Os zombies que nos fazem pensar nos noticiários

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Andrew Lincoln e Sarah Wayne Callies CORTESIA FOX/TWD/AMC

The Walking Dead estreia-se hoje às 21h30 na Fox e é uma série que chega mais depressa dos EUA a Portugal do que uma horda de zombies em busca de cérebros para o jantar

A actriz Sarah Wayne Callies desliga a televisão do quarto de hotel londrino à pressa. A entrevista vai começar e ela estava perdida nos noticiários. "Há de facto qualquer coisa de muito preocupante no Zeitgeist. Aquecimento global, o petróleo, a inflação catastrófica do ouro nos últimos dias, as calotas polares... isto antes de chegarmos aos deslizamentos de terras e aos furacões e às 57 guerras", suspira em resposta ao P2. O cenário pós-apocalíptico de uma série de zombies como The Walking Dead parece-lhe estranhamente familiar.

Será possível ter pena de um morto-vivo esfrangalhado no momento em que ele é abatido pelo herói? Os zombies são os novos vampiros? Com tanta fantasia pós-apocalíptica, Hollywood e as fábricas televisivas norte-americancas estão a querer dizer-nos alguma coisa? The Walking Dead, a série de seis episódios realizada por Frank Darabont com base na BD de culto de Robert Kirkman, é tudo isto e mais uma tábua na ponte que começa a unir os dois lados do Atlântico na exibição de séries, estreando-se entre nós dois dias depois da estreia nos EUA, em pleno Dia das Bruxas.

Seis episódios de uma hora sobre um grupo de pessoas que tentam sobreviver num mundo dominado por zombies. Onde é que já vimos esta história? Em The Walking Dead, por exemplo, a série de BD da Image Comics que já vai no 78.º número e num prémio Eisner, mas também no género popularizado por George Romero - o mesmo que aproveitou para dizer há um mês ao público do festival MoteLx que não percebe "como é que eles se tornaram tão populares". A verdade é que eles, os mortos-vivos, esse misto de vudu e remake americano, continuam a ser um motivo ao qual se regressa sempre.

The Walking Dead é, ainda assim, uma amálgama de partes relevantes da indústria americana que lhe dão um pedigree mais resistente ao cepticismo. Frank Darabont (Os Condenados de Shawshank, baseado num romance de Stephen King), a produtora Gale Anne Hurd (Aliens, Exterminador Implacável 1 e 2, Hulk), Sarah Wayne Callies (Prison Break) e Andrew Lincoln criam uma série com a marca AMC - o canal de Mad Men e Ruptura Total, que abriu o seu espaço da Noite das Bruxas aos zombies.

Os zombies não são sexy

Sarah Wayne Callies ainda hoje perde o sono por causa dos monstros com que filmou ("sou uma medricas"), mas fica séria quando fala com o P2 sobre se o espírito de um mundo em crise e em reorganização terá embebido esta narrativa. "Quando vejo os noticiários às vezes penso que estamos a começar a tornar-nos pessoas que não reconhecemos. O entretenimento que explore isso, com a fantasia dos zombies adicionada, é uma forma interessante de nos movermos por essas emoções", diz. Tal como Lincoln, evoca a velha máxima do projecto que transcende o seu género (leia-se o terror) e que conta histórias de sobrevivência, de superação.

Gale Anne Hurd, afónica e por isso a teclar noutro quarto perante as perguntas do P2, resume: "O apocalipse zombie é uma forma de examinar como a sociedade poderia sobreviver a um evento de extinção e os dilemas morais dos sobreviventes a cada dia."

Mas vamos a factos: esta é uma série de zombies que sim, tal como a sua origem nos comics da chancela Image, puxa à reflexão, mas é ainda assim um guilty pleasure para os fãs do género. Não se inventam novos zombies - a sua narrativa base está mais do que escrita e podemos pensar em 28 Dias Depois, Shaun of the Dead, Zombieland. No entanto, e esta é a vírgula que pausa a acção antes de ela começar a sério, esta é a hipótese de ir, como quer Robert Kirkman, que aqui é o produtor executivo, mais além na história. De explorar os tais dilemas. De ter ou não compaixão por "um balde de entranhas e sangue meio morto que está a tentar matar os nossos heróis", como descreve Callies sem pruridos.

E Darabont, conhecido por algumas investidas mais delicodoces no cinema, quis aqui "a liberdade de contar a história da série BD sem receber bilhetes do canal a perguntar "Os zombies não podem ser sexy como os vampiros?"", recorda Hurd. Como se vê na imagem apensa a este texto, a resposta é não. E ainda bem.

Desactivar a pirataria

Esta é também uma produção com estratégia montada à medida dos tempos - o Zeitgeist também se faz de downloads e streaming ilícitos e a estreia aqui poucos dias após a estreia nos EUA serve um propósito. "Desactivar o poder da pirataria", enumera Sarah Callies, "é uma óptima forma de consolidar os benefícios económicos do produto", prossegue, "criar impulso porque toda a gente o vê ao mesmo tempo e respeitar quem não está nos EUA", completa Andrew Lincoln.

"No mundo dos filmes, onde trabalho, é bastante comum", explica Hurd com a ajuda do seu computador. "Dados os problemas da pirataria e das críticas cena a cena, é muito importante que o público experiencie a série como era suposto ser vista", frisa Hurd, como que atestando que as estreias simultâneas (ou quase) são tão necessárias hoje quanto uma arma de fogo frente a uma horda de zombies.

Chove em Londres. Gale Anne Hurd, ainda sem voz, garante que fazer uma série é muito mais satisfatório do que trabalhar num filme. "Temos seis horas para passar com as nossas personagens e para desenvolver um mundo." Depois da exibição dos primeiros episódios, o AMC decide se a série continua. A Fox não só aposta em The Walking Dead como mostra, no dia 4, nos canais National Geographic, o documentário A Verdade por Detrás dos Zombies, isto depois de ter enchido as praças de várias cidades, Lisboa incluída, de mortos-vivos a promover a série.

E para responder à pergunta sobre um balde de entranhas que desperta compaixão, a resposta de parte da audiência londrina parece ser um enojado mas convicto "sim".

O P2 viajou a convite da Fox

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