorar sobre leite derramado.

Qual é o poder do indivíduo perante o real? E quando é que a lei deve interferir com a vida dos indivíduos? Para Viorel Ghenghea essa intromissão já aconteceu: a sua vida são fragmentos de algo que se extinguiu. Resta-lhe uma mistura desolada de desprezo com indiferença e ódio. "A justiça não pode compreender a complexidade da relação que tinha com a minha mulher", explicará em depoimento o sr. Ghenghea, enquanto o sr. Puiu acrescentará que "os problemas de comunicação alimentam a violência."

É essa a pedra de toque. A doença mais profunda que tolhe a sociedade romena (e que ainda soa familiar ao cidadão português) é a da incapacidade de comunicar perante um problema.
Por que é que não sabemos o que aconteceu entre Viorel e Amália, a sua ex-mulher? E por que é que os sogros, o notário e a sua acompanhante anónima devem pagar pela miséria de Viorel? A história romena e a cultura que a impregna é esta charada: as diferenças não se resolvem, amputam-se ou ficam bem escondidas. É um país enredado na asfixia do seu charme, da sua tristeza, do seu isolamento, da sua vergonha. As histórias romenas escondem sempre que tratam de uma traição. Os traidores são aqueles que permitiram o abuso.

Qual é afinal o poder do indivíduo perante o real? Regressemos a Pyongyang: Ceausescu e Kim Il Jung assistem da tribuna a uma coreografia colectiva cujos figurantes preenchem a totalidade do estádio, de fazer empalidecer a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Moscovo. Todos fazem parte da encenação. Para admirá-la restam apenas dois espectadores. Na sociedade do espectáculo todos participam, mas só o ditador tem o poder de dirigir o olhar para o que está a acontecer: o real, a sua encenação.

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